Fernando Nogueira da Costa* | No GGN
Sentimos atração por histórias simplórias e aversão às abstrações. Nossa mente abomina complexidade emergente de interações de diversos componentes. Por isso, aspectos relevantes são desvalorizados em favor de outros irrelevantes.
O autoengano é comum. Por exemplo, entramos em uma sorveteria cara. Pedimos uma bola e a atendente pergunta-nos se desejamos “copinho” ou “copão”. Qual resposta damos? Copinho, lógico! Assim, sairemos felizes com o copinho transbordando – e não com uma bolinha de sorvete perdida no meio do copão...
Se nosso cérebro prefere o caminho mais curto para decidir, não devemos decidir por impulso. Preocupemos com as informações essenciais e excluamos as inúteis!
Durante vários dias seguidos, no fim de ano, o peru recebe alimento abundantemente. Ele passa a acreditar essa fartura ser merecida porque o admiram. Ele não antecipa o cenário futuro com uma visão realista.
Quanto mais é bem-sucedido, mais a falsa segurança aumenta. Há tendência a deduzir certezas universalmente válidas a partir de uma ou poucas observações individuais. Porém, todas as certezas são temporárias. São falseadas pela mudança de contexto.
A primeira estória narra a Síndrome do Copo-de-Sorvete. A segunda, a Síndrome do Peru de Natal. Ambas narrativas metafóricas expressam dificuldades mentais humanas, respectivamente, o pensamento instintivo e o desconhecimento do futuro incerto.
Nosso cérebro é uma máquina de fazer associações. O problema é o falso conhecimento derivado de associação causal para algo casual. Transforma correlação em causalidade, tipo “a causa do câncer é beber água, porque todo morto pelo câncer bebia água!”
Desde a própria biografia até a história universal, modelamos tudo em “narrativas com sentido”. Assim, deturpamos a realidade – cheia de acasos, acidentes ou “cisnes negros” – como tudo tivesse uma causa duradoura e não apenas uma breve circunstância. Ex nihilo nihil fit (em latim) significa “nada surge do nada”. Daí achamos tudo ter uma causa ou uma lógica possível de ser racionalizada. Isso prejudica nossas análises e decisões.
Costumamos brincar a respeito de nossos “inimigos”: “eles só têm 2 neurônio” (sem S)! Um chama Tico, o outro, Teco. Tico e Teco não conversam entre si...
Neurônio é a célula do sistema nervoso responsável pela condução do impulso nervoso. Estima-se haver cerca de 86 bilhões neurônios no sistema nervoso humano. Redes neurais artificiais são modelos computacionais inspirados no cérebro de um animal. São capazes de realizar o aprendizado de máquina com o reconhecimento de padrões.
A inteligência artificial, incorporada em software, busca assimilar a inteligência humana. Este campo de estudo acadêmico projeta um agente inteligente, capaz de perceber seu ambiente e tomar atitudes para maximização de suas chances de sucesso.
Daí vem a dúvida existencial de economistas: é possível um agente econômico, isoladamente, ser inteligente? Para os adeptos do individualismo metodológico, a Ciência Econômica se reduz às teorias testáveis de decisões individuais ótimas. Para os dotados de visão holística, para compreender os fenômenos sistêmicos, é necessário observar um “todo” com propriedades distintas da soma das suas partes – e mutantes.
Essa forma específica de contemplar um sistema complexo permite uma visão global das interconexões entre todos os elementos, estratégias e atividades. A visão holística opõe-se à lógica mecanicista. Esta compartimenta tudo em vários blocos, tipo blockchain (tecnologia de cadeia de blocos), causando a perda da visão global.
Voltemos ao Tico e Teco do pensamento convencional. A mente mundana capta mais facilmente os memes binários e agressivos em vez de um raciocínio complexo. A estratégia ideológica binária, tipo “nós contra eles”, atrai seguidores, estimula controvérsia, cria lealdade e faz os seguidores lutar contra “os inimigos” sem pensar.
Em Economia convencional, é comum a redução de todas as negociações a pares: um demandante e outro ofertante. Todos agentes econômicos teriam uma racionalidade homogênea. Os comportamentos racionais não se alterariam a partir do aprendizado de múltiplas interações. Haveria só competição. A cooperação e o altruísmo não eram considerados pela teoria econômica, assim como eram ignorados os vieses heurísticos.
Heurística é uma característica típica dos seres humanos quando estão em busca de respostas para questões complexas. É uma técnica de pensamento e comportamento praticamente automática nos humanos. Agem de modo intuitivo para achar prováveis respostas para suas dúvidas. É um atalho mental, embora incerto e incompleto, para se chegar às respostas de questões complicadas de modo rápido e fácil.
A imaginação, a criatividade, o pensamento marginal e divergente, aliados às experiências de vida própria ou observadas em outras pessoas, ajudam a formar os processos cognitivos da heurística. A análise heurística é prática e rápida. Mas é superficial. É ideal para conseguir uma resposta imediata ou emergencial sobre determinado assunto. Por isso, os animais humanos erram – e repetem erros!
Quando se afastam de um raciocínio binário para fazer análise combinatória com base em tríades as mentes dos economistas dão um “nó”. Por exemplo, quando relacionam duas tríades: a dos motivos por demanda de dinheiro e a das funções do dinheiro.
Tanto o motivo especulativo como o motivo precaução são demanda de dinheiro como reserva de valor. Há demanda especulativa, considerando a aversão ao risco, porque se espera uma melhor oportunidade para o liberar em troca de outro ativo menos líquido. Há demanda de precaução porque o dinheiro é mantido para ser usado como meio de pagamento em momento incerto. O motivo transação, assim como o finance, vem das funções “medida de valor” e “meio de pagamento”. São demandas para liberá-lo em datas previstas. Reinterpretadas assim, as duas tríades são compatíveis entre si.
Uma terceira tríade pode ser relacionada a essas duas: as dos atributos de ativos. No caso do ativo monetário, ele tem rendimento zero, ou seja, não recebe juros. Também não possui custo de manutenção, caso uma inflação não corroa seu poder aquisitivo. Representa o maior prêmio de liquidez entre todos os ativos: por definição jurisdicional, a moeda oficial é a única com poder de pagamento de tributos e contratos.
Quando também é aceita pelo mercado para cumprir as três funções convencionais – reserva de valor, unidade de conta e meio de pagamento –, a moeda se torna plenamente dinheiro. Se a comunidade foge para uma divisa estrangeira como reserva de valor, o sistema se torna bi monetário e com alto risco de um choque de demanda disparar a alta da cotação da moeda estrangeira. Se ela passa a ser a unidade de conta para a precificação dos bens e serviços, quando for convertida em moeda nacional, para ser usada como meio de pagamento, os preços dispararão em uma hiperinflação.
O risco de massificação do uso da Libra do Facebook como reserva de valor é resultar em hiperinflação por conta do sistema bi monetário. Se houver um choque de demanda mundial por ela, contaminará a unidade de conta utilizada na precificação dos produtos nacionais. Se não for possível pagar impostos com ela, a sonegação fiscal aumentará, devido ao seu uso como “dinheiro frio” sem deixar “pegadas digitais” com o uso de tecnologia blockchain. Isto sem considerar o risco de ser utilizada como “dinheiro sujo” para tráfego de drogas e armas de milicianos paramilitares.
Para tornar o raciocínio mais complexo, em uma visão holística para a avaliação do risco do surgimento dessa criptomoeda mundial, temos de interconectar outra tríade na nossa rede neural. Refiro-me à das três funções básicas dos bancos: viabilizar um sistema de pagamentos, oferecer oportunidades de investimento financeiro com rendimentos, liquidez e segurança, além de propiciar alavancagem financeira da rentabilidade dos negócios capitalistas. Multiplica-se pela maior escala obtida quando se toma empréstimo de recursos de terceiros e soma o valor aos recursos próprios.
Se a criptomoeda provocar uma fuga massiva dos depósitos à vista, o multiplicador monetário da rede bancária diminuirá. Haverá menor alavancagem financeira dos negócios. Com menos gastos financiados, a oferta de empregos cairá.
Pior ainda será se a Libra motivar especulação, absorvendo recursos que deveriam ser investidos em longo prazo para os rendimentos do capital financeiro substituir os rendimentos do trabalho na fase de aposentadoria. Em economia de autorregulação pelo livre mercado, é comum surgir um boom quando muitos especuladores seguem a tendência de alta do valor de um ativo em processo de retroalimentação.
Logo depois da euforia pela perspectiva de ganho de capital fácil, confirmado por quem o realiza antes da reversão das expectativas, vem o pânico. Subitamente, passa a predominar a impressão da cotação estar muito acima do preço justificado por fundamentos microeconômicos, setoriais ou macroeconômicos. Todos tomadores de crédito para alavancagem de posições “compradas” têm de cumprir os compromissos contratuais. Para amortizar os empréstimos, colocam de uma vez o ativo especulativo à venda. Sua cotação cai “sem choro nem vela” para quem investiu seu dinheiro da aposentadoria na especulação. O desespero pela perda de tudo pode levar ao suicídio.
As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.
* Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..