MÍDIA
Fernando Nogueira da Costa | Na Carta Maior
Uma visão sistêmica ou holista percebe a Falácia da Composição. Como nem todos conseguem jogar “o inocente jogo de ganhar dinheiro”, a total absorção nele da maior parte dos cidadãos pode deixar aqueles poucos sem o jogarem por motivos políticos serem alçados às paradas mais altas do poder da casta dos oligarcas governantes.
Ficam então mais livres para dedicar-se à sua ambição tanto de poder quanto de enriquecimento. Pior quando se aliam a eles os representantes corporativistas da casta dos guerreiros: militares, policiais, milicianos, etc. Isto sem falar em alguns membros desgarrados da casta dos mercadores-negociantes e da casta dos sacerdotes-pastores.
Desse modo, os arranjos sociais, ao substituir as paixões pelos interesses como princípio-guia da ação humana, para a governança, podem ter o efeito colateral de matar o espírito cívico e, desse modo, abrir a porta à tirania. A perda da riqueza (ou mesmo o medo de tal perda) podem predispor parte do povo eleitor a favor da tirania.
A escala da ascensão social seria na seguinte ordem. Primeiramente, busca-se prover ao necessário, e então ao supérfluo. Em seguida vêm as delícias, e depois as imensas riquezas, e depois súditos, e depois escravos. Em Repúblicas, governantes e eleitores.
Quanto menos prementes são as necessidades, mais aumentam as paixões. Pior quando se busca a qualquer preço o poder de satisfazê-las em benefício próprio.
A ideia de “homens empenhados na busca de seus interesses serem para sempre inofensivos” foi abandonada quando se descortinou, em sua totalidade, a realidade do desenvolvimento capitalista. O crescimento econômico, nos séculos XIX e XX, desenraizou milhões de pessoas, empobreceu numerosos grupos, enquanto enriquecia alguns poucos, causou desemprego em grande escala, durante as depressões cíclicas, e produziu o espírito do consumismo como status social.
Alguns daqueles apanhados por essas violentas transformações se tornariam, em certas ocasiões, presas das paixões. Os “negacionistas” (terraplanistas ou anti-vacina) são apaixonadamente zangados, receosos, ressentidos.
Esses acontecimentos foram analisados, entre outros, sob os termos de alienação, anomia, ressentimento, luta de classe.
- Alienação é a diminuição da capacidade do indivíduo em pensar ou agir por si próprio – e se desinteressar pelo destino do produto de seu trabalho.
- Anomia se refere ao estado social de ausência de regras e normas, onde os indivíduos desconsideram o controle social regente de determinada sociedade.
- Ressentimento se caracteriza pela existência de mágoas, rancores ou angústias ou sentir repetidamente as emoções negativas.
- Luta de classes designa os conflitos existentes entre os membros das classes mais abonadas e os das classes de renda e riqueza inferiores.
Sob o impacto desses eventos cataclísmicos, a doutrina ideológica, emergente nos séculos XVII e XVIII, tem um certo ar de irrealidade. Para seu exame, no Prefácio e nas Considerações Finais do meu livro digital – Fernando Nogueira da Costa – Economia como Componente de Sistema Complexo Adaptativo. fev 2022 –, resumi a obra-prima de Albert Hirschman (1915-2012), intitulada As Paixões e Os Interesses: Argumentos Políticos para o Capitalismo antes de seu Triunfo (Paz e Terra, 1977).
Paradoxalmente, a existência do direito à propriedade privada, em particular, da propriedade privada dos meios de produção, é essencial para fornecer ao povo não monolítico uma base material de contestação e oposição às autoridades do momento. O direito à liberdade de expressão pode ser coisa vazia se a pessoa com desejo de exercê-lo depender, para sua própria subsistência, das autoridades ou dos empregadores aos quais desejaria criticar.
Curiosamente, o argumento político moderno a favor de o capitalismo como condição necessária, mas não suficiente para a liberdade, hoje associado a autores ultraliberais tais como Mises, Hayeck, e Milton Friedman, foi originalmente proposto pelo anarquista Proudhon. Ele era conhecido pelo dito “a propriedade é o roubo”, mas Proudhon temia também o enorme poder do Estado e, então, concebeu a ideia de opor-lhe um poder “absolutista” similar: o da propriedade privada. Teria o papel de contrapeso.
Albert Hirschman apresenta as circunstâncias ideológicas do nascimento do capitalismo. Compara as circunstâncias históricas nas quais a atividade de ganhar dinheiro passou a ser considerada uma ocupação honrável com a tese de Max Weber sobre a Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
Desde o fim da Idade Média, e particularmente como resultado da crescente frequência das guerras civis e das guerras entre nações, nos séculos XVII e XVIII, iniciara-se a busca de um equivalente comportamento para o preceito religioso de autocontrole. Isto embora muitas guerras fossem travadas “em nome da fé até a morte”.
Weber estava interessado nos processos psicológicos através dos quais alguns grupos de homens – casta dos mercadores com apoio ideológico da casta dos sacerdotes-pastores – passaram a se dedicar, exclusivamente, à busca racional da acumulação capitalista. A análise histórica de Hirschman concentra-se na reação ao novo fenômeno por parte da hoje chamada de elite intelectual, executiva e administrativa. Eu prefiro a designar como casta da oligarquia governante com apoio da casta dos sábios-tecnocratas.
A primeira tese refere-se às motivações das novas elites ascendentes com base na pregação do ascetismo pelo protestantismo. A outra àquelas motivações dos diversos “cães de guarda” da situação (gatekeepers ou “porteiros”), como a casta dos guerreiros-militares e a casta dos oligarcas governantes.
Hirschman defende ser tanto possíveis quanto válidas suas descobertas de tipo simetricamente opostas à tese weberiana. As ações humanas e as decisões sociais têm consequências inteiramente diferentes da intenção inicial. Essas ações e decisões são empreendidas porque se espera com toda a sinceridade vir a ter certos efeitos, os quais, no fim das contas, deixam inteiramente de se materializar.
Os efeitos pretendidos, mas não concretizados, das decisões sociais ainda precisam ser devidamente descobertos. São mais desafiantes os conhecimentos das alternativas se comparados a aqueles efeitos não pretendidos – e tornados reais.
Algumas das mais atraentes e influentes críticas contemporâneas ao capitalismo insistem em denunciar o aspecto repressivo e alienante desse sistema. Antes, esperava-se e supunha-se precisamente o contrário dessa efetiva evolução sistêmica: o capitalismo reprimiria certos violentos impulsos humanos e moldaria uma personalidade menos multifacetada, menos imprevisível e mais unidimensional.
A preocupação anterior era com as forças destrutivas, desencadeadas pelas paixões humanas, com a única exceção, assim parecia na época, na “inócua” avareza. Supunha-se o capitalismo realizar exatamente aquilo logo mais denunciado como seu pior aspecto: o desejo de ganho desenfreado.
Após as Guerras Napoleônicas (1803-1815), o capitalismo se expandiu de maneira triunfante. A violenta “paixão” parecia, de fato, estar sob controle e talvez mesmo extinta na Europa. Tornou-se comparativamente pacífica, tranquila e voltada para os negócios. De acordo com o eurocentrismo, o novo mundo parecia carecer de nobreza, de grandeza, de mistério, e, acima de tudo, de paixão do antigo mundo.
Keynes constatou: “É melhor um homem exercer sua tirania sobre o seu saldo bancário em vez de ser sobre seus concidadãos” (The General Theory of Employment Interest and Money. London, Macmillan, 1936, p. 374). Trouxe de volta a velha ideia de ganhar dinheiro enquanto passatempo “inocente” e válvula de escape para as paixões dos homens, ocupando-os na atividade de acumular riquezas, em certa medida ridícula, mas essencialmente inócua.
Em sua Teoria do Imperialismo, Joseph Schumpeter argumentava a ambição territorial, o desejo de expansão colonial e o espírito guerreiro, em geral, não eram a consequência inevitável do sistema capitalista, como denunciavam os marxistas. O comércio internacional teria consequências geopolíticas benéficas e/ou pacíficas.
O capitalismo por si só não implicaria conquista e guerra. Seu espírito era racional, calculista e, por conseguinte, avesso ao risco na escala implícita nos lances da guerra e de outras patuscadas heroicas da casta dos guerreiros-militares.
As paixões não devem ser descartadas em situações nas quais é regra o comportamento motivado pelo interesse. Tanto os críticos quanto os defensores do capitalismo refinariam a qualidade de seus argumentos pelo conhecimento da história intelectual recontada por Hirschman. A História das Ideias não resolve as questões ideológicas, mas pode elevar o nível do debate intelectual em público.
As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.
* - Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor do livro digital “Segredo do Negócio Capitalista: Alavancagem Financeira” (2021). Baixe em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.