João Vitor Santos e Patricia Fachin | Do IHU Unissinos
Enquanto o governo federal não apresenta uma proposta de reforma tributária, três projetos tramitam no Congresso Nacional: a PEC 45, a PEC 110 e o projeto da Reforma Justa e Solidária. As duas primeiras “têm como objetivo principal — e quase único — a simplificação na cobrança de impostos sobre o consumo”, enquanto a última, “além de propor a unificação de tributos, tem uma preocupação com a questão distributiva, tornando o sistema mais progressivo, mexendo no imposto de renda, no imposto sobre propriedade, grandes heranças e fortunas e também tem uma preocupação ambiental de garantir a sustentabilidade através das políticas fiscal e tributária”, diz Guilherme Mello, professor do Instituto de Economia da Unicamp. Na avaliação dele, “o foco quase exclusivo na questão da simplificação mostra os limites desse debate”.
Diferentemente das outras duas propostas, assegura, os temas da concentração de renda e do conflito federativo são centrais no projeto da Reforma Justa e Solidária. “A Reforma Justa e Solidária propõe isto: uma espécie de imposto sobre herança no estilo do imposto americano para incentivar que as pessoas, em vida, peguem suas heranças e as transformem em algo positivo para a sociedade, e não simplesmente em um sistema de reprodução das desigualdades, em que as próximas cinco gerações estão garantidas como milionárias”, explica. Além disso, informa, a Reforma Justa e Solidária propõe a separação dos tributos federais, estaduais e municipais, “garantindo a competência dos entes subnacionais”, e sugere a criação de impostos para garantir o desenvolvimento regional. “Estamos criando uma contribuição ambiental na Reforma Justa e Solidária para empresas poluidoras que emitem gases de efeito estufa e a ideia é que essas empresas ajudem a financiar o desenvolvimento regional e as próprias tecnologias verdes para fazermos a transição ecológica”, menciona.
Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, Mello defende uma ampla reforma, que altere as estruturas do sistema tributário e não apenas “uma mera mudança nos tributos sobre consumo”. A reforma, sugere, precisa ser “mais simples e mais eficiente, claro, mas mais justa, que apoie um desenho federativo mais justo e equilibrado e que tenha uma preocupação com a sustentabilidade ambiental”. Na avaliação dele, o maior desafio para fazer uma reforma tributária ampla “é vencer as barreiras políticas e a visão que está sendo vendida para a sociedade de que o brasileiro já paga muito imposto”. E adverte: “A única saída para o Brasil é repensar o sistema tributário como um todo, simplificando, sim, ganhando eficiência, evidentemente, mas combatendo a sonegação, aumentando a progressividade, dando um viés sustentável ambientalmente de desenvolvimento regional, vinculando essas mudanças a uma melhora no financiamento de educação, saúde e serviços sociais”.
Guilherme Mello é graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP e em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, mestre em Economia Política pela PUC-SP e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, onde leciona atualmente e dirige o Centro de Estudos de Conjuntura do IE/Unicamp.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Como avalia as propostas de reforma tributária que têm sido discutidas pelo Legislativo e pelo Executivo?
Guilherme Mello — Temos definidas pelo menos três propostas: a proposta que está na Câmara dos Deputados, a PEC 45, que é de autoria do Centro de Cidadania Fiscal; a proposta que está no Senado, do deputado Luiz Carlos Hauly, que foi aprovada na Câmara na legislatura passada e que teve como inspiração a proposta do Centro de Cidadania Fiscal, mas não é exatamente a mesma; e temos, já protocolada, a proposta da oposição, que é a Reforma Justa e Solidária. Além disso, há outras propostas de imposto único, mas que não têm muito espaço no debate legislativo.
A proposta da PEC 45 e a do Hauly têm como objetivo principal — e quase que único — a simplificação na cobrança de impostos sobre o consumo — de impostos indiretos e, em particular, impostos sobre o consumo. A proposta do Hauly, que está no Senado, amplia um pouco isso: inclui mais tributos e mexe um pouco na tributação sobre folha [de pagamento], incluindo isso no Imposto sobre Valor Agregado - IVA. Em ambos os casos, o foco quase exclusivo na questão da simplificação mostra os limites desse debate. Isto é, os proponentes, os patrocinadores dessas propostas — Rodrigo Maia na Câmara e [Davi] Alcolumbre no Senado — topam entrar num debate de simplificação dos impostos sobre o consumo, mas não aceitam ou pelo menos inicialmente não se mostraram abertos a outras discussões extremamente relevantes no debate tributário, como, por exemplo, a questão da progressividade do sistema.
Sabemos que, no Brasil, o pobre paga muito imposto e o rico paga pouco imposto, exatamente porque há um peso exacerbado de impostos sobre o consumo e impostos indiretos em geral e um peso pequeno de impostos sobre grandes rendas e patrimônio. E tanto o Maia quanto o Alcolumbre não colocaram o tema da progressividade como central no debate, pelo menos nas propostas que estão em discussão. Quem coloca isso como tema central, com certeza, é a proposta da oposição, da Reforma Justa e Solidária, que, para além de propor a unificação de tributos, tem uma preocupação com a questão distributiva, tornando o sistema mais progressivo, mexendo no imposto de renda, no imposto sobre propriedade, grandes heranças e fortunas e também tem uma preocupação ambiental de garantir a sustentabilidade através das políticas fiscal e tributária.
Questões federativas
Além disso, como pano de fundo das três propostas, tem uma questão federativa importante: historicamente, no Brasil, as iniciativas de reforma tributária encontram resistência de governadores e prefeitos, que têm medo de perder a arrecadação e ver a arrecadação tributária ainda mais centralizada no governo federal. A PEC 45 tenta contornar isso com um prazo maior de transição. Da mesma forma, a proposta do Senado também prevê um prazo de transição, mas não tão longo. Em particular, a PEC 45 tem uma dificuldade, que é a perda da autonomia tributária, ou seja, da competência que estados e municípios têm hoje com Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS e Imposto Sobre Serviços - ISS. Eles vão perder essa competência para um comitê gestor, que seria composto, inclusive, pela União — algo que os estados e municípios não aceitam. Do ponto de vista federativo, a Reforma Tributária Justa e Solidária tem uma vantagem porque ela separa o que são tributos federais do que são tributos estaduais e municipais, garantindo a competência dos entes subnacionais. Mas, além disso, a Reforma Justa e Solidária cria mecanismos para financiar o desenvolvimento regional.
Hoje, um dos instrumentos ruins de desenvolvimento regional para os estados menos desenvolvidos é a chamada guerra fiscal. Com o novo formato do IVA, que vai ser cobrado no destino, isso perde muito sentido. Então, a questão é como será possível manter, por exemplo, na Zona Franca de Manaus, incentivos fiscais para empresas do Nordeste etc. Na PEC 45 é possível até formar um fundo, mas isso vai representar um aumento ainda maior da alíquota do IVA, ou seja, pode até aumentar a participação nos impostos indiretos e sobre o consumo na carga total, o que implicaria uma piora na regressividade. Então, na proposta da Reforma Justa e Solidária, é possível financiar esses instrumentos de desenvolvimento regional através de mudanças em impostos indiretos e contribuições ambientais, o que melhora a progressividade do sistema. Como é possível perceber, é quase impossível falar apenas de simplificação sem tocar nos temas federativo, da distribuição de renda e da progressividade.
IHU On-Line — Quais são os maiores problemas da PEC 45, que tramita na Câmara, e da PEC 110, que tramita no Senado?
Guilherme Mello — Ambas têm um problema central porque só focam na simplificação. A PEC 45 é uma proposta um pouco mais “dura”, de “manual”. Se pegarmos um manual de como deveria ser um IVA, ela está mais próxima desse modelo — claro, enfrentando os dilemas de ter um país com uma estrutura federativa um pouco diferente, como é o caso brasileiro. Qual o problema desse modelo? Do ponto de vista federativo há uma perda de competência dos estados e municípios, que vão poder estabelecer as suas alíquotas próprias dentro do IVA, mas eles terão que dividir a gestão e a fiscalização com o governo federal e, com isso, perdem a competência tributária, o que é um problema. Além desse, tem outro problema federativo que é o fato de que estados e municípios mais pobres vão perder um instrumento de desenvolvimento regional, o que dificilmente será compensado. Até é possível criar um fundo, mas quanto maior for esse fundo, maior será a alíquota final do IVA. E a alíquota do IVA brasileiro — do Imposto sobre Bens e Serviços - IBS — tende a ser umas das maiores do mundo, o que é muito ruim.
Além desses problemas federativos, existem outros problemas. Por exemplo, a PEC 45 prevê a devolução de imposto para as pessoas mais pobres, mas, a princípio, essa devolução seria feita através de Nota Fiscal Eletrônica - NFE. Assim, a pessoa que é mais pobre e tem seu nome no cadastro único do governo federal, que é o cadastro que congrega os beneficiários de programas sociais, teria que ter a NFE. Porém, sabemos que a NFE não é uma prática 100% disseminada, nem no Brasil nem nas grandes cidades brasileiras, pois tem muito comércio informal etc. Isso poderá gerar até um aumento da carga tributária dos mais pobres se eles não conseguirem comprovar a compra dos seus produtos, porque hoje, alimentos básicos, cesta básica e remédios são isentos de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS. No entanto, a partir do IVA, não haverá exceção por produto, uma vez que o IVA não é cobrado por produto, mas por estado e município e tem uma alíquota federal única. Então, a cesta básica e todos os bens passarão a ser tributados, não serão mais isentos, segundo a PEC 45, e o mecanismo de devolução é incerto.
Como essa questão se resolve na Reforma Justa e Solidária? Prevendo que esses bens prioritários de primeira necessidade — medicamentos, transporte público, cesta básica etc. — serão isentos do IVA até que se desenvolva uma estrutura de nota fiscal que seja compatível com as necessidades dos mais pobres, ou seja, quando a NFE estiver muito mais disseminada e essa mudança não prejudicar os mais pobres. Com essa estrutura é possível até focalizar a devolução do imposto: devolver só para aqueles beneficiários que compram cesta básica e não para mim, que sou professor universitário. Então, a PEC 45 tem esse problema da regressividade, que pode sempre ser ampliada, inclusive pode ser ampliada também porque pode haver, diante da crise fiscal dos estados e municípios, uma certa guerra fiscal às avessas. Isto é, em vez de os estados e municípios reduzirem as suas alíquotas para atrair empresas — que é o que acontece hoje na guerra fiscal —, eles aumentarão um pouquinho suas alíquotas para cerca de 1% acima da média e assim ganhar arrecadação para financiar os projetos dos prefeitos e governadores. Se isso acontecer de fato, a alíquota final do IVA crescerá ainda mais, o que fará com que a regressividade aumente. Mesmo o IVA sendo um bom imposto, ele é um tributo indireto sobre o consumo, que via de regra afeta mais os mais pobres. Portanto, seria muito importante, para o sistema tributário como um todo, que se mexesse nos impostos diretos e se aumentasse a participação da tributação sobre a renda e o patrimônio para poder reduzir a participação dos impostos indiretos na carga tributária total.
Temos aí, como falei, mais de um problema federativo — a questão do desenvolvimento regional e das competências tributárias —, um problema de devolução desse imposto, uma discussão que está ligada à questão da distribuição e da progressividade do sistema, e tem uma última questão, que está ligada mais diretamente à vinculação de recursos. Na proposta da PEC 45 se mantêm várias vinculações para a saúde, a educação e a previdência, mas se juntou a vinculação para a educação e a saúde em uma coisa só e se deixou para o arbítrio do governante decidir o quanto vai investir em saúde e educação. No entanto, isso é um problema, porque diante da crise na saúde há uma tendência natural dos governos de centrar os gastos ali e preterirem a educação.
Na proposta de reforma solidária, isso está muito mais separado, porque além de separar o que é imposto estadual e municipal do que é imposto federal, também se separa o que é contribuição do que é imposto. O IVA, ao contrário, mistura tudo: contribuição federal, imposto estadual, imposto municipal, contribuição com imposto e, inclusive, um imposto federal, o IPI, que é um imposto seletivo. Então, se misturam coisas diferentes e níveis federativos diferentes em uma coisa só; por isso é uma proposta tão complicada.
Na proposta da Reforma Justa e Solidária, isso é separado: o que é federal fica no âmbito federal, o que é estadual e municipal fica em seu âmbito, o que é imposto de arrecadação e o que é imposto seletivo permanece assim e o que é contribuição continua como contribuição, porque aí se mantêm as vinculações e se retoma o padrão de financiamento da saúde e da educação, que a Emenda Constitucional 95 destruiu.
IHU On-Line — Em que medida a unificação de tributos pode impactar as finanças de estados e municípios?
Guilherme Mello — É importante simplificar, mas não podemos cair no erro de achar que menos tributo significa uma estrutura mais simples. Claro que o Brasil tem um exagero no número de tributos, mas ao mesmo tempo é possível ter um único tributo e ele ser muito complexo. Veja o ICMS: ele é o mais complexo de todos. Mais importante do que a quantidade dos tributos é a simplicidade na forma como ele é cobrado, se ele não tem mil e uma exceções, regras diferentes aqui e ali. Todas as propostas têm avanços na simplificação. Como eu disse, a diferença entre elas é que a PEC 45 e a PEC 110 misturam coisas diferentes e juntam tudo num mesmo imposto e aí surgem tanto as dificuldades de negociação federativa, quanto de discussão de vinculações e, por fim, a natureza dos tributos. Se temos um tributo seletivo e juntamos tudo num tributo geral, abrimos mão de ter uma tributação seletiva sobre alguns produtos. Então, é importante separar as coisas para ter os instrumentos corretos.
IHU On-Line — Como o senhor analisa o atual sistema tributário brasileiro? De que reforma tributária, de fato, o Brasil precisa?
Guilherme Mello — O sistema tributário brasileiro é uma das maiores deformações do sistema econômico. Ele foi criado na ditadura militar pela reforma de 1966, com Roberto Campos e [Otávio Gouveia de] Bulhões com o objetivo de financiar um Estado desenvolvimentista, mas um Estado concentrador de renda, como era o da ditadura militar. Então, aquele Estado não tinha preocupações federativas, porque estava numa ditadura e, portanto, centralizou os recursos na União, e não tinha preocupações distributivas porque era uma ditadura que se baseava na concentração de renda para aumentar o investimento e o crescimento. Com essas características, é óbvio que aquele modelo foi funcional para aquele período, mas não faz o menor sentido num período democrático em que se tem uma preocupação federativa de descentralização maior e distributiva.
A Constituição de 88 até tentou melhorar um pouco o sistema: desconcentrou um pouco a arrecadação, distribuiu para estados e municípios, garantiu a autonomia e mudou alguns impostos. Acabou com os impostos únicos e os juntou no ICMS. No entanto, com o passar do tempo, em particular nos anos 1990, essa estrutura foi se deteriorando muito, porque o país entrou em crise várias vezes nesse período, e para pagar os altos juros o o governo queria produzir resultados fiscais, por isso aumentou muito a carga tributária: mais de 6% do PIB. Esse aumento da carga tributária se deu pelo aumento de alíquotas de impostos e, em particular, de contribuições, porque o governo federal não precisa dividir as contribuições com estados e municípios, portanto recentralizou as receitas na União e criou uma estrutura de contribuições e impostos cada vez mais complexa e mais regressiva. Houve algumas mudanças no PIS e Cofins para mitigar essa cobrança de impostos em cascata, mas isso não mudou a estrutura do sistema tributário.
Durante os governos Lula e Dilma ocorreram poucas mudanças no sistema tributário; o governo se concentrou em mudar a estrutura dos gastos e priorizar gastos sociais, saúde, distribuição de renda e investimento público, mas não enfrentou diretamente a mudança na estrutura tributária, talvez por falta de apoio político, ou porque não era uma questão prioritária. Com a crise, a necessidade de mudança na estrutura tributária ficou mais evidente, até porque crescentemente a estrutura tributária é um problema para os entes federados — a Lei Kandir é um problema porque os estados acumulam créditos e não recebem, os exportadores também — , para os produtores que gastam muito tempo, esforço e pessoal para pagar os seus impostos, e tudo isso é um custo. Então, o tema da simplificação ganhou muita força entre os empresários porque, quanto mais simples for o imposto, menos tempo com burocracia eles perdem e menos funcionários eles têm que contratar para isso. Então, é um tema importante, em particular, para garantir competitividade e para evitar a sonegação. Mas muito mais importante do que isso — e pouco discutido tanto na PEC 45 quanto na PEC 110 — é o tema da concentração de renda e do conflito federativo; é esse tema que a Reforma Justa e Solidária tenta abordar.
Temos que aproveitar a oportunidade de estarmos discutindo a reforma tributária para fazer uma verdadeira reforma, e não uma mera mudança nos tributos sobre consumo, mas uma reforma na estrutura tributária brasileira para ter uma estrutura mais simples e mais eficiente, claro, mas mais justa, que apoie um desenho federativo mais justo e equilibrado e que tenha uma preocupação com a sustentabilidade ambiental. É essa a reforma que temos que visar daqui para frente. Para isso, é preciso mexer em coisas que incomodam os mais ricos, como a tributação sobre grandes rendas; mudar o imposto de renda tanto de pessoa física quanto de pessoa jurídica; retomar a tributação sobre distribuição de lucros e dividendos que o FHC isentou em 1995; retomar alíquotas maiores de impostos para grandes rendas — rendas acima de 100 mil, porque a estrutura de alíquotas do imposto de renda no Brasil hoje só é progressiva até 40 salários mínimos, depois disso começa a ser regressiva, ou seja, quanto mais a pessoa ganha, menos ela paga.
É preciso revisar a tributação sobre pessoa jurídica também.
O sistema de lucro presumido fez sentido no passado, mas não faz mais sentido hoje; é possível transferir tudo para lucro real e simplificar. No geral tem que se pensar a tributação sobre renda e grandes heranças, grandes fortunas. Nos EUA, a tributação sobre grandes fortunas é enorme, tanto que os milionários fazem as fundações.
A Reforma Justa e Solidária propõe isto: uma espécie de imposto sobre herança no estilo do imposto americano para incentivar que as pessoas, em vida, peguem suas heranças e as transformem em algo positivo para a sociedade, e não simplesmente em um sistema de reprodução das desigualdades, em que as próximas cinco gerações estão garantidas como milionárias.
IHU On-Line — Por que, no Brasil, é tão difícil esse debate acerca da tributação sobre grandes fortunas e heranças?
Guilherme Mello — Acredito que este tema é muito delicado porque, obviamente, quem tem grandes fortunas e heranças não aceita debater o assunto e, em geral, essas pessoas são aquelas que detêm o poder político e financiam lobbys e deputados. O poder político delas faz com essas políticas não avancem.
Não podemos esquecer que no Brasil, historicamente, o poder de quem tem dinheiro e quem tem riqueza sempre foi muito grande. O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, em grande medida por causa da resistência de quem tinha poder e dinheiro. Quando se aboliu a escravidão, quem tinha poder e dinheiro exigia ressarcimento por ter perdido ativos, bens, pois via o escravo como um ativo ou um bem. Então, existe uma tradição política no Brasil, e em todo o mundo, em que essas classes sociais têm um enorme poder e ameaçam: dizem que se tributarem a riqueza, vão tirar suas riquezas do país. Mas isso não é tão simples assim, porque é possível tributar grandes fortunas sem que haja evasão. Há países que adotam tributação sobre riquezas ou grandes heranças de forma bem-sucedida, como os EUA, no caso de herança e riqueza, e a França e outros países latino-americanos, em relação à tributação de herança. Se existem casos de sucesso, nós que somos um dos países mais desiguais do mundo, devíamos nos inspirar nesses modelos para tributar grandes heranças e grandes fortunas.
IHU On-Line — Quais os desafios para a concepção de um sistema tributário que seja instrumento para a redução das desigualdades? Como fazer isso na prática?
Guilherme Mello — O desafio maior é vencer as barreiras políticas e a visão que está sendo vendida para a sociedade de que o brasileiro já paga muito imposto. Agora, qual é o brasileiro que paga muito imposto? O brasileiro pobre, de fato, paga muito imposto. Ele paga uma carga tributária similar à carga média de um país como a Dinamarca, que tem impostos muito altos, mas onde os serviços públicos são maravilhosos e a renda é alta. Agora, o brasileiro rico paga muito menos imposto do que um americano médio, do que vários países da América Latina, porque a carga tributária é muito mal distribuída; é concentrada em pobres e pouco concentrada nos ricos.
O principal desafio é vencer esse discurso que só interessa aos ricos. É possível, sim, pensar novas formas de impostos que sejam focadas naqueles que não pagam, que são os muito, muito ricos. Outra coisa importante é deixar claro quem são os muito, muito ricos, porque do contrário a pessoa que ganha um salário de cinco mil reais vai achar que é rica, porque ao ver sua renda em comparação com a renda média do Brasil, acha que é ela quem será tributada. A pessoa que comprou um apartamento e vai deixá-lo de herança para o filho, acha que é ela quem vai ser tributada. Não. As grandes heranças são aquelas acima de 15 milhões. Estamos falando de uma parcela muito pequena da população que não paga imposto e que precisa pagar para tornar o sistema tributário brasileiro mais parecido com o resto do mundo.
Não estamos inventando a roda. Estamos trazendo a realidade do sistema tributário brasileiro para mais perto da realidade dos sistemas tributários europeu e americano e indo ao encontro do que toda a literatura internacional sobre o tema tem falado. É fundamental discutir essa reforma tributária de maneira ampla, discutindo a questão da distribuição de renda, porque se ficarmos apenas na simplificação do sistema, é possível, inclusive, piorar a concentração de renda no sistema tributário.
A única saída para o Brasil é repensar o sistema tributário como um todo, simplificando, sim, ganhando eficiência, evidentemente, mas combatendo a sonegação, aumentando a progressividade, dando um viés sustentável ambientalmente de desenvolvimento regional, vinculando essas mudanças a uma melhora no financiamento de educação, saúde e serviços sociais. Então, há uma série de mudanças que estão na proposta de Reforma Justa e Solidária que não estão nas outras. A ausência de algumas preocupações nas outras propostas pode fazer com que a reforma, se for aprovada nos termos da PEC 45, piore alguns desses problemas: piore o conflito federativo, a questão do desenvolvimento regional e a concentração de renda. Por isso, é preciso tomar muito cuidado e pensar o sistema como um todo, porque desde 1966 não fazemos isso.
IHU On-Line — Como esse discurso ultraliberal de redução do Estado pode impactar as discussões em torno da concepção de um novo sistema tributário?
Guilherme Mello — Ele afeta por essa visão de que é preciso diminuir a carga tributária, que o Brasil tem a carga tributária mais elevada do mundo, o que é mentira. É verdade que o Brasil tem uma carga tributária maior do que outros países em desenvolvimento, mas se analisarmos a carga tributária líquida — em que se descontam as transferências sociais — vamos ver que a carga tributária brasileira está totalmente alinhada ou abaixo de outros países em desenvolvimento. Isso acontece porque os outros países não têm o mesmo desenho de Estado de bem-estar social. Então, temos uma carga tributária maior porque construímos um Estado mínimo de bem-estar social para proteger as pessoas na velhice e na doença. Se quisermos trazer a carga tributária total para perto dos outros países em desenvolvimento, teremos que abrir mão da saúde pública e da previdência, o que, num país como o Brasil, que tem um elevado grau de desigualdade, fará com que o país se transforme no país mais desigual do mundo. O que distribui renda no Brasil é exatamente o gasto em saúde, educação e seguridade social, do ponto de vista do Estado.
O discurso ultraliberal propõe reduzir a carga tributária, mas junto com isso ele traz a ideia de destruição do Estado de bem-estar social. Isso tende a aumentar a desigualdade e reduzir o potencial de crescimento. Hoje já está claro que o que reduz o potencial de crescimento de um país é o fato de haver uma desigualdade muito grande. Então, teremos mais desigualdade, menos crescimento e menos carga tributária para quem ganha muito. É esse discurso que temos que combater.
IHU On-Line — Quais os desafios para conscientizar a população sobre a importância de uma reforma tributária solidária? Como explicar, na prática, no que consiste essa reforma?
Guilherme Mello — O principal desafio é mostrar para as pessoas que o que estamos propondo não é aumento de impostos. Inclusive, a carga tributária vai continuar mais ou menos igual e é até possível aumentá-la um pouco mais. O que estamos discutindo é quem vai pagar essa carga: se é o pobre ou se é o rico. Não adianta falar “nem mais um centavo de imposto”. Nem mais um centavo de imposto para quem? Para o pobre ou para o rico? Para o pobre, mais nenhum centavo, mas para o rico, muito imposto. Esse é o desafio. Se conseguirmos mostrar isso, ganharemos o apoio da sociedade.
IHU On-Line — Deseja acrescentar algo?
Guilherme Mello — Gostaria de comentar o aspecto ambiental. Estamos criando uma contribuição ambiental na Reforma Justa e Solidária para empresas poluidoras que emitem gases de efeito estufa e a ideia é que essas empresas ajudem a financiar o desenvolvimento regional e as próprias tecnologias verdes para fazermos a transição ecológica. Estamos vendo a Amazônia pegando fogo, óleo chegando às praias, por isso a questão ambiental é fundamental nos próximos 30 anos e precisamos de mecanismos que financiem as atividades ambientalmente sustentáveis e penalizem atividades que poluem muito. Então, a mudança no Imposto sobre Propriedade Territorial Rural - ITR tem um aspecto ambiental de aumentar a produtividade, mas premiar quem preserva a terra. Tem que criar incentivos com o sistema tributário para a preservação e desincentivos para quem destrói e polui. Obviamente, depois, esse tributo vai financiar uma série de pesquisas e gastos na preservação, que é um ponto importante da reforma que estamos propondo.
As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.
* - Guilherme Mello é e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professor do Instituto de Economia da UNICAMP e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura do IE/UNICAMP.