Tese analisa as contradições do ciclo de crescimento com inclusão social e mostra como a dominância financeira limitou a consolidação do SUS e o desenvolvimento nacional.
Por Davi Carvalho
A tese de doutorado de Juliana Duffles Donato Moreira, intitulada "Subdesenvolvimento e política social : contradições do ciclo de ‘crescimento econômico com inclusão social’ (2003-2014) e limites estruturais para a democratização do acesso à saúde no Brasil", investiga os limites estruturais da universalização da saúde no Brasil. O estudo, orientado pelo professor Márcio Pochmann, discute como as transformações econômicas, tecnológicas e institucionais dos últimos 40 anos moldaram a capacidade do Estado de sustentar políticas sociais universais — especialmente o Sistema Único de Saúde (SUS).
Ancorada no pensamento estruturalista latino-americano, a pesquisa argumenta que o ciclo de “crescimento econômico com inclusão social” (2003-2014) revelou contradições profundas do padrão de desenvolvimento da Nova República. Os limites da estrutura produtiva e a dependência tecnológica impediram que o crescimento se convertesse em dinamismo sustentado. Segundo a autora, o Brasil viveu um período de expansão acompanhado de “insuficiência dinâmica”: a economia cresceu, mas não gerou as condições internas para sustentar o avanço social e reduzir desigualdades. A saúde é tomada como área-síntese desse movimento, por revelar de forma concreta a articulação entre política social, estrutura produtiva e dinâmica do capitalismo periférico.
Financeirização, limites estruturais e o SUS
Um dos eixos centrais da tese é a dominância financeira, compreendida como a subordinação das decisões econômicas e de políticas públicas à lógica dos mercados financeiros. “Essa lógica ganhou força a partir da década de 1990 e dificultou muito a construção de uma base estável e adequada de financiamento para as políticas sociais – incluindo o SUS”, afirma Juliana.
A autora lembra que, pela Constituição, o sistema deveria ser sustentado pelo Orçamento da Seguridade Social, ao lado da Previdência e da Assistência. Mas essa arquitetura foi desmontada ao longo dos anos 1990. “O foco passou a ser gerar superávits primários e pagar juros da dívida, e não ampliar o investimento social. Como resultado, o SUS passou a operar com recursos insuficientes e fontes instáveis”, explica.
Mesmo no ciclo de crescimento de 2003 a 2014, o padrão não se alterou. O gasto federal em saúde subiu de 1,6% para 2,1% do PIB, mas a elevação ocorreu, sobretudo, por meio de renúncia fiscal, não de gasto direto. No mesmo período, o gasto privado avançou mais rapidamente, chegando a 4,9% do PIB, enquanto a participação pública permaneceu inferior a 45% do total — contraste significativo com sistemas universais europeus, onde o gasto estatal supera 70%.
“Com o acesso dependendo cada vez mais da capacidade de pagamento individual, só quem pode pagar mais tem acesso a serviços de melhor qualidade”, afirma Juliana. O número de beneficiários de planos privados dobrou, alcançando 57 milhões em 2014; 70% desses planos ofereciam cobertura limitada, com mensalidades inferiores a R$ 200. “Isso é exatamente o oposto do que a Constituição de 1988 propôs. O SUS foi criado para desmercantilizar o acesso à saúde, garantindo que todos tenham direito, independentemente da renda”, argumenta.
O Complexo Econômico-Industrial da Saúde e os caminhos do desenvolvimento
O trabalho também evidencia a relação entre saúde, desenvolvimento e soberania produtiva. O Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) concentra essa interseção: o SUS é um sistema universal de grande escala, presente em todos os municípios e responsável por uma demanda contínua de medicamentos, vacinas, equipamentos e tecnologias digitais. Apesar disso, o Brasil não consolidou um parque produtivo capaz de suprir essas necessidades, sobretudo nos segmentos de maior complexidade tecnológica.
Entre 2003 e 2014, as importações do CEIS saltaram de US$ 6,1 bilhões para US$ 20 bilhões, enquanto o déficit comercial passou de US$ 4,9 bilhões para cerca de US$ 17 bilhões. “Quanto mais o país cresceu e ampliou o consumo em saúde, mais aumentou a dependência de importações — um indicador direto de insuficiência dinâmica”, observa a pesquisadora.
Juliana ressalta que esse quadro não é inevitável. As Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), implementadas pelo Ministério da Saúde, permitiram que instituições como Fiocruz e Butantan internalizassem tecnologias estratégicas e ampliassem a capacidade produtiva nacional. “A pandemia de Covid-19 deixou claro como esse acúmulo institucional foi decisivo para garantir vacinas ao país. Quando há política pública coordenada, é possível ampliar direitos, reduzir vulnerabilidades externas e gerar autonomia tecnológica”, defende.
Para a autora, fortalecer o CEIS significa transformar a política social em política de desenvolvimento. A saúde já representa cerca de 10% do PIB, concentra um terço do investimento nacional em P&D e emprega mais de 10 milhões de pessoas. “Se o Estado usar o poder de compra do SUS para estimular produção e inovação nacional, o gasto em saúde deixa de ser despesa e passa a ser investimento estruturante — capaz de gerar empregos de qualidade, ampliar direitos e sustentar um crescimento econômico de longo prazo.”
A conclusão da tese aponta para uma agenda de reconstrução: superar a dominância financeira, reconfigurar o financiamento público e articular uma política que integre saúde, indústria e inovação como elementos centrais de um projeto de desenvolvimento. “Os direitos sociais podem e devem ser a base de um novo projeto para o Brasil”, sintetiza Juliana. “Fortalecer o SUS e o Complexo Econômico-Industrial da Saúde é construir um país dinâmico, capaz de inovar, gerar empregos e ampliar cidadania”, conclui.
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