Autor: Fernando Nogueira da Costa
Era uma vez, uma criança caçula de três irmãos da geração baby-boom, nascidos em série, eu um ano e dois meses depois do meu irmão ainda bebê. Eu era muito tímido diante da reação dos outros à minha ocupação de lugar. De modo geral, minha infância foi feliz, cercado de proteção materna e com um pai médico provedor. Nossos avós maternos levavam-nos nos fins de semana para uma fazenda, onde desfrutávamos a liberdade de viver em harmonia com a natureza. Passávamos férias nas praias cariocas com os avós paternos.
Até um dia acontecer meu primeiro “ponto de ruptura”: acompanhar meu irmão mais velho no Jardim de Infância. Vi a “escola maternal” como um mundo hostil, cercado de crianças competitivas. Todas desejavam os “bens da moda” e buscavam se apossar daquilo em mãos de outros. O bullying (intimidação) não era um nome conhecido nos anos 50s. Mas havia já o comportamento agressivo e antissocial de estudantes, sem motivação evidente, em uma relação desigual de forças contra os tímidos. Chorei, esperneei, berrei. Agarrava-me à mão de minha mãe, ficava no canto sofrendo até ela vir me salvar daquele ambiente confuso de disputa e rivalidade. Essa batalha se prolongou até um armistício.
O acordo entre mãe e filho, para a suspensão temporária da vivência com aquelas hostilidades de crianças envolvidas em disputa, exigiu eu assumir um dever. Eu estudaria com ela, diariamente, até me alfabetizar. Depois, quando tivesse sete anos, entraria no primeiro ano da Escola Fundamental ABC – hoje, o Ensino Primário. Aproveitei feliz a trégua. No meu “recreio”, subia o pé-de-caqui, no quintal de minha casa, vizinha ao do Jardim de Infância. Lá eu tinha um bom posto de observação do “território inimigo”: o pátio de recreação dos meus ex-colegas. Observava acuradamente seus comportamentos, suas táticas, as lideranças e os subordinados. Esboçava minha estratégia para o futuro retorno.
Fui alfabetizado com a letra redonda da caligrafia de minha mãe e o hábito de leitura das histórias em quadrinhos e os clássicos infanto-juvenis adquiridos por meu pai. Entre outros heróis de capa-e-espada, Robin Hood – roubar dos ricos suas extorsões dos pobres – se tornou meu guia espiritual em defesa da justiça social. Por causa disso, quando voltei à vida coletiva, estava mais preparado para o enfrentamento da competição. Aprendi logo as regras do jogo. A partir do segundo lugar, no primeiro boletim escolar, explicaram-me o significado de tirar notas boas. Do mês seguinte até a formatura no Primário, passei a ter uma medalhinha dourada no peito. Com esse reconhecimento – e meu fortalecimento com o crescimento –, não tive mais dificuldade de convivência respeitosa e fraterna com os colegas. Fui escolhido como paraninfo da turma de jardim-de-infância e tive de fazer discurso na formatura com dez anos!
Finalmente, enquanto meus colegas foram fazer o ginásio (Ensino Médio) em colégio religioso, eu fui o único a fazer concurso direto para seleção em colégio público laico, considerado na época o melhor de Belo Horizonte: o Colégio Estadual de Minas Gerais. Eu era vizinho dele, cuja criativa arquitetura em forma de régua, giz, borracha, e mata-borrão, foi criação de Oscar Niemeyer. Ele tinha também arquitetado a Pampulha.
Na minha infância, como observador crítico do mundo exterior, eu desenhava tudo. Era capaz de desenhar uma história em quadrinhos. Nos intervalos entre aulas, colegas pediam para eu desenhar no quadro-negro com giz, por exemplo, mergulhadores ou astronautas. Os adultos prognosticavam: certamente, eu seria arquiteto! Colocaram isso na minha cabeça. Segui com as melhores notas em direção ao Científico para Engenharia. Não tinha dificuldade com nenhuma matéria de Ciências Exatas: Matemática, Física, Química.
Afinal, como foi realizada minha escolha profissional? De maneira quase casual. Na véspera do vestibular, no fim de 1970, quando iria me inscrever como candidato à Arquitetura – o único a escolher na minha turma de futuros engenheiros –, minha irmã dois anos mais velha me alertou sobre o mercado de trabalho desse ofício, baseada em um único caso de um conhecido de seu namorado. Acrescentou, na opinião dela, eu não ser tão criativo como um artista. Detalhe: ela se casaria com um fotógrafo e se tornaria uma excelente fotógrafa. Seu diagnóstico foi fulminante. Desisti de imediato de me tornar arquiteto. E lhe perguntei sua sugestão para meu destino profissional. Disse-me: – Analista de sistema. – O que?! – Trabalha com computador, conhece isso? – Já ouvi falar. – Essa é uma especialização de pós-graduação. Antes, você tem de fazer qualquer graduação. – Qual?! – Está na moda uma tal de Economia, você não vê a propaganda do Milagre Econômico Brasileiro? Vê a bolsa de valores! Resolvi fazer o vestibular para Economia sem ter a menor ideia a respeito desse ofício. Passei em 13º lugar no primeiro vestibular único nas Universidades Federais, o da UFMG, realizado em conjunto com os milhares de candidatos sentados nas arquibancadas do Estádio Mineirão, e em 2º lugar em Ciência Econômica (um ponto em 181), há mais de ½ século (1970). Desde então, não parei de buscar conhecimento.
Recentemente, li livros sobre Conhecimento e Dívida. De Peter Burke li o volume I de Uma História Social do Conhecimento (De Gutenberg a Diderot) publicado em 2003 e o volume II (Da Enciclopédia à Wikipédia) em 2012, além de Perdas e Ganhos: Exilados e Expatriados na História do Conhecimento na Europa e nas Américas (1500-2000), publicado em 2017, e Ignorance: A Global History, publicado em 2023. O outro autor foi David Graeber com seu livro Dívida: Os Primeiros 5.000 Anos (2016). Dado eles terem provocado uma reflexão sobre essa minha busca contínua de conhecimento, em especial, na área de meu interesse (Ensino de Finanças), resolvi os resumir e compartilhar aqui nesta edição digital com algum leitor eventualmente interessado. Creio valer a pena a leitura, pois acrescentou bastante ao meu conhecimento. Pago assim mais uma prestação à eterna dívida junto à sociedade por ter pagado meus estudos em Colégio e Universidades públicas. Escrever e compartilhar conhecimentos, gratuita e virtualmente, é minha retribuição prazerosa por ser, para mim, motivacional. O segredo da felicidade é fazer o que gosta – e ainda te pagarem por isto! :)