Fernando Nogueira da Costa | Na Carta Maior

Segundo a Bíblia, a Árvore da Vida é uma das duas árvores especiais colocadas por um ente sobrenatural no centro do jardim chamado Éden. A outra é a “Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal”, de cujo fruto, Eva, e depois Adão, acabaram por comer por influência de uma serpente. A serpente é O Mercado? Ou O Estado?

Em muitas outras crenças e mitologias se acham metáforas com as características do Éden bíblico. Numerosas ilustrações fornecem indícios de reflexos da Árvore da Vida e da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal nas crenças dos fenícios, sírios, persas, gregos, sicilianos, maias, astecas, javaneses, japoneses, chineses e indianos.

A mitologia escandinava, por exemplo, menciona uma árvore sagrada chamada Yggdrasill. Uma de suas raízes se alimentava em uma fonte onde se bebia todo o conhecimento e toda a sabedoria. Outra lenda fala de uma deusa guardiã das Maçãs da Imortalidade. Os deuses as partilhavam a fim de renovar a eterna juventude.

Infelizmente, apenas a queda da maçã chamou a atenção de Isaac Newton e levou a suas descobertas inovadoras, em vez do crescimento das maçãs. Na Física Newtoniana os economistas clássicos (e neoclássicos até hoje) se inspiraram para elaborar “o mecanismo de mercado” – e sua Lei da Gravidade: oferta e demanda em equilíbrio.

Em Economia, o mecanismo de mercado é uma mecânica pela qual o uso de dinheiro trocado livremente por compradores e vendedores otimiza a distribuição de bens e serviços. Dessa maneira, todos os planos seriam compatíveis entre si e com a disponibilidade de recursos. Este mundo idílico, forjado por economistas, é um paraíso como o Éden – e melhor: tem Evas sedutoras!

Nessa imaginação criativa, a economia de mercado livre é onde o setor privado (“o bem”) aloca todos os recursos. Em uma economia planificada, o setor público (“o mal”) se apropria de todos os recursos.

Na realidade, essas concepções são apenas polos ideológicos, divulgados por ultraliberais, para defenderem a sua concepção do paraíso: o livre-mercado. No mundo real, seja em Capitalismo de Estado, seja em Socialismo de Mercado, é comum a mistura. Em uma economia mista, equilibrada entre extremismos, há propriedades de ambos os setores, privado e público. O Estado busca corrigir as “falhas de mercado”, quando os recursos são alocados de acordo com as forças desequilibradas de oferta e demanda.

Ultraliberais da Escola Austríaca defendem a interferência estatal nas informações transmitidas pelos preços ser destrutiva. Por sua vez, o mecanismo de mercado não serve para bens públicos, devido à Tragédia dos Bens Comuns, quando indivíduos, agindo de acordo com seus próprios interesses, comportam-se em contrariedade aos melhores interesses de uma comunidade. Esgotam algum bem comum ao maximizar seu uso individualista. Logo, A Comunidade tem de se sobrepor a O Mercado e O Estado. Ambos não podem se desincrustar da sociedade em autorregulação.

Imaginemos, agora, o que seria caso o crescimento das maçãs inspirasse a troca da metáfora do “mecanismo de mercado” por “organismo de mercado”. Sob a inspiração de Charles Darwin, compreenderíamos melhor a economia como um complexo sistema adaptativo. Ele é composto por seres humanos e instituições interdependentes, em um mundo dinâmico e vivo, cuja dependência de trajetória não converge para equilíbrio.

“Se uma árvore cai na floresta e ninguém está perto para ouvir, há um som?” é uma questão científica e filosófica. Ela levanta dúvidas sobre a observação e o conhecimento da realidade. Podemos supor a inobservância de um mundo ser a contrapartida do observado em todo o mundo? O microeconomista ao observar apenas a árvore, isto é, o individualismo metodológico, consegue observar a floresta e/ou o ecossistema? O macroeconomista com visão holística adota o coletivismo metodológico, achando as instituições serem determinantes de todos os comportamentos individuais? Um Estado Totalitário planeja todas as ações individuais possíveis? Não é possível, nem desejável.

Onde está o laboratório de economistas? Muitos ainda não conseguiram localizá-lo. Estão perdidos entre a observação do mundo real, através do método histórico-indutivo, ou a abstração de um mundo ideal, através do método racional-dedutivo.

Até hoje, o racionalismo dos fieis seguidores ultraliberais da Escola Austríaca trata com desdém o empirismo das pesquisas científicas. Como adeptos do método racional-dedutivo, acham não necessitarem pesquisar dados para confirmar ou falsear suas hipóteses, pressupostas de antemão como lógicas. Pesquise se há alguma estatística para basear os argumentos dos crentes de O Livre-Mercado: inútil procurar!

Daí seus adeptos, de maneira oportunista, se utilizam dos regimes de força militar, seja ditatorial como no Chile do general Pinochet, seja de populista de direita como no Brasil do capitão juntador do corporativismo da caserna com o familismo miliciano. O aparente paradoxo do neoliberalismo, isto é, a apropriação do Estado como fosse “cosa-nostra” do eleito, para o desmantelar com privatização em favor de seus ex-parceiros de negócios, explica-se por só serem “liberais” na economia. São conservadores nos costumes e contra os direitos conquistados da cidadania por minorias eventuais.

Combinam regime de capitalização com regime militar. O primeiro é um regime financeiro formatado de modo a gerar reservas, por conta de rendimentos de juros compostos e renda variável no mercado de capitais. Imaginam isso ser capaz de garantir o pagamento de benefícios na aposentadoria. Essas reservas são incertas, na fase de vida inativa, embora as contribuições para a cobertura contratadas tenham sido certas durante toda a vida ativa. Esse regime, utilizado como alternativa ao regime de repartição em Previdência Social, prevê a incorporação dos ganhos nos valores aportados. Porém, fica sujeito a booms ou bolhas com choques iniciais de demanda sobre os ativos existentes, em especial das ações de poucas empresas dominantes da bolsa de valores.

Na bolsa de valores brasileira, ações de 30 das 332 companhias abertas listadas representam praticamente 2/3 dos negócios. É um mercado secundário pouco alimentado por IPO’s ou lançamentos primários de ações em aberturas de capital das empresas brasileiras. Em 2019, as ofertas públicas de ações (follow-on) se deram por venda de ações existentes, sobretudo, por estatais na sana de privatização. O valor de mercado de todas as abertas atinge só R$ 4 trilhões, ou seja, 57,5% do PIB.

É um mercado raquítico sujeito à manipulação especulativa em bolhas periódicas. No fim de 2017, eram 620 mil investidores Pessoas Físicas. Um ano e nove meses após, são 1,417 milhão – um aumento de quase 130%! Quase ½ milhão é composto por jovens na faixa de 26 a 35 anos, cujo valor médio per capita acumulado é R$ 35 mil. Em conjunto têm R$ 15 bilhões, enquanto 129 mil idosos acima de 66 anos têm R$ 115 bilhões.

Nesse ambiente de extrema desigualdade social, o ministro da Economia, ex-economista doutor pela Escola de Chicago e ex-banqueiro de negócios, queria “experimentar” o regime de capitalização como fez seus ex-colegas “chicagões” no Chile. Nenhum país, com a única exceção do Chile, na década de 1980 sob Pinochet, seguiu a recomendação neoliberal de uma rápida abertura às importações. O experimento neoliberal do Chile produziu a pior crise socioeconômica em toda a América Latina.

As manifestações estudantis no Chile, em 2011, surpreenderam muita gente. As ruas repletas em protestos por educação superior pública gratuita e de qualidade colocaram o tema na agenda política. Com a promessa de atender aos apelos estudantis, a socialdemocrata Michelle Bachelet conquistou mais de 60% dos votos e voltou ao poder.

A substituição total ou parcial de alíquotas ou mudança do regime de repartição para o de capitalização necessariamente gera déficit público. Essa transição pode ser financiada de três formas: via impostos, dívida pública ou venda de ativos. No caso da reforma da previdência do Chile, realizada em 1981, só com ditadura militar foi possível mudar completamente do regime de repartição para o de capitalização individual. O custo de transição representou um déficit fiscal de 3,8% do PIB em 1981, chegando no pico de 5,5% do PIB em 2004. O ajuste fiscal do Chile por conta dessa transição gerou desemprego e carência de renda para a maioria. E uma onda de suicídio de aposentados.

O PIB per capita do Chile passou de 27,4% em 1980 para 41,5% do indicador dos Estados Unidos em 2018, enquanto o do Brasil caiu de 39% para 25,8% no mesmo período. Esse indicador é extremamente enganador quando se compara países com grandes diferenças de população (210 milhões contra 18 milhões) e PIBs nominais (US$ 2,1 trilhões e US$ 264 bilhões). Ele não revela a concentração de renda e riqueza.

O risco de a taxa de juro nominal ficar abaixo da taxa de inflação pode impulsionar investidores saírem da renda fixa com risco soberano para investirem em renda variável com alto risco. Se houver um choque de demanda por ativos existentes, no caso, ações, para atender às carteiras dos Fundos de Previdência Privada Complementar (fundos de pensão fechados R$ 904 bilhões e abertos R$ 1,25 trilhão), os especuladores ganharão em curto prazo. Depois do estouro da bolha artificial, os futuros aposentados não terão recursos para custear suas necessidades básicas, tal com no Chile dos Chicago’s Boys.

Não confundir reserva de dinheiro com reserva militar. Esta é o conjunto dos cidadãos sujeitos às obrigações militares legais, caso nunca acontecido no Brasil, sem se acharem em serviço ativo. Pelo visto, militares como o capitão não se incomodam com reserva natural, florestal ou indígena. E tampouco com reserva financeira de aposentados.

GUEDES ( Drummondiana nº 1)

E agora, Guedes?
O Chile acordou,
A luz acendeu,
A noite esquentou,
Estudante gritou,
Revolta espalhou,
Escumalha aderiu...

E agora, Guedes?
O que será do Chile,
Se salário já não há
E a universidade pública
Virou paga por lá?
E os velhinhos suicidas,
Sem plano de saúde?
E o povo todo,
Sem saúde pública?
O que seus Chicago's Boys,
Mimados playboys,
Aprontaram por lá?

E agora, Guedes?
O metrô não veio,
Santiago parou,
O Chile descarrilhou,
Barricada surgiu,
Tudo queimou,
General decretou
Toque de recolher,
Não adiantou,
Povaréu desafiou...

E agora, Guedes?
A receita falhou?
Seu modelo faliu?
O Chile não era tão bom?
Eu não quis acreditar
Que você faria
Igual por aqui...
E agora que o Chile fracassou
Onde está seu modelo
Que já matou vinte,
Feriu cem,
Prendeu mil?...
Seu modelo chileno
Não era tão bom?
Como foi que faliu?

E agora, Guedes?
Chile não há mais...
Você está sozinho no escuro,
Perdido, sem rumo...
Mas errar é tão humano!
Corrija a rota,
Admita a derrota
Dos seus Chicago's Boys,
Seus Chicago's "Toys"
De gente que manda,
Comanda a miséria...

E agora, Guedes?
Que seu neoliberalismo
Nos lançou no abismo
Da desesperança?
Coragem!
Faça mea culpa,
Saia de cena,
Mas não fuja correndo,
Diga que falhou,
Beba o seu veneno
E morra com a honra
Tão pouca que lhe sobrou...
ANTÔNIO OSWALDO
(D'après Carlos Drummond de Andrade, in JOSÉ)

As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.

* Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.