Fernando Nogueira da Costa* | No GGN
No debate público-eleitoral é um mau argumento o ad hominem (ao homem): em vez de discutir a ideia, fazer uma desqualificação do interlocutor por não ser especialista ou por juízo negativo de suas intenções. É comum atacar a pessoa, em vez da opinião dela, com a intenção de desviar a discussão da proposta desse oponente. A “culpa por associação” é desacreditar uma ideia ao associá-la a algum grupo malvisto em determinadas redes sociais. No caso da esquerda, o demônio é o “banqueiro rentista”.
Um exemplo desse mau argumento é dizer: a reação contrária de alguns economistas ligados aos bancos apenas revela o potencial competitivo da medida de progressividade tributária sobre o custo do crédito para obrigar o cartel bancário a sair de sua cômoda posição atual rumo a um cenário de maior concorrência. A “culpa por associação” está presente na seguinte “denúncia”: os arautos do mercado financeiro se posicionaram contra, utilizando o já conhecido argumento de o aumento da tributação ser repassado ao tomador final, produzindo um resultado oposto ao pretendido.
Arauto é o defensor de uma ideia ou uma causa, por exemplo, a viabilidade técnica e/ou a possibilidade prática de uma medida de política financeira. Se a questiona, não necessariamente está atuando em defesa de interesses escusos. O apelo para a falácia genética – um apego emocional negativo à origem do emissor de uma ideia – ocorre quando seu argumento é desvalorizado não por seu mérito, mas somente por causa da origem da pessoa crítica à proposta.
Para evitar tal “bate-boca”, é prudente apresentar evidências empíricas para os argumentos. A tabela acima mostra um nítido ciclo de alta e um de baixa na taxa de juros de captação, cuja proxy é percentual de CDI, uma taxa próxima da Selic – taxa de juros básica de referência – regulada pelo Banco Central. O ciclo de alta da taxa de juros de empréstimos ocorreu com defasagem, porque o auge nessa série anual aconteceu em dezembro de 2016 – e não um ano antes como no caso da taxa de aplicação. Embora a taxa de captação tenha voltado em julho de 2018 para patamar próximo de dezembro de 2012 (6,7% aa contra 6,5% aa), durante a “Cruzada da Dilma” contra os altos juros, a taxa de empréstimos não voltou na mesma dimensão (24,5% aa contra 18% aa). Resultado: o spread recente está bem superior ao de 2012 (17,8 pp contra 11,5 pp). Por que?
Antes de tentar responder a tal questão, vale destacar a diferença entre esse spread do crédito total para o de seus componentes. Em julho de 2018, para crédito com recursos livres a diferença era bem maior: 29,4 pp na média, sendo 12,7 pp para PJ e 42,7 pp para PF. Desconsiderando o crédito rotativo (para cartões de crédito e cheques especiais), o spread no não rotativo estava em 20,1 pp na média, sendo 6,6 pp para PJ e 33,4 pp para PF. Para crédito com recursos direcionados a diferença era bem menor: 4 pp na média, sendo 3,9 pp para PJ e 4 pp para PF.
Se não se entender a importância dessa última modalidade de crédito (com recursos direcionados) não se compreende como a economia brasileira funciona apesar de taxas de juros de empréstimos tão elevadas. Em julho de 2018, esse crédito para PJ equivalia a 10% do PIB e para PF, 12,1% do PIB, ou seja, quase metade do saldo total (46,4% do PIB) era concedido com esses recursos direcionados.
Para obter capacidade analítica do ciclo de crédito é prudente recorrer a duas teorias: a de Hyman Minsky para a alta e a Joseph Stiglitz para a baixa. Para o ciclo de alta, a teoria pós-keynesiana destaca a elevação da fragilidade financeira, progressivamente, com o excesso de crédito facilitado por bancos menos exigentes de garantias para a concessão de empréstimos, dada a queda da taxa de inadimplência. Para o ciclo de baixa, a teoria novo-keynesiana alerta para a assimetria de informações entre o credor e o devedor, causadora do problema de seleção adversa, risco moral e racionamento de crédito.
Como o credor não possui informações suficientes sobre as condições de solvência e a reputação do tomador de crédito, em especial se for PF, ele tende a impor um custo maior de forma a remunerar o pressuposto maior risco atribuído à operação. Como antecipa uma possível inadimplência no futuro, dada a elevação do desemprego e da queda de renda, os bancos cobram uma taxa de juros mais elevada para não terem prejuízo nas concessões de crédito. O resultado é, justamente quando mais precisam de crédito, durante a má fase econômica, quase todos os potenciais tomadores de crédito serem indistintamente sacrificados pelos juros mais altos cobrados. Até o tomador com cadastro histórico saudável é desestimulado a buscar crédito no sistema bancário para iniciar algum empreendimento.
Essa falha de informações afeta particularmente o crédito para pessoa física por ser muito pulverizado e custoso personalizar o atendimento de cada cliente. Essa falha de mercado explicar o comportamento não competitivo dos bancos no crédito para pessoa física ao contrário do caso de grandes empresas (corporate). Daí o apelo para se construir central de informações de crédito, o chamado “cadastro positivo”, para apurar a avaliação e a mitigação do risco com informações atualizadas sobre a capacidade de pagamento de dívidas por parte de pessoas físicas.
Outra falha no processo se refere ao arcabouço institucional-legal vigente para recuperação de crédito. Essa falha incentiva um comportamento oportunista de endividados, o que, por sua vez, desencadeia uma postura mais conservadora dos bancos na concessão de crédito com recursos de terceiros. Há um risco moral quando mesmo podendo pagar os devedores encontram artifícios legais de não cumprimento de seus compromissos e contam com o refinanciamento ou perdão de suas dívidas. Essa inadimplência acaba elevando o spread bancário e, em consequência, a taxa de juros de empréstimos para os adimplentes. A dificuldade jurídica para os bancos reaverem seus empréstimos faz o “bom” pagador ser penalizado pelo “mau” pagador.
Com prudência talvez exagerada, a solvência bancária no Brasil é superior à exigida pela própria autoridade monetária brasileira, por sua vez, superior à recomendada pelo Acordo de Basiléia. A alavancagem financeira no País é muito menor se comparada à existente no exterior. O conservadorismo dos bancos está associado à postura defensiva para preservar sua rentabilidade com carteira de títulos e valores mobiliários e prestação de serviços em vez do exercício de um poder de mercado cartelizado para impor o encarecimento do crédito. O credor não pode ficar desprotegido juridicamente.
A má qualidade das garantias e dos colaterais encarece o crédito. Sem agilizar a cobrança de dívidas na lentíssima “justiça” brasileira, esta acaba provocando o encarecimento do custo de capital. Nas modalidades de crédito com mais garantias os spreads são menores e o juro mais competitivo. Em julho de 2018, as taxas médias de juros por modalidade para pessoas físicas eram em cheque especial 12,3% a.m. (ou 303,2% a.a.), em crédito pessoal não consignado 6,7% a.m. (ou 118,5% a.a.), e em consignado, isto é, descontado na folha de pagamento, 1,9% a.m. (ou 24,9% a.a.). Para aquisição de veículo com alienação fiduciária do mesmo, uma pessoa física pagaria em seu financiamento 1,7% a.m. (ou 22,3% a.a.). Operações de financiamento no cartão de crédito rotativo estava em 11,6% a.m. (ou 285,2% a.a.).
Comparativamente com pessoa jurídica, há operações no Brasil para grandes corporações com spread significativamente menor se comparado ao pago pela mesma corporação nos países de capitalismo maduro. São empresas de alta reputação cujos empréstimos em grande volume são disputados agressivamente por todos os bancos por causa da economia de escala. O spread é pequeno, mas a massa de lucro na operação é superior no atacado se comparada à obtida no varejo pulverizado.
A atividade de concessão de crédito está associada a elevados custos fixos dos bancos, desde a análise do risco até os custos de agência bancária, e depois aos custos elevados incorridos no esforço de recuperação de créditos inadimplentes. Esses custos jurídico-administrativos teriam de ser cobertos por volume de crédito com risco mitigado muito superior para baratear as operações em termos relativos. Assim diluiria inclusive os elevados custos de observância no Brasil. A autoridade monetária supervisora do sistema financeiro impõe às instituições financeiras um amplo corpo administrativo para supri-la de informações necessárias para a gestão do risco sistêmico.
Por conta desses elevados custos, a concessão de crédito exige economias de escala: os bancos terem lucro com spread mais baixo e maior volume de empréstimos. O aumento do volume do crédito, durante um ciclo de alta, contribui para redução dos spreads. Portanto, fatores conjunturais ou cíclicos também determinam as dimensões dos spreads bancários, limitando a capacidade dos bancos para os reduzir voluntariamente. A demanda por crédito efetiva a oferta – e detona um processo de retroalimentação. Demanda por crédito depende da retomada do crescimento econômico sustentado.
As opiniões expressas no artigo são de inteira responsabilidade do autor.
*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018 - no prelo). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.