MÍDIA
Fernando Nogueira da Costa | No Blog Cidadania & Cultura
Aprendi História Econômica do Brasil com o Professor Wilson Cano. Em passagem do seu curso, apontou, entre outras lacunas do conhecimento sobre a economia brasileira, ninguém saber por qual razão os bancos privados mineiros se sobressaíram no País.
Como único mineiro da segunda turma de mestrado do Departamento de Economia do IFCH-UNICAMP, a pergunta parecia ter sido dirigida a mim. Cumprido os créditos, não tive a menor dúvida: convidei-o a ser meu orientador para pesquisar e escrever uma Dissertação de Mestrado a respeito daquela pergunta-chave para entendimento do sistema financeiro nacional.
Com muita honra para mim, ele, então Diretor do IFCH (1976-1980), além de manter suas tarefas docentes, aceitou! Sempre foi assim: um Mestre prestativo, simples, deixando tudo às claras. Todos os capítulos entregues eram lidos de imediato e devolvidos com anotações manuscritas pertinazes, inclusive para eu jamais usar adjetivos em texto técnico, só dizer coisas substantivas. Fiz a pesquisa de campo em 1977 e fui o primeiro aluno da turma a defender sua Dissertação no ano seguinte.
Deu as dicas necessárias para um pesquisador inexperiente, inclusive uma carta-de-apresentação. Eu, ingênuo, a entreguei na portaria do Banco do Estado de Minas Gerais. O porteiro deu uma espiada e me perguntou: “Pesquisa de que? Consumo de que?!”
Aprendi no Brasil importar sim a rede de relacionamentos pessoais. Com base no “filho de quem”, “sabe com quem você está falando”, “sou amigo do concunhado de sua sobrinha”, conseguia chegar às cúpulas dos bancos. Pouco sabiam de suas histórias. Velhos funcionários me narravam muito mais. Testava hipóteses nas entrevistas.
Meu Orientador, inclusive no doutorado, dizia-me: pesquise os Relatórios dos Presidentes da Província. Entendi: eram os governadores. Fui atrás no Arquivo Público de Minas, em Belo Horizonte, e na Biblioteca Pública da Praça da Liberdade. Depois, “peguei o jeito” e fui atrás dos Relatórios de Administração dos principais bancos. Visitei o Museu do Banco de Crédito Real de Minas Gerais, fundado em 1889, ainda no reinado de D. Pedro II, em Juiz de Fora. De lá foi um pulo para a biblioteca do Ministério da Fazenda na Avenida Antônio Carlos no centro do Rio de Janeiro.
Lá consegui até crônicas sociais e obituários sobre as vidas dos banqueiros, fora toda a coleção da Revista Bancária Brasileira – RBB, fundada em 1933. Nos anos 70s, nem se sonhava com internet. Tudo estava em papel. O Professor Wilson Cano conseguiu me colocar em uma pesquisa sobre Concentração Regional no Brasil. Foi a primeira assinatura na minha recém-tirada Carteira de Trabalho.
Com a ajuda-de-custo, conseguia convencer as bibliotecárias a me emprestar os relatórios imensos para xerocar em copiadora na rua. A biblioteca era no último andar. Descia carregando tudo para tirar os xerox. Empoeirado, voltava para casa com sensação de ser um trabalhador manual… A vida é difícil. O Professor me ensinou a lidar com ela.
Antes mesmo de defender minha tese – os bancos mineiros eram os maiores do Brasil porque não eram mineiros, mas sim nacionais: os primeiros a transpor a fronteira estadual e ter rede de agências nos principais centros urbanos brasileiros –, consegui via indicação de colegas um emprego no IBGE no Rio de Janeiro. Quando minha dissertação de mestrado, inscrita pelo meu Orientador, ganhou menção honrosa no Prêmio BNDES, ele me disse para não me acabrunhar: era a minha a primeira de História Econômica a conseguir alguma menção. Ele se orgulhava de a ter orientado.
Em 1985, resolvi fazer o doutoramento em Economia na UNICAMP. Como na época do mestrado, era o lugar onde eu não teria de ser aluno de economistas serviçais da ditadura militar brasileira.
De volta à Campinas, o Professor Wilson Cano, tendo assinado minha Carta de Apresentação para o doutorado, logo me perguntou: “qual é seu interesse na vida acadêmica?” Disse-lhe: “Meu projeto é ser um professor e intelectual público como o senhor: com postura digna e militante, defendendo seus pontos de vista com análise de fatos e dados”.
Ele me disse, tempo depois, ter surpreendido os colegas com sua indicação para eu ser contratado como professor do recém criado IE-UNICAMP. Eles achavam por eu ser muito militante, no Rio de Janeiro, não abandonaria a vida prazerosa da antiga corte para morar no interior. Lá, junto a inúmeros amigos, certamente teria mais vida pública. Porém, talvez tivesse uma formação intelectual menos profunda, menor dedicação à vida acadêmica e, afinal, à militância virtual ou presencial em todo o país.
O Professor Wilson também foi o avalista do meu aluguel em Barão Geraldo. Foi determinante na escolha do local da minha moradia: “Sua vida não girará em torno da Universidade? More próximo a ela”. Ganhei pelo menos duas horas por dia, desde 1985, quando deixei de enfrentar os engarrafamentos de ida-e-volta ao trabalho no Rio.
Na defesa da tese de doutorado, meu eterno Orientador me fez um elogio inesquecível para um simples orientando: “Eu aprendi tudo sobre bancos com o Fernando”. Como professor, seus três filhos educadíssimos foram excelentes alunos em meus cursos. Selma e ele os educaram muito bem!
Essas recordações pessoais são minha forma de sublimar o luto pela perda de seu apoio presencial sempre simpático, agradável, gentil, solidário. Adorava uma conversa-de-bar, dançar e jogar futebol. Em sua casa tem um campinho para jogar com filhos e amigos.
Não cabe apenas o exaltar ou enaltecer como ele foi sublime para mim. Nunca será demais o glorificar. Ele se sobressaiu como líder nato, fundador e dirigente do IE-UNICAMP em diversos cargos. Ele merece ser reverenciado pela retidão moral ou por seus feitos intelectuais.
Sua tese de doutoramento, defendida em 1975, e publicada em 1977, “Raízes da Concentração Industrial em São Paulo”, tem dupla dedicatória: “À minha mãe” e “Para meus alunos e colegas da UNICAMP”. Demonstra sua generosidade.
Antes dela, não tinham sido examinadas as raízes fundamentais do processo de concentração industrial em São Paulo nem seu papel na dinâmica inter-regional do país. Como ele demonstrou, “as origens do problema remontam, efetivamente, ao início do século XX e não, como se pensa correntemente, ao pós-Crise de 1929, quando muda o padrão de acumulação”.
Ele não analisa apenas a atividade cafeeira em São Paulo, antes de 1930, mas verifica também o desenvolvimento de relações capitalistas de produção ali vigentes e a formação de um complexo capitalista cafeeiro com diversas frações de capital, inclusive o industrial. Naquele período, o Estado adquire as condições para consolidar sua posição de liderança na industrialização brasileira após a Grande Depressão.
Ao contrário das demais regiões, São Paulo contou com elementos fundamentais para sua expansão diversificada e concentradora. Tinha avançadas relações capitalistas de produção, amplo mercado interno e, desde muito cedo, uma avançada agricultura mercantil, mesmo se excluído o café, além de um incipiente setor de bens de produção.
Esse método de análise “de dentro para fora” rompeu com a visão marxista vulgar do “imperialismo”, seja o externo, como o centro fosse determinante de todos os desenvolvimentos na periferia, seja o interno, como São Paulo fosse um sugador dos recursos naturais e humanos dos demais estados brasileiros. Muitos “intelectuais da província” não apreciaram essa reviravolta no olhar sobre a desigualdade regional.
Deixou claro a expansão industrial de São Paulo ter se dado pelo dinamismo de sua própria economia e não, como se poderia pensar, pela apropriação líquida de recursos provenientes da “periferia nacional”. A “periferia” perdeu o “jogo”, tanto pela sua débil integração ao comércio internacional quanto, e principalmente, por não ter desenvolvido relações capitalistas de produção mais avançadas e, por isso mesmo, não ter diversificado suficientemente sua estrutura econômica.
Mas ele demonstrava os agentes econômicos internos, com um projeto nacional bem planejado, poderem provocar o desenvolvimento socioeconômico a partir de forças internas, embora sem qualquer ideia de autonomia absoluta. Teriam de ter iniciativas de empreendedores e apoio de um Estado nacional não submisso à potência externa.
Infelizmente, o Professor Wilson Cano morreu lamentando a Era do Neoliberalismo ter dominado “corações e mentes” de muitos colegas economistas. Houve drástica mudança qualitativa e quantitativa da formulação da política econômica e dos estudos e pesquisas, em termos gerais, setoriais e regionais, a partir de fins da década de 1980.
A crise da dívida, a inflação crescente, os muitos planos de estabilização, a guerra fiscal e o poder e o desenvolvimento local dominaram a produção intelectual. A maior parte dos economistas e dos acadêmicos abandonou suas preocupações de longo prazo, de crescimento e desenvolvimento, tornando-se “curtoprazistas”, centrando sua produção sobre o câmbio, os juros, a inflação, a região e a cidade competitiva.
A partir da década de 1990, sobressaíram, em especial, os estudos sobre finanças públicas, metas de inflação, produto potencial e equivocadas análises sobre o PIB municipal, onde pontificaram a modelagem e uma alta dose de estéril econometria. Para isso, dizia, “foram muito importantes mudanças verificadas no Estado, mormente no desenho e no estreito manejo de sua política econômica em sentido neoliberal”.
Cabe aos seus inúmeros discípulos continuar sua luta pela mudança neste estado de coisas prejudiciais ao bem-estar social no Brasil.
PS: encontra-se toda sua obra intelectual para leitura em: https://www.wilsoncano.com.br/