Autor: Fernando Nogueira da Costa
Pior em lugar do capitalismo é o meio capitalismo! Apesar de todos seus males, a mudança sistêmica do regime de escravidão, sendo o Brasil o último país a extingui-lo nas Américas, e do regime de servidão feudal, para os despossuídos de terra, até o regime de assalariamento foi um avanço histórico.
Os trabalhadores “livres de (ser e arrendar) propriedade” passaram a ter chances de se educar, barganhar maiores salários com a organização sindical e obter uma mobilidade social ao acumular em bancos certo dinheiro como reserva de valor. Por exemplo, hoje, os situados na faixa de renda acima de 5 saláriosmínimos (R$ 6.600) já se colocam entre os 10% mais ricos no Brasil. Agrupados, recebem quase 42% de rendimento habitual de todos os trabalhos.
Como estão próximos ou acima do teto dos benefícios pagos pelo INSS (R$ 7.507), para manter seu padrão de vida na aposentadoria, necessitam de Educação Financeira. Têm a necessidade de fazer aplicações financeiras adequadas ao longo de sua fase ativa.
Pior em lugar da “financeirização” é ser conduzido por ela – e não a conduzir para si. Em vez de fazer a habitual crítica preconceituosa, herdeira do cristianismo medieval contra a usura, os denunciantes do capitalismo deveriam estudar seu objeto com honestidade intelectual.
Usura significa simplesmente juro, renda ou rendimento de capital. Juro é a cobrança de parte do benefício obtido pelo uso por terceiros de seu capital próprio emprestado.
Todo contrato formal de empréstimo, assinado voluntariamente pelo devedor, consta uma cláusula de pagamento de juros por ele ao credor para cobrir o custo de oportunidade deste. Quem pratica a “usura”, no mau sentido, é o agiota a oferecer empréstimos pessoais a taxas de juros extremamente alta. Usa violência na cobrança em caso de falha nos pagamentos – e, obviamente, opera fora da lei.
Empréstimos devem ser tomados para a alavancagem financeira: multiplicar a rentabilidade patrimonial através de endividamento e aumento de escala dos negócios. Resulta da participação de recursos de terceiros na estrutura do capital da empresa, somando-os aos recursos próprios.
No caso de Finanças Pessoais, há alavancagem financeira, por exemplo, quando se toma um financiamento habitacional e a prestação é inferior ao aluguel antes pago. Pode-se capitalizar essa diferença com juros compostos e planejar uma poupança até conseguir liquidar o saldo devedor.
Dada a importância do tema para a evolução da economia do país, resolvi pesquisar, em uma amostra representativa de dez obras clássicas da historiografia brasileira, sobre a presença, ou pior, a ausência de um personagem-chave nas narrativas a respeito da História do Brasil: banco. Examino, no primeiro capítulo, quantas (e quais) citações de banco podem ser encontradas nas obras de Pero Vaz de Caminha (1500), Frei Vicente do Salvador (1627), Anita Novinsky (2015), Evaldo Cabral de Mello (2010), André João Antonil (1711), Capistrano de Abreu (1907), Gilberto Freyre (1933), Sérgio Buarque de Holanda (1936), Caio Prado Júnior (1942), Celso Furtado (1959).
Historiadores não podem me acusar de anacronismo ao buscar nesses livros tal assunto. Nessa historiografia, constatei a ausência da análise de constituição (ou não) de um sistema bancário brasileiro em conjunto com informações sobre a circulação monetária no território nacional. Seus autores não analisam, em consequência, a dificuldade de alavancagem financeira de empreendimentos, destacadamente industriais, no país – e a consequente carência de geração de empregos e renda para os trabalhadores se tornarem assalariados.
O anacronismo é caracterizado pelo desalinhamento e falta de correspondência entre as particularidades das diferentes épocas, quando fatores próprios de cada tempo são, erroneamente, misturados em uma mesma narrativa. Entretanto, no século XV, surgiram os bancos das Cidades-Estados italianas... e dinheiro existia há milênios, inclusive na Europa, como o Florim, o Ducado, o Real e o Grosso, estas duas moedas de prata e as outras duas moedas de ouro.
No século XIX, o debate entre os metalistas, proponentes da moeda metálica e da restrição ao sistema bancário, e os papelistas, com a proposta de emitir papel-moeda e liberalizar bancos emissores, revelou os interesses de cada corrente de pensamento econômico.
• O metalismo era defendido por exportadores e importadores desejosos de uma moeda nacional em ouro com aceitação internacional.
• O papelismo visava atender às necessidades imediatas dos necessitados de papel-moeda e empréstimos para capital de giro, inclusive com a finalidade de pagamentos dos assalariados substitutos de escravos.
A historiografia clássica brasileira ao pouco citar esse debate sobre moeda e bancos parece o colocar em segundo plano. No entanto, o tempo comprovou ser imprescindível uma moeda nacional com o poder de compra não corroído pela inflação.
Para preencher esse “vazio”, nos anos 60’s, surgiram dois intelectuais vanguardistas. Ignácio Rangel, em A Inflação Brasileira (livro publicado em 1963), anunciava: “o Brasil entra em novo estágio, no qual o desenvolvimento não será mais comandado pelo capital industrial, mas pelo capital financeiro”.
Maria da Conceição Tavares, em ensaio escrito quatro anos após – Notas sobre o Problema do Financiamento numa Economia em Desenvolvimento: o Caso do Brasil –, chegava à mesma conclusão: se a esquerda quisesse entender o que se passava com o capitalismo brasileiro, teria de estudar o capital financeiro.
No segundo capítulo, eu resenho não só suas principais ideias sobre o capitalismo financeiro tardio, cuja plena implantação foi defendida por Rangel, como as de seus discípulos: uma nova geração dos anos 70s, surgida na UNICAMP. Em especial, analiso as teses de doutoramento de João Manuel Cardoso de Mello, Capitalismo Tardio (1975), José Carlos de Souza Braga, Temporalidade da Riqueza: Teoria da Dinâmica e Financeirização do Capitalismo (1985), Frederico Mazzucchelli, A Contradição em Processo: O Capitalismo e suas Crises (1985), e a dissertação (1978) e a tese (1989), defendidas por mim, Fernando Nogueira da Costa, e sintetizadas no livro Brasil dos Bancos (2012).
Ao compará-las, o leitor perceberá distintos planos de abstração. Meu livro foi escrito a partir de pesquisas de campo com base em fontes primárias com o método histórico indutivo. Parti de algo particular – bancos e crédito – para uma questão mais ampla, ou seja, um aspecto geral da evolução tardia do capitalismo financeiro no Brasil.
As demais teses são lógico-analíticas, baseadas em leitura da literatura teórico-conceitual e, especialmente, inspiradas em Karl Marx e Rudolf Hilferding. São importantes os esforços de baixar do plano dessa teoria abstrata para a aplicada às novas instituições financeiras.
Porém, o método dedutivo não produz conhecimentos novos, suas conclusões são tiradas com base nos conhecimentos implícitos já existentes. Para chegar a uma conclusão específica, baixa a abstração de uma ideia generalista.
Com o objetivo de testar a hipótese condenatória da chamada “dominância financeira”, no terceiro capítulo deste livro digital, resolvi explorar a diferença entre uma “financeirização” bem-sucedida, no sistema financeiro nacional, e uma malsucedida, no caso argentino. Classifiquei o fenômeno de lá como uma “desfinanceirização” por ser uma economia sem bancarização e com desintermediação financeira por conta de sua dolarização.
Com o estudo do caso, pretendo demonstrar o papel-chave de bancos e moeda nacional para o desenvolvimento nacional com relativa autonomia financeira. O contraste atual entre Argentina e Brasil é revelador.
Nossa vizinha está com inflação de 108,8% em 12 meses enquanto aqui está em 4,16%. As reservas cambiais brutas lá são US$ 36,5 bilhões diante do Brasil com a 7ª maior reserva cambial do mundo em dólares. Somou US$ 346 bilhões, no dia 26.abr.2023, elevando US$ 16 bilhões nos três primeiros meses do novo governo Lula, após a “queima” de dólares.
Uns economistas dizem essa situação ser devida aos juros disparatados, desde 2004, para manter uma inflação inercial em torno de 6% aa. Os títulos de dívida pública como reserva de valor travaram a fuga para o dólar, embora tenham resultado em estagdesigualdade: estagnação do fluxo de renda e concentração do estoque da riqueza financeira.
Outros economistas ressaltam, na economia brasileira, ao contrário da argentina, onde a reserva de valor é o dólar e a população desconfia dos bancos, haver funding, isto é, fonte de financiamento em moeda nacional. O Brasil alcançou relativa autonomia financeira, embora não tenha autonomia tecnológica, necessitando fazer uma abertura externa aos investimentos estrangeiros para a retomada do crescimento econômico sustentado em longo prazo.
O quarto e último capítulo examino o “modelo de baixo crescimento”, implementado desde o fim da Era Desenvolvimentista no Brasil. É deliberado ou neoliberal?
Analiso as possibilidades de um desenvolvimento sustentável, com base na circulação monetário-financeira entre o agronegócio exportador e os serviços urbano-industriais não-exportáveis. O primeiro, em conjunto com a indústria extrativa exportadora, providencia um superávit no balanço comercial na tentativa de cobrir o déficit na conta de serviços, principalmente, em remessa de lucros e juros pelas multinacionais aqui instalada.
Elas são indispensáveis pela carência de autonomia tecnológica, devido ao atraso educacional e científico no Brasil. A grande maioria da população sobrevive ocupada em atividades de serviços urbanos, onde por definição a produtividade é baixa.
Por isso e por ter a sétima maior população no mundo, dedutivamente, tem uma baixa renda per capita. Para melhorar o bem-estar, seu povo necessita sim dos serviços financeiros: financiamentos, pagamentos e gestão do dinheiro.
Fernando Nogueira da Costa
Campinas, maio de 2023