Pedro Rossi | No Justificando

A naturalização da desigualdade tem dois problemas. Não existe um mercado justo e meritocrático. Ou pelo menos, um mercado justo e meritocrático é uma ideia extremamente controversa. Primeiro, o ponto de partida importa. Se sociedade já é desigual, essa sociedade imediatamente compromete a ideia de meritocracia.

Para realmente haver uma meritocracia é preciso que se tenha uma atuação forte do Estado.

Não se trata apenas de desigualdade de renda. O Estado opera na saúde pública, que vai garantir a saúde do bebê quando nasce. O Estado vai ter que investir na segurança pública, na educação pública. Deve garantir renda para que a criança possa ter tempo livre depois da escola. Tem que garantir o acesso à cultura. Vai ter que garantir uma série de questões, que dependem do gasto social, de gasto público. Ou, enfim, nós não teremos uma sociedade meritocrática.

Entretanto, o gasto público é justamente o alvo da sociedade brasileira e de várias sociedades mundo afora. Essa ideia de cortar gastos para tornar o mundo ainda mais eficiente. Bom, mas e a desigualdade social em todos os seus aspectos? E as chances das crianças brasileiras. Tudo isso tem que ser levado em conta. Por isso eu estou questionando essa lógica pra dizer olha: “uma sociedade meritocrática precisa garantir condições básicas para as pessoas e essas condições exigem, sim, uma atuação do Estado por meio do gasto social, por meio da garantia dos direitos humanos”. Pra garantir Direitos Humanos precisa-se de orçamento.

Por exemplo, para garantir a queda da mortalidade infantil, como aconteceu no Brasil até 2017. Pois então, foram 25 anos de queda da mortalidade infantil e em 2017 a mortalidade infantil voltou a aumentar. Isso é um absurdo. Isso não faz sentido do ponto de vista social, do ponto de vista das escolhas da sociedade. E junto com o aumento da mortalidade infantil nós observamos uma queda no orçamento dos condicionantes da mortalidade infantil. Queda no orçamento para saneamento básico. Queda no orçamento para saúde. Queda de transferências sociais que garantem as condições das famílias.

O capital torna a meritocracia impossível. Por mais que as pessoas tenham a mesma capacidade de trabalho, que exista mesmo um mercado justo, que vá dar a cada um o que merece.

Vamos supor que “Charles” e eu tenhamos a mesma capacidade de trabalho, e o mercado vai dar um salário que nos seja justo. Vamos supor, 15 mil reais. Mas eu tenho um capital e o Charles não tem, eu tenho um apartamento e o Charles não tem. Vamos supor que Charles alugue meu apartamento e irá me pagar 3 mil reais dos 15 mil reais dele. Veja, nós temos a mesma capacidade de trabalho, mas Charles irá me transferir uma renda pessoal dele e eu tenho mais dinheiro que ele no final das contas.

Isso vale pra tudo. Se eu tiver dinheiro no banco aplicado em títulos da vida pública, o Estado está me transferindo recursos. Se eu tiver uma ação, uma empresa irá me transferir recursos. Qualquer capital é uma transferência de recursos. Logo, sociedades com grande concentração de capital promovem a desigualdade. É da própria natureza do sistema. Daí a justificativa de se ter um olhar sobre o grande capital. Para evitar que as sociedades se transformem em algo feudal, em uma desigualdade grotesca.

Essa é a preocupação de Thomas Piketty. Uma sociedade que vai promovendo o capital, promovendo riquezas e se torna cada vez mais desigual que comprometem até as próprias democracias. E essa é uma discussão que está a todo vapor nas economias centrais.

As democracias das economias centrais estão colapsando por falta de representatividade. As pessoas já não se identificam mais com os sistemas políticos. Isso tem tudo a ver com o modelo neoliberal, com a lógica de funcionamento deste sistema. Porque essas democracias ganharam aderência justamente pelo fato do Estado entregar para a população serviços sociais, seguridade social.

Entregar um nível de desigualdade mais baixo. Entregar emprego. Isso gerava uma identificação com o sistema político. A partir da década de 80, quando esse processo de redução do gasto social foi acontecendo, houve um distanciamento da população dos próprios processos políticos.

No momento, o que a gente vê mundo afora, são pessoas desesperançosas elegendo políticos populistas, que prometem coisas e soluções fáceis. Buscando uma volta de um sentimento moral e religioso, ou a volta da segurança pública. Ou passam a apontar culpas, como por exemplo com os imigrantes, europeus, americanos, mexicanos. E isso tem causado uma inquietação internacional, pois as democracias não estão respondendo aos anseios da população e tem gerado fenômenos eleitorais como Trump, como Brexit. O crescimento do radicalismo de ambos os lados, direita e esquerda, nos países europeus.

Trata-se de um mundo em transformação caminhando para alguma coisa que ainda não nasceu. Nós temos uma crise do neoliberalismo, mas não temos ainda algo que se apresente como substituto desse sistema. Nós temos um mal-estar social, um mal-estar ambiental. Nós temos uma crise de sociabilidade. As pessoas sofrem uma pressão enorme de terem que apresentar um resultado, de serem um looser de um sistema que gera perdedores e vencedores. Há uma crise social à procura de uma resposta.

Nem sempre foi assim. As sociedades capitalistas do pós-guerra tinham uma ordem social completamente diferente que apresentou crescimento econômico sem precedentes na história do capitalismo. Apresentou uma redução da desigualdade nunca visto e garantias de direitos de uma rede de segurança social muito forte. Eu não quero aqui dizer a vocês idealizarem um determinado modelo, que é um modelo historicamente atribuído num contexto muito específico.

De outra forma, pior do que idealizar é esquecer o passado. Há lições que podemos aprender com o passado do sistema capitalista. E o passado do pós-guerra é muito específico, não tem como repetir aquela história. Porque é uma sociedade que se organiza depois de uma catástrofe, que foi a segunda guerra mundial. Mais de cinquenta milhões de mortos, se formos contar com o lado oriental da guerra.

A catástrofe que foi o entre guerras aniquilou a ideia do velho liberalismo. A partir da crise de 29 gerou ressurgimento dos autoritarismos e gerou também novas ideias. Uma rejeição total ao liberalismo, tanto do lado da extrema-direita e do fascismo, quanto pelo lado democrático como o de Roosevelt, nos Estados Unidos, com o New Deal.

As lições do entre guerras e a catástrofe da segunda guerra mundial foram fundamentais para montar os estados de bem-estar social que surgiram depois da segunda guerra. Esses Estados de bem-estar social aprenderam com a própria experiência de guerra. É importante se dizer que a experiência de guerra não tem mercado organizando nada. Na experiência de guerra se tem o Estado alocando recursos, o Estado dizendo o que se tem que produzir, consumir, de que maneira iremos racionar os recursos e direcionar para o esforço de guerra. É uma sociedade unida com um único objetivo que é vencer a guerra e essa união tem um reflexo imediata na economia. Não tem como ter liberalismo, ou mercado funcionando livremente em uma economia de guerra. E os países como a Inglaterra venceram a guerra. Venceram a guerra com a mobilização da sociedade na produção e direcionamento de recursos.

Qual a lição desse processo, qual o espírito que sai dali? O espírito de 1945 como diz o documentário de Ken Loach. O espírito de 45 era: “nunca mais vamos viver catástrofes de guerra, nunca mais nós vamos viver a tragédia que foi o entre guerras.” E mais do que isso: “Tudo é possível”.

Se a sociedade pode se unir para vencer uma guerra, organizar os recursos coletivamente da sociedade. A gente pode organizar os recursos da sociedade para vencer a paz. Para garantir moradia, para garantir saúde, para garantir desenvolvimento. Esse era o espírito de 45 que reinou na Inglaterra. E esse espírito elegeu um cara chamado Clement Attlee, que é um sujeito do Partido Trabalhista que disputou a eleição nada mais nada menos que Winston Churchill, que foi o grande vencedor da guerra.

Nesse tempo ele falava na rádio para famílias inglesas e mesmo assim elas disseram: “Não, Churchill foi bom para guerra, agora nós precisamos organizar a paz. E organizar a paz é organizar os recursos sociais da sociedade para o bem-estar social. Era isso que o povo queria. Eles não queriam o que aconteceu depois da primeira guerra, que só porque os soldados foram à luta e depois ficaram na miséria, jogados na miséria, amputados pedindo dinheiro, sem o Estado para te amparar. Essa história do Estado de bem-estar social. Ou seja, essa construção não vai se repetir como no caso dos ingleses. O que eles fizeram depois da guerra, eles nacionalizaram os recursos naturais, as rodovias, as ferrovias, construíram um sistema de saúde exemplar, fizeram um programa de moradia sem precedentes, tudo isso organizando os impostos da sociedade. Pensando na solidariedade comum que havia surgido após o final da segunda guerra mundial. Isto está longe de se colocar hoje. Muito longe, à ponto de se gerar uma ruptura no sentido de uma transformação completa no sistema que nós vivemos, mas isso nos traz uma lição.

O orçamento público e o papel do Estado são a sociedade quem decide. Nada mais é do que isto. O gasto público tem problema? Claro, tem corrupção, ineficiência, tem tudo isto, mas a sociedade pode resolver alocar seus recursos de maneira a reduzir seus problemas. Se a gente se responsabilizar pelos nossos problemas, pela desigualdade, pela miséria, pelo desmatamento na Amazônia, pela falta de cultura que queima museus históricos, nós podemos realocar os recursos da sociedade.

No Brasil, nós não vivemos junto com o resto da sociedade capitalista, com o centro da sociedade capitalista, esse processo de construção de bem-estar social que eles viveram. Nosso estado de bem-estar social é um estado tardio, com a constituição de 1988, que já pega os países centrais saindo deste momento histórico, já com essa lógica neoliberal embutida. E na CF de 1988, nós definimos sim uma sociedade com direitos universais à saúde à educação, com garantias de direitos do cidadão e deveres do Estado. E isso gerou um momento do gasto público que não é só dos governos anteriores. Desde a década de 1990 que o gasto social particular aumenta, FHC, Lula, Dilma. O gasto social vem aumentando.

Agora nós não resolvemos muito bem como financiar este gasto social. A sociedade topou construir um estado de bem-estar, mas não resolveu quem vai financiar. E aí esse financiamento ocorre da pior maneira possível, com impostos indiretos. De certa maneira, os ricos não pagam a conta, pois o Estado com uma mão dá os direitos e serviços sociais para os mais pobres, mas com a outra mão tira recursos por meio da tributação indireta. Isto é um problema para sociedade brasileira e é um problema que deve ser endereçado com uma proposta de reforma tributária.

Não dá para discutir reforma tributária sem colocar o tema da desigualdade no centro. Esse é um tema fundamental da reforma tributária. Outros temas são muito importantes, como o IVA (imposto sobre o valor acrescentado), a questão da eficiência, melhorar a competitividade das empresas brasileiras. Mas se vamos discutir reforma tributária, vamos discutir desigualdade também. Pois, por excelência, a tributação é o instrumento para enfrentar a desigualdade no Brasil. E o que acontece hoje é o pior dos mundos, pois o governo continua tirando com mão tributária e ainda não há perspectiva de mudança qualitativa e substantiva dessa regressividade tributária. Por outro lado, nós temos mecanismos fiscais, regras fiscais que garantem uma redução do tamanho Estado ao longo do tempo e que inevitavelmente vai reduzir gasto social, é inevitável. Ou seja, o governo continua retirando com a mão tributando os mais pobres e deixa de dar com a mão do gasto. Então do ponto de vista fiscal são dois lados da mesma moeda, a arrecadação de gastos.

O nosso gasto social reduz desigualdade no Brasil, principalmente com incentivo à saúde, mas também previdência, ou com o Regime Geral de Previdência Social. Isso é um ponto importante que fica escamoteado neste debate público. E nossa carga tributária é muito regressiva. Então pensar desigualdade no Brasil é pensar uma política fiscal mais distributiva. Para ampliar a capacidade distributiva da política fiscal e também melhorando a eficiência, sim, do gasto público, reduzindo desperdício, reduzindo privilégios. Mas, primordialmente, ampliando o gasto social e não reduzindo o gasto social. E isso significa também fazer uma reforma que zele pela eficiência, pela competitividade de nossas empresas, que tome também cuidado com o tema do federalismo. Mas que também que não deixe de enfrentar a questão do imposto sobre a renda, sobre a riqueza.

Então o Brasil neste processo acompanha os movimentos internacionais. Essa crise internacional que vem desde 2008 se arrastando e que agora vêm gerando fenômenos políticos, também gera efeitos políticos no Brasil. Também provoca mudanças de mentalidades, também gera as ideias novas, novos quadros, novos intelectuais. Novas formas de se pensar os sindicatos. Novas formas de preocupação social. Uma reação àquele individualismo exacerbados que predominou nos últimos anos.

Enquanto funcionava, todo mundo achava que esse era o caminho. O caminho era de fato o do individualismo e da concorrência entre as pessoas. “Tá tudo melhorando, vamos lá”. Agora não é mais, isso não é mais consenso. Existem novas ideias. Então nós estamos vivendo um mundo em transformação, onde o velho está agonizando, mas o novo ainda não surgiu. E eu acredito que este é o momento da gente pensar, da gente fazer esforços coletivos, como este que está sendo feito aqui. Estamos a discutir temas que são fundamentais para o futuro do Brasil e do sistema internacional.

As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.

Pedro Rossi é mestre e doutor em economia pela Unicamp. Formado em economia na UFRJ. Professor do Instituto de Economia da Unicamp, trabalha com aspectos macroeconômicos do desenvolvimento brasileiro, com impactos sociais da política fiscal e com o tema da taxa de câmbio e política cambial.