MÍDIA

Bruno Leonardo Barth Sobral | No Brasil Debate

Wilson Cano terminou seu trabalho nesse último dia 03 de março. Não sabia parar de trabalhar, não por qualquer ranço produtivista que sempre se opôs. Trabalhava até o fim porque era o que o fazia sentir vivo. Cada um lida com a morte a seu jeito. Eu decidi escrever porque acredito ser a forma que um mestre do saber merece receber como homenagem. Não faço para provar conhecimento de sua obra, farei para deixar o registro do que significa ter um mestre na formação.

Boa parte do profissional e cidadão que sou se deve a ter o tido como mestre. Foi o único que chamei assim na minha vida. Pondero que isso não desmerece tantos professores, orientadores e colegas de profissão fantásticos que conheci e pelos quais nutro admiração. Mas para ser um mestre há de ser duro, querer tirar de você o máximo. Mas, há entrega de ambos os lados. Do mestre sendo atento a tudo, levando a sério sua formação como se fosse parte da obra dele. Do discípulo superando seu ego e provando que é capaz de merecer sua aprovação. Dizem que o maior orgulho de um mestre é que seu discípulo o supere. Certamente não fui capaz disso e acredito que nenhum de seus discípulos ache isso. Mas ele nos cobrava como se quisesse realmente que isso fosse possível.

Minha experiência com Wilson Cano não começou como um ídolo, mas como uma pessoa teimosa e ferrenha defensora de seu ponto de vista. Desde o início começou com um enfrentamento intelectual. Pré-selecionado pela prova da Anpec para o Mestrado, viajei de ônibus do Rio de Janeiro-RJ a Campinas-SP para uma entrevista com a banca de seleção. Pelo contato telefônico parecia que estava tudo certo, que praticamente estava já escolhido e era mais para me conhecerem melhor. Ledo engano. Se os demais pegaram leve, Wilson Cano detonou, partiu para cima criticando de A a Z o projeto e minha formação até ali. Alguns diante disso chorariam, desistiriam… eu o enfrentei, respeitosamente, mas o enfrentei. Saí de lá com uma raiva de doer, achando que tinha perdido meu tempo. Não tinha maturidade naquela altura para entender o ensinamento. Mas nunca esqueço o que um dos professores comentou comigo pouco depois: “vamos querer você aqui porque você é combativo, o Wilson gostou de você”.

Tive uma excelente base na graduação no Instituto de Economia da UFRJ. Fui aluno em disciplinas tendo figuras do gabarito de Carlos Lessa, Maria da Conceição Tavares, José Ricardo Tauile, Mário Possas entre tantos outros feras como professores. Também tive excelentes orientadores, como professora Renata La Rovere a quem devo me colocar em contato com estudos de economia regional e agenda de pesquisa da minha vida que é o desenvolvimento do Estado do Rio de Janeiro.

Mas foi na Unicamp que aprendi a ser “pele dura”, a não cair com “canelada”, a “calejar” o espírito até finalmente entender a profissão como uma forma de servir à sociedade e ao meu país. Para isso, o preparo não poderia ser trivial, você aprende a buscar ter conteúdo para ser relevante na vida dos outros a partir do debate público (e evitando ao máximo a vaidade pessoal). Isso aprendi com o mestre que trabalhou até o fim não por remuneração, mas porque seus discípulos e o Brasil precisavam.

Vejo muito alunos hoje preocupados com qual a nota do curso que fazem, qual a nota da revista que publicam etc. Escolhem os rumos de sua vida por critérios de um mercado de trabalho descolado de um projeto nacional. Muitas vezes encorajados por seus professores que pensam igual (querendo ser pesquisador nível X, Y ou Z e o papa-tudo dos editais), aceitam orgulhosos ficarem submissos a uma concorrência que não sobra tempo para uma formação política e cidadã. Ao invés de buscar seu valor dentro de si, agarram-se nas regras da disputa em uma sociedade capitalista e seus padrões de mérito que transformou a academia num espaço de poucos mestres e muitos atualizadores de currículo.

Wilson Cano nunca cedeu a isso e nem encorajou ninguém a isso, o que não significa descuido. Ao contrário, o que ele queria era que fizéssemos uma obra. Pouco interessava o quantitativismo da produção. O que interessava era debater sem trégua cada palavra e o que produzisse tivesse valor social, pois como ele dizia: “cuidado, o papel aceita tudo”. Ele não escolhia um discípulo por pontuação fria, mas pela sua capacidade acalorada de contribuir para algo que pudesse virar uma referência. Por isso ele conseguiu trazer pessoas para produzir importantes trabalhos na Unicamp e nas diversas temáticas que ele julgava estratégica para o país.

Aliás, ele mesmo não foi para a Unicamp porque ela tinha boa nota em alguma avaliação (até porque nem existia) ou porque isso ia ser bom para o currículo dele, ao contrário, deixou um emprego confortável e com direito a passaporte diplomático na Cepal e foi construir uma instituição do zero e tornar ela um centro de referência internacional. E até o fim lutava por sua casa, pela sua Unicamp como uma escola de pensamento a serviço do país.

Com esse grau de dedicação, ele não deixava que quem aceitasse ser seu discípulo oferece menos que seu melhor. Era implacável, detalhista a ponto de ler tudo que se fazia, mandar reescrever tudo de novo se não o convencia, de dar mais uma pilha de material para analisar, e até, no meu caso, ao invés de me defender como orientador em minha defesa de tese, ser um dos que me questionou. E fez isso para tentar me “pegar no contrapé” e avaliar se conseguiria me superar (como confessou rindo tempo depois). E fez isso outras vezes, sempre combativo e te chamando para o combate.

Por isso, reafirmo que considerar mestre alguém não é elogio fácil. É construir uma relação dialética de afeto com aquele que, mais do que ninguém, tira da zona de conforto para você descobrir o seu potencial. E nesse relacionamento ele foi muito duro, muito exigente, nunca facilitando a trajetória do discípulo. A ponto de dizer que não gostava de orientar mais de uma vez a mesma pessoa, pois já criava intimidade e dificultava cobrar mais dela.

Aliás, minha maior surpresa foi quando conheci aquele professor implacável no convívio social, fora do ambiente de trabalho. Quantas cervejas nós bebemos, e como ele era amável nessas situações. Mesmo já não tendo aulas com ele, muitas vezes marcávamos para ir num bar beber uma e por a conversa em dia. Fiz isso sempre que pude, mesmo quando já não tinha nenhuma relação de trabalho direto com ele. Sempre que podia trocava uma ideia. Nesses últimos anos, fazia contatos por e-mail ou telefone, geralmente discutindo algum diagnóstico da situação do país e, por vezes, eu podendo contar alguma conquista pessoal minha. Afinal, ainda era importante sua aprovação para mim.

Última vez que conversamos foi no final do último ano em que lhe desejei boas festas. Contei que iria virar Diretor de Planejamento e Orçamento da UERJ, notei seu orgulho. Deixei-o a par dos avanços da Rede Pró-Rio, projeto coletivo que busca contribuir com uma visão estratégica para o desenvolvimento do Rio de Janeiro. Recebi muitos conselhos, inclusive cuidados políticos que precisava ter para não deixar que abortassem ou criassem dificuldades para sua execução. Era meu desejo trazê-lo em 2020 para as comemorações do Ano Celso Furtado na UERJ, já havia compartilhado isso com alguns colegas e íamos fazer de tudo para viabilizar isso. Sua partida foi antes. Não foi possível mostrar meu ambiente de trabalho, o que me tornei e onde ainda podemos chegar. Digo na 1ª pessoa do plural porque ele é parte disso: de planejar o fortalecimento da universidade pública, de se esforçar na coordenação de um grupo de notáveis para o desenvolvimento das regiões como algo fundamental para o país, de nunca dizer não para um convite de atuação e posicionamento público.

Poderia eu, como terá registros em muitos outros espaços, destacar a qualidade do legado de Wilson Cano como economista e defensor de uma estratégia nacional de desenvolvimento baseada na preocupação com a unidade, a integração profunda e o respeito à diversidade regional. Poderia falar da figura pública que eu acompanhei suas contribuições nas últimas décadas. Isso eu deixo para outro momento que lide melhor com a perda ou para os outros que consigam já ter esse distanciamento para avaliar com o cuidado que merece a obra. Agora só consigo e preciso falar do mestre que reconheci, o mestre que me desafiou e fez amadurecer aquele espírito combativo dentro de mim.

Creio que essas palavras sejam de interesse porque desejo que os jovens e meus alunos, em particular, tenham um mestre assim e se preocupem menos com a seleção do mercado sobre suas vidas. Se derem o seu melhor, se aprenderem a se entregar a profissão até o fim da sua vida como ele, conseguirão mais do que esses critérios seletivos indicam. Quiçá até conquistem uma legião de discípulos saudosos que seguirão a luta que você inspirou por um Brasil soberano e mais voltado para as necessidades essenciais de sua gente.

Espero estar conseguindo ser um educador com essa pegada, espero que minha atuação na sociedade como especialista seja medida pelo compromisso com a nação, assim como meu mestre. Se não conseguir, ao menos não deixarei de tentar.

Muito se fala de pensamento crítico, mas isso não se aprende só lendo e aplaudindo quem ousa tomar posição. É preciso colocar isso como sua principal prioridade para conseguir absorver. Se o Brasil regride economicamente, se sua sociedade se polariza e fratura, se o sentimento de inferioridade aumenta e a civilização só é vista com característica das outras nações, e se somos um povo sangrando pela cultura do ódio e com instituições acovardadas… Enfim, o que nunca se elimina é o pensamento crítico que se adquiriu. É para isso que Wilson Cano contribuiu até o fim e é isso que representa, um pensamento crítico que sobrevive além da sua existência.

Wilson Cano não descansava, nunca parou de trabalhar. E, como mestre, sempre dizia: encare a realidade, aprenda a fazer as perguntas e não canse de trabalhar a partir delas, use seu potencial combativo para transformação social e não se acomode na posição profissional que conquistou. Continuaremos encarando a realidade e amanhã vai ser um novo dia. Obrigado, mestre.