Pedro Paulo Zahluth Bastos* | Na Carta Capital

O governo Bolsonaro alega que as “contas não fecham” para justificar a Reforma da Previdência. A afirmação tem três problemas sérios.

Primeiro, a contabilidade do governo exclui as contribuições sociais que foram destinadas constitucionalmente para a Seguridade Social. O objetivo era exatamente que o sistema não dependesse apenas das contribuições dos trabalhadores e envolvesse alguma redistribuição dos lucros.

O artigo 195 da Constituição de 1988 (CF-88) instituiu o Orçamento da Seguridade Social, o que tornou residual a pobreza na velhice, além da extrema-pobreza e da pobreza rural. Calcula-se que quase 30% da queda da desigualdade na renda entre 2003 e 2012 decorreu do pagamento de aposentadorias e pensões pelo Estado.

A Seguridade Social é superavitária mesmo com a Desvinculação das Receitas da União (DRU) – estimada em cerca de R$ 500 bilhões nos últimos dez anos entre 2006 a 2015 – e com as desonerações tributárias concedidas sobre as suas fontes (R$ 158 bilhões, em 2015).

Embora o governo afirme que a previdência é deficitária, o projeto de reforma admite o contrário ao sugerir a mudança do art. 194 da CF-88, propondo uma nova “segregação contábil do orçamento da seguridade social nas ações de saúde, previdência e assistência social, preservado o caráter contributivo da previdência social”.

Antes desta “segregação contábil”, o suposto déficit resulta de contabilidade sem amparo legal. Em 2016, o governo Temer avançou na contabilidade criativa ao incluir as despesas relativas ao Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) da União na Seguridade. Ademais, propôs cálculos autuarias de longo prazo que não têm base científica.

O segundo problema é que as contas não são independentes da situação da economia. Entre 1998 e 2014, o crescimento do emprego formal resultou em uma média de crescimento real da receita do Regime Geral de Previdência de 6,1% ao ano, aumentando o superávit da Seguridade.

A crise econômica derrubou a receita para a taxa de – 2,3% ao ano entre 2015 e 2018. Hoje as receitas em termos reais são menores do que em 2012. A reforma não deve ser induzida pelo fracasso da gestão econômica ortodoxa da economia desde 2015.

O terceiro e maior problema é que a reforma não debate o sentido da Previdência. Seu objetivo é a mercantilização (“capitalização”).

Há basicamente dois modelos de Previdência no mundo. A CF-88 segue o modelo do Estado de Bem-Estar Social, imaginado de modo que os horrores do fascismo não se repetissem. Seu princípio é a garantia da segurança econômica para trabalhadores, desempregados, doentes e idosos.

O segundo modelo avançou na década de 1980 no bojo da revolta empresarial contra o Estado de Bem-Estar e o princípio de seguridade, que justificava a redistribuição de recursos para pobres e remediados.

A seguridade deveria ser substituída pela meritocracia. O argumento é que a segurança acomodava os indivíduos e prejudicava a produtividade e a criação de riqueza. A ideia era reduzir impostos para aumentar incentivos para o enriquecimento e reduzir direitos sociais de modo a endurecer a punição para os que indolentes que se mantinham pobres.

A prioridade da política social seria abandonar critérios elevados de bem-estar e focar nos extremamente pobres, garantindo apenas critérios mínimos de sobrevivência. Ao invés de assegurar o patamar salarial na aposentadoria, a Previdência pública deveria afiançar o mínimo e ser complementada pela poupança privada individual.

Na prática, a migração para fundos de pensão com contas individuais aumentou a desigualdade na velhice e criou grandes oportunidade de negócios na previdência privada, sem aumentar a taxa de investimento ou o crescimento do PIB como prometido.

É o princípio da seguridade que o governo que “reformar” a partir de argumentos “contábeis”. Quando os princípios (seguridade x mercantilização) são discutidos, porém, tocamos em questões mais profundas do que o equilíbrio contábil: se as “contas não batem” com receitas próprias, devemos abolir também as escolas, os hospitais e até mesmo as polícias? Para “as contas fecharem”, quantas brasileiras (e brasileiros) vão trabalhar até morrer? Quantos vão contribuir para o sistema sem receber dele na velhice? Quantos vão optar por não formalizar contribuições e permanecer desprotegidos por causa da expectativa de que, mesmo que contribuam, não serão protegidos? Como garantir as contribuições necessárias até mesmo para o equilíbrio contábil sem a expectativa de alguma solidariedade social na velhice e sem a recuperação do emprego formalizado?

Há perguntas ainda mais profundas. Uma sociedade desigual como a brasileira deve transitar para um regime de contas de poupança individuais ou deve aperfeiçoar um sistema robusto de redistribuição para financiamento solidário da seguridade social? Por que os indivíduos, ricos ou pobres, não são entendidos como cidadãos com diferente capacidade contributiva e que tem compromisso com um coletivo nacional e não apenas consigo mesmos ou, no máximo, seus familiares? Qual é o patamar adequado que a sociedade brasileira deve redistribuir, com justiça fiscal, para que cidadãs e cidadãos participem dos benefícios da civilização moderna e tenham proteção contra doenças, desinformação, desemprego e velhice indigna?

São perguntas deste tipo que devem orientar os cálculos da reforma da Previdência.

As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade do autor.

* Pedro Paulo Zahluth Bastos é professor no Instituto de Economia da Unicamp.