Eduardo Fagnani | Na Carta Capital

A proposta de reforma da Previdência apresentada pelo governo de Jair Bolsonaro foi alterada na Comissão Especial da Câmara dos Deputados. O parecer do relator Samuel Moreira, do PSDB, “desidrata” em parte o projeto de Paulo Guedes, que acusou o golpe. Segundo o ministro, o relatório teria “abortado” a “Nova Previdência”.

A reforma não será feita onde ela é mais necessária. O relator excluiu o que de fato precisa ser mudado. Estados e municípios ficaram de fora. O projeto original havia excluído as pensões dos militares e o relator não trata da aposentadoria dos parlamentares, mantendo as regras de transição definidas por lei de 1997 (Plano de Seguridade Social dos Congressistas).

Restou alterar o que tem sido objeto de reformas nas últimas décadas. É o caso do Regime Próprio da Previdência Social (RPPS), dos servidores federais civis, ajustado pelas Emendas Constitucionais nº 42, de 2003, que acabou com a integralidade e a paridade, e nº 70, de 2012, que impõe o teto de benefício de 5.839,45 reais para o servidor que ingressou na carreira a partir daquele ano. Com essas mudanças, as despesas cairão de 1,26% do PIB (2018) para 0,32% do PIB (2060), estima o Ministério da Economia.

Também é o caso do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), objeto de reformas anteriores. Esse segmento pode requerer alguns ajustes pontuais, mas nenhuma nova reforma estrutural. É execrável que se fale de “privilegiados” num sistema de proteção que oferece benefícios próximos de 1,3 mil reais. Mas o governo crê que as regras do RGPS “fazem com que os mais ricos sejam relativamente beneficiados”.

“Rico” seria um aposentado (por tempo de contribuição) que ganha 2.231 reais. E pobre, o aposentado (por idade) que ganha 1.252 reais. Esse conceito de “riqueza” e “pobreza”, repetido pelo relator, talvez explique o fato de que 90% da economia estimada em 20 anos recaia, exatamente, sobre o RGPS, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o Abono Salarial.

O propósito velado do governo nesse debate desonesto, insisto, não é reformar a Previdência, mas destruir o modelo de sociedade pactuado em 1988. Trata-se de projeto acalentado há muitas décadas, aprofundado a partir de 2016 e que passou a avançar em marcha forçada desde o início de 2019. A investida atual visa destruir a Seguridade Social em quatro atos: 1. Desconstitucionalizar direitos adquiridos. 2. Desfigurar o Orçamento da Seguridade Social. 3. Consumar a transição da

Seguridade Social para o Seguro Social. 4. Concluir a transição da Seguridade Social para o assistencialismo.

geral, do abono salarial e do benefício pago aos miseráveis

E como esses passos aparecem no parecer do deputado Moreira? A desconstitucionalização de direitos foi mantida. No caso do RGPS, o relator mantém a desconstitucionalização, para definir o tempo de contribuição para todos os casos e para definir a idade para indivíduos com deficiência e professores. No caso do RPPS, a desconstitucionalização é mantida integralmente.

O relator também pretende desfigurar o Orçamento da Seguridade Social. A ideia original de se fazer a “segregação contábil” é mantida no substitutivo. O propósito é identificar receitas e despesas da Saúde, Previdência, Assistência e Seguro-desemprego. No caso da Previdência, deve-se “preservar o caráter contributivo”. Com isso, constitucionaliza-se a visão inconstitucional – segundo a qual a Previdência seria financiada apenas pelos empregados e empregadores –, vício cujo efeito mais dramático é o falso “déficit”. A norma acaba com o sistema de financiamento tripartite praticado no Brasil desde os anos 1930 e nos países desenvolvidos desde meados do século XIX.

A transição da Seguridade Social para o seguro social está em compasso de espera. O relator vetou o regime de capitalização, que transfere para o indivíduo a responsabilidade pelos riscos da sua vida laboral. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, afirmou pelo Twitter, porém, que o projeto “pode não entrar neste texto inicial, mas nada impede que seja aprovado no próximo semestre”.

O risco da transição da Seguridade Social para o assistencialismo diminuiu, mas as ameaças permanecem. As regras originais desconsideram a realidade do mercado de trabalho e são equivalentes àquelas praticadas em países desenvolvidos. Poucos brasileiros teriam proteção previdenciária (para a qual se exige tempo de contribuição), e haveria uma corrida para alcançar a proteção assistencial (para a qual não se exige contribuição). Antevendo essa tendência, o governo constrói, previamente, um muro de contenção fiscal, ao rebaixar o valor do BPC de 998 para 400 reais.

O parecer rechaçou algumas medidas excludentes, manteve outras e acrescentou uma nova “bomba”. Dentre as medidas rechaçadas destacam-se: 1. Desvincular da inflação o reajuste dos benefícios. 2. Criar um “gatilho” demográfico, que, se aceito, abriria a possibilidade de a idade mínima atingir 67/64 anos (homens/mulheres) em meados de 2030. 3. Mudar a Previdência Rural, BPC, aposentadoria das pessoas com deficiência, Auxílio-reclusão, Salário-família e indenização por demissão sem justa causa e depósito de FGTS.

Dentre as medidas excludentes mantidas, destacam-se, entre outras: 1. Tempo de contribuição de 40 anos para a aposentadoria integral, inalcançável para a maioria. 2. Tempo de contribuição para a

aposentadoria parcial para 20 anos no caso do trabalhador urbano do sexo masculino, o que inviabilizará o acesso para mais de 60% dos brasileiros. No caso das mulheres, rurais e urbanas, permanecem os atuais 15 anos. 3. O substitutivo mantém a regra de se computar a média de todas as contribuições e o valor do benefício correspondente a 60% dessa média, o que rebaixará o valor da aposentadoria parcial.

A nova “bomba” é a proposta para que os recursos do PIS/Pasep passem a compor as receitas do RGPS. A Constituição direciona esses recursos para o financiamento do “programa do seguro-desemprego e o abono”. O mesmo artigo determina que “pelo menos 40% (desses recursos) serão destinados a financiar programas de desenvolvimento econômico, através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, com critérios de remuneração que lhes preservem o valor”.

Em suma, o relator exclui o programa Seguro-desemprego, bem como as demais políticas financiadas pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador, do rol de setores que integram a Seguridade Social.

A reforma da Câmara dos Deputados provocou a fúria do ministro da Economia. É provável que o contra-ataque venha com “potência” redobrada.

As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.

* Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp. www.fagnani.net