Organizadores: Esther Dweck, Pedro Rossi e Ana Luiza Matos de Oliveira
A pandemia atingiu o Brasil em meio à aplicação de uma agenda de reformas centrada na austeridade e na redução do papel do Estado na economia. A realidade concreta impôs uma alteração temporária do rumo da política econômica e transformou o debate fiscal no Brasil.
Em poucas semanas, o gasto público passou de suposto grande problema do Brasil para a principal solução para o enfrentamento da pandemia. Na retórica de alguns, o Estado que estava quebrado se reconfigurou e o dinheiro, que tinha acabado, reapareceu. Mitos sobre a questão fiscal caíram por terra e dogmas foram deixados de lado diante de uma realidade impositiva. Assim, a crise postergou o debate sobre as reformas e criou um “quase consenso” entre os economistas de que era preciso gastar com saúde, assistência social e apoio aos trabalhadores, às empresas e aos entes subnacionais.
No entanto, rapidamente a austeridade fiscal se recompôs como discurso e a agenda econômica dominante sinaliza novamente para a redução do gasto público e do papel do Estado, via reformas e privatizações. Diariamente, analistas econômicos subscrevem ameaças que buscam criar um clima de medo e coação em prol desta agenda: afirmam que o país está à beira da insolvência mesmo com as taxas de juros mais baixas da história; que a hiperinflação volta se aumentarmos o gasto público apesar do desemprego e da falta de demanda; e que o fim do Teto de Gastos pode levar à depressão econômica, etc. O fato é que o debate econômico brasileiro tem sido dominado por dogmas e por um “terrorismo fiscal”, que é inibidor da discussão de alternativas.
Este livro busca desmontar esses argumentos e mostrar como a agenda da austeridade fiscal é anacrônica do ponto de vista macroeconômico e cruel do ponto de vista social. Anacrônica porque nega o papel da política fiscal como indutora do crescimento e do emprego em um momento de grave crise econômica, destoando do debate internacional e até de instituições como o FMI. E cruel pois agrava as desigualdades de gênero, raça e classe e representa um retrocesso na garantia de direitos humanos.
O Brasil precisa desatar suas amarras ideológicas. Não é sensato, por exemplo, reduzir o gasto público per capita como impõe o Teto de Gastos. A agenda da austeridade, no curto prazo, se contrapõe à evidente necessidade de reconstrução econômica, de proteção e promoção social e, no longo prazo, consolida privilégios e bloqueia possibilidades de construção de um país mais justo.
Mas este não é apenas um livro crítico à pauta econômica conservadora ou de denúncia de suas consequências sociais. Seu objetivo é mostrar que há alternativas. E, para isso, apresenta diagnósticos sobre o estado das finanças públicas no Brasil, sobre a importância do gasto público ao longo do ciclo econômico, sobre o papel da política fiscal na garantia dos direitos humanos, no financiamento da saúde e da educação, seu impacto nas desigualdades sociais, de gênero e raça e sua importância para preservação ambiental.
Argumenta-se que o Brasil tem plena capacidade para expandir os gastos públicos necessários ao enfretamento da crise e à construção de um novo paradigma de política econômica baseada em direitos sociais. Direcionar o desenvolvimento para a transformação social e a preservação ambiental implica distribuir renda e alocar recursos para atender as demandas sociais o que, por sua vez, permite diversificar a estrutura produtiva, aumentar produtividade, garantir empregos de qualidade e criar as condições para a própria sustentação do modelo econômico. Não há dilema entre o gasto social e o crescimento, ao contrário, há complementariedades e sinergias.
No Brasil, as hierarquias aparecem invertidas, o equilíbrio orçamentário se apresenta como finalidade e os direitos sociais devem se adequar a critérios definidos de forma tecnocrática. O debate econômico brasileiro parte de “cima para baixo” para pensar a política fiscal, ou seja, dos indicadores e regras macroeconômicas para a disponibilidade de recursos para áreas específicas. Essa relação deve ser invertida e a política fiscal deve ser pensada de “baixo para cima”.
A finalidade fundamental da política fiscal deve ser a garantia dos direitos sociais e do bem estar da população. É a garantia desses direitos que deve pautar o orçamento e não o orçamento que deve condicionar a garantia dos direitos. Nesse contexto, não faz sentido definir uma regra fiscal a priori sem um debate democrático sobre o que a sociedade brasileira quer financiar coletivamente, o quanto se deve expandir os gastos públicos em saúde, educação e assistência social, dentre outros.
O maior problema do Teto de Gastos foi constitucionalizar uma redução do tamanho do Estado sem discussão prévia, e impor uma redução relativa dos pisos de financiamento para saúde e educação sem avaliar as necessidades de áreas tão caras à população.
O orçamento público é uma peça política e deve se adequar às demandas democráticas da sociedade. A hierarquia que deve existir entre direitos sociais e política fiscal é a hierarquia entre objetivo e instrumento, entre finalidade e meio. Nesse contexto, este livro redefine “responsabilidade fiscal”. Uma política fiscal que se omite diante de um desemprego estrutural, promove retrocesso social e viola direitos humanos não é uma política fiscal responsável. A responsabilidade social não é algo externo, mas é constitutiva da responsabilidade fiscal. Uma política fiscal responsável deve respeitar os princípios de direitos humanos, buscar a estabilização do nível de emprego e de preços e orientar-se por objetivos ou missões sociais bem definidas.
O desemprego é um desperdício de recursos produtivos, além de violação do direito humano ao trabalho. As regras fiscais devem garantir a atuação estabilizadora da política fiscal ao longo do ciclo econômico, viabilizar o aumento dos investimentos públicos e garantir políticas de transferência de renda e a prestação de serviços públicos de qualidade que garantem direitos sociais. Essa atuação é absolutamente funcional para a sustentabilidade fiscal, entendida como estabilização da dívida pública.
Como mostramos, crescimento econômico é essencial para que a trajetória da dívida pública em relação ao PIB seja estabilizada.
Portanto, a política fiscal praticada no Brasil é irresponsável e faz-se imprescindível substituir o nosso conjunto de regras fiscais sobrepostas e anacrônicas. Assim, propõe-se abandonar os dogmas da austeridade fiscal, as crenças de que o desenvolvimento será resultado natural do recuo das fronteiras do Estado e da eficiência do mercado e construir um novo paradigma de política fiscal e de desenvolvimento econômico, social e ambiental para o Brasil.