Fernando Nogueira da Costa | No GGN

Relatório especial da revista The Economist (16 de janeiro de 2020) avalia, nos últimos 70 anos, a habitação ter sofrido uma transformação notável. Até meados do século XX, os preços das casas em todo o mundo rico eram bastante estáveis. A partir do pós-guerra, porém, eles cresceram tanto em relação aos preços de outros bens e serviços quanto em relação à renda da maioria das pessoas. Os aluguéis aumentaram também.

Terras agrícolas, no século XVIII, eram a maior classe de ativos do mundo. No século XIX, as fábricas da Revolução Industrial se destacaram. Desde meados do século XX, a habitação passou a ser a maior garantia patrimonial de riqueza possuída por famílias.

Distingue-se das outras formas de manutenção de riqueza por sua liquidez. Os ativos monetários são plenamente líquidos. Os ativos financeiros apresentam uma certa liquidez, além de propiciarem rendimentos em juros. Os ativos imobiliários são imóveis ou, contabilmente, imobilizados.

Justamente por isso, as residências próprias, usadas como moradia principal, não são consideradas nos rankings internacionais de riqueza pessoal. Só os demais imóveis, colocados à venda ou para alugar ou fim-de-semana, são contabilizados como riqueza.

Três fatores principais explicariam a estabilidade de preços das moradias no capitalismo anterior a 1945. Primeiro, os mercados hipotecários se desenvolveram pouco. Segundo, as rápidas melhorias no transporte permitiram as pessoas viver mais longe do local de trabalho, aumentando a quantidade de terras economicamente úteis nas periferias das metrópoles. Terceiro, não havia muita regulamentação fundiária do uso do solo urbano. Os construtores de casas podiam construir da maneira mais conveniente para eles.

A democracia da posse do lar começou a ser construída na América, com o New Deal de Franklin Delano Roosevelt, em reação política aos efeitos sociais da Grande Depressão de 1929. Foi a tentativa de o governo norte-americano cobrir o déficit habitacional, onde o mercado livre tinha fracassado. Foi também o antídoto para a ameaça de revolução comunista, inspirada pela revolução soviética, ocorrida uma década e meia antes. No pós-guerra, foi uma arma ideológica do mundo ocidental em Guerra Fria contra a URSS.

Governos ocidentais “pró mercado livre” prometeram aumentar a propriedade da casa. Um país de ocupantes-proprietários, segundo os conservadores, seria financeiramente estável. As pessoas poderiam aproveitar o patrimônio de sua casa quando chegassem à aposentadoria ou se encontrassem em dificuldades. Voltada sobretudo a idosos, a modalidade de hipoteca reversa, por exemplo, prevê a alienação do imóvel pelo proprietário, mantendo o direito de uso da casa, em troca de uma renda vitalícia. É uma maneira de não se deixar o imóvel próprio como herança para filhos e dependentes. Deixa sim para o credor da hipoteca.

No final dos anos 1940 e 1950, partidos políticos ocidentais tornaram-se mais propensos a identificar a propriedade de casa como uma meta política. Tornou-se aparentemente comum o incentivo ao morador se tornar proprietário em lugar de pagar aluguel.

Nos Estados Unidos, a Administração de Veteranos concedeu hipotecas sem pagamento inicial aos veteranos em meados da década de 1940. O Canadá estabeleceu a Central Mortgage and Housing Corporation para beneficiar os veteranos de guerra. Em 1950, o governo japonês estabeleceu a Government Housing Loan Corporation para fornecer hipotecas de juros baixos e taxas fixas. Mudanças nos regulamentos financeiros internacionais também incentivaram os bancos a emitir hipotecas.

A segunda metade do século XX é vista como a “Era da Grande Hipoteca”. Em 1940-2000, o crédito hipotecário como percentual do PIB em todo o mundo rico foi além do dobro. A mobilidade social permitida, devido à sobra nos orçamentos familiares de cerca de 30% antes gastos com aluguel, deu a sensação de um Efeito Riqueza.

A sociedade da classe média norte-americana tornou-se afluente. O american way of life foi cultura consumista exportada para o resto do mundo como modelo a ser imitado. A taxa de propriedade de casas na América aumentou de 45% para 70%. A Grã-Bretanha passou de 30% para 70%, depois da Margareth Thatcher privatizar as moradias destinadas à classe trabalhadora e conquistar apoio antes dado ao Partido Trabalhista.

A expansão mundial dessa “democracia da propriedade” prometia tornar a maioria dos eleitores possuidora de residência. Favoreceu o sentimento conservador de proprietários, diferentemente do modelo de locação social da moradia. Este tinha sido adotado na maioria socialdemocrata dos países europeus.

Viver em imóvel alugado é mais comum na Alemanha em lugar de casa própria. Mais da metade dos habitantes do país aluga o imóvel onde vive. Apenas 18% dos 3 milhões de habitantes de Berlim têm casa ou apartamento próprio.

Após a queda do Muro de Berlim, em 1989, a cidade reunificada se viu com um excedente de apartamentos, muitos dos quais de propriedade do Estado. Em um esforço para gerar recursos urgentemente necessários para custear a reunificação de Berlim Oriental e Ocidental, muitos imóveis foram privatizados.

Investidores imobiliários estrangeiros não demoraram a entender o potencial de crescimento em Berlim, embora os aluguéis ainda custem significativamente menos se comparados aos de Londres, Paris ou Roma. Eles começaram a comprar e reformar apartamentos. Também começaram a cobrar aluguéis mais altos.

Ao mesmo tempo, a população de Berlim continuou a crescer. Entre 2012 e 2017, a cidade ganhou 250 mil habitantes, segundo cifras oficiais.

Esse conjunto de fatores levou a uma alta nos preços dos aluguéis, especialmente nos bairros mais procurados. Em 2017, Berlim foi a única grande cidade do mundo onde os preços dos imóveis subiram mais de 20% em relação ao ano anterior. Os aluguéis acompanharam essa alta por serem estipulados como um percentual do valor deles.

Os eleitores da cidade elegeram um governo de esquerda com característica socialdemocrata. Três milhões de inquilinos em Berlim vão se beneficiar da medida, aprovada em lei, dos aluguéis agora serem congelados, após uma fase prolongada de aumentos galopantes, expulsando moradores mais velhos ou de renda mais baixa. Vai sustar o movimento ascendente absurdo dos preços pelos próximos cinco anos.

Aprovada por legisladores, no dia 30/01/2020, está prevista para entrar em vigor em março. A medida é uma tentativa do governo de esquerda berlinense de barrar o processo de gentrificação de uma cidade atraente por seu cenário criativo, mas sentindo a pressão de investidores imobiliários e de projetos de infraestrutura.

Gentrificação é um processo de transformação de centros urbanos através da mudança dos grupos sociais ali existentes, onde sai a comunidade de baixa renda e entram moradores das camadas mais ricas. O fenômeno decorre da revitalização urbana em espaços até então abandonados. Por motivos turísticos ou até mesmo por investimento dos governos locais, começa um processo de revitalização dos espaços e o bairro se valoriza, atraindo turistas e moradores com renda mais alta. Isto provoca aumento do custo de vida no local e, por consequência, afasta seus moradores tradicionais.

Nas décadas de 1950 e 1960, os governos europeus construíram grandes quantidades de moradias públicas, em parte para reconstruir suas cidades após a devastação da Segunda Guerra Mundial. No entanto, ao mesmo tempo, muitos deles reforçaram a regulamentação da terra, restringindo gradualmente os construtores privados.

Nas décadas de 1940 e 1950, por exemplo, a Grã-Bretanha aprovou legislação para impedir a expansão urbana. Previa “cinturões verdes”. Em áreas de reservas e parques, em torno das cidades, passou a ser difícil obter permissão para construir. A partir da década de 1960, os construtores norte-americanos também começaram a ter sérias dificuldades em obter aprovação para a construção de novas casas.

De acordo com os cálculos do The Economist, a taxa de construção de moradias no mundo rico é metade da registrada na década de 1960. Tornou-se particularmente difícil construir em áreas de alta demanda. Manhattan viu permissão para 13.000 novas unidades habitacionais apenas no ano de 1960. Comparativamente, durante toda a década de 1990 apenas 21.000 novas unidades foram aprovadas.

O Centro para Estudos de Habitação da Universidade de Harvard constata a mediana do aluguel americano ter aumentado 61% em termos reais entre 1960 e 2016, enquanto a renda mediana do locatário cresceu 5%. Os ocupantes-proprietários resistem à expansão imobiliária em sua área, pois isso ajuda a preservar o valor de sua propriedade. Se a propriedade residencial aumenta, portanto, pode-se esperar a queda da construção de moradias no local também por retroalimentação: os preços dos terrenos se elevam.

Críticos neoliberais da medida de congelamento de aluguel acusam-na dela dificultar o crescimento necessário do mercado imobiliário. Dizem: afastará empresas dispostas a construir unidades habitacionais de custo acessível. Empresários do setor imobiliário e membros do partido conservador ameaçam contestar a lei berlinense, alegando a medida violar a Constituição alemã. Ela estipula os aluguéis serem regulamentados pelo governo federal. Ora, e se eles disparam sob o olhar indiferente desse governo?

“O teto imposto aos aluguéis equivale a uma desapropriação. É uma catástrofe para o mercado imobiliário berlinense”, reage um neoliberal, para quem O Mercado tudo resolve por si só. E melhor: enchendo seu próprio bolso!

As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.

 

* Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.