Fernando Nogueira da Costa | Na Carta Maior
Reginaldo Moraes, professor do IFCH-UNICAMP, deixou-nos um legado intelectual de leitura essencial: um “pequeno grande livro”. Em coautoria com Maitá de Paula e Silva, mestre em Ciência Política pela UNICAMP, ambos publicaram O peso do Estado na Pátria do Mercado (Editora Unesp; 2013: 83 páginas).
Analisando os fatos da história norte-americana, ou seja, abandonando a mitificação do livre-mercado como único catalizador do “sonho americano” de mobilidade social, realizado por muitos imigrantes, mostram o Estado militarizado no século XIX ter implementado políticas de conquista genocida do território nativo (e de outros países), capaz de expandir os Estados Unidos de costa-a-costa. Do Atlântico ao Pacífico, a construção de infraestrutura básica para o desenvolvimento dificilmente teria ocorrido apenas pela via da iniciativa privada e das forças livres de O Mercado.
No debate público atual, realizado no Brasil de acordo com o pluralismo da rede social e não no modo mono ideológico da mídia televisa brasileira, enfrenta-se mais um paradoxo da mistura à brasileira: neoliberalismo com neofascismo.
Aqui, os neoliberais estão aliados com os neofascistas, portanto, são cúmplices na ameaça de corte também de direitos civis e sociais por conta do conservadorismo religioso nos costumes. Existe uma virtude saudável para adoção do liberalismo clássico, isto é, aquele não restrito apenas à defesa da pauta econômica de reformas de corte de direitos trabalhistas, previdenciários, isenções fiscais, etc.
De acordo com o liberalismo da esquerda norte-americana, o governo da comunidade local age como um escudo contra as políticas do governo federal, durante uma alternância de poder, quando o pêndulo vai mais para o lado de uma pauta retrógada. Ele protege as minorias contra uma possível tirania da maioria dos eleitores e serve como anteparo contra o poder federal de ameaçar os cidadãos não aliados.
Por exemplo, no Brasil atual, há o pool progressista formado por governadores do Nordeste. No entanto, falta-lhes instrumentos de intervenção econômica significativa. Boa parte deles foram extraídos na primeira onda de “privataria”: a tucana dos anos 90s. Foi quando os bancos estaduais lhes foram expropriados em nome da negociação da dívida pública. Hoje, fazem falta para maior autonomia dos Estados federativos frente ao centralismo do orçamento da União.
Esse é um sinal claro da inconsequência histórica dos neoliberais brasileiros apegados ao poder do Governo Federal para desmanchar o restante do Estado desenvolvimentista: privatizar ou descapitalizar empresas estatais como Caixa, Banco do Brasil, BNDES e Petrobras. Historicamente, são as maiores pagadoras de dividendos e juros sobre o capital próprio. Em média, elas foram responsáveis por mais de 90% da receita de dividendos arrecadada entre 2012 e 2015, alcançando 80% em 2016.
Na realidade, as mentes colonizadas na Escola de Chicago, com a do prócer do ministério da Economia, demonstram pouco conhecer da história, tanto americana, quanto brasileira, para propor tal disparate. Isto sem falar na irracionalidade de suas tentativas de transplantar instituições financeiras adotadas como um padrão de ação coletiva pelos norte-americanos para o contexto social muito distinto daqui.
Basta verificar a desigualdade da apropriação da riqueza financeira brasileira – 8,2 milhões de pessoas da classe média baixa com saldo médio per capita de R$ 37 mil em títulos e valores mobiliários, 4,3 milhões da classe média alta com R$ 200 mil e 118 mil ricaços com R$ 10 milhões cada –, para verificar porque o mercado de capitais aqui é raquítico. Os 61 milhões de depositantes de poupança com saldo médio de R$ 12 mil não contam com a possibilidade para ascender massivamente para uma economia de mercado de capitais.
Instituição é um conjunto de hábitos, costumes e modos de pensar cristalizados em práticas aceitas e incorporadas por cada comunidade nacional ou local. A permanência das instituições expressa a existência de modos de pensar e agir arraigados em grupos determinados ou em toda a sociedade nacional.
Falar de “Estado” e de “ação estatal” nos Estados Unidos envolve uma compreensão do caráter bastante específico da organização do federalismo naquele país. Conforme demonstram o Reginaldo e a Maitá, o impulso de políticas da União – política de terras, transportes e comunicações (correio), pesquisa e educação, entre outras – explica a forma de desenvolvimento com maior inclusão social ocorrida nos Estados Unidos.
Houve também muita relevância dos Estados federados e dos governos municipais em especial na regulação dos atos econômicos referentes às manufaturas, aos bancos e ao comércio, entre outras atividades. Sem eles não haveria como explicar o imenso mercado interno e a máquina produtiva capaz de superar, já no fim do século XIX, os rivais europeus (Inglaterra, Alemanha, França, etc.) somados.
O papel da União, isto é, do Estado federal, foi usar de modo desenvolvimentista as conquistas de terras dos nativos amparadas pela força militar do Exército norte-americano. Esse genocídio das “nações indígenas” lhe deu cerca de 80% das terras conquistadas: mais de 5 milhões de quilômetros quadrados, ou seja, mais de “meio Brasil”. Possuía praticamente todo o território estendido além dos Apalaches.
No século XIX, o Estado norte-americano foi marcadamente “desenvolvimentista”, porque utilizou as terras para influir na forma de desenvolvimento do país; construir os novos territórios e, depois, Estados federados; e estimular suas políticas públicas. Nas primeiras décadas do século XIX, boa parte do orçamento federal era garantido pela venda de terras, chegando a ser entre 40% e 50% das receitas. Além de vender terras, a União dispôs delas para indicar o que devia ser feito nos novos territórios, inclusive a criação de Escolas Superiores, voltadas prioritariamente para o estudo de agricultura e engenharia. Somadas aos efeitos da rede ferroviária na modelagem do sistema urbano e na distribuição de terras, o país marchou para Oeste, fazendo avançar a fronteira.
A Constituição norte-americana exige os impostos federais diretos serem alocados entre os Estados segundo sua população na chamada Regra da Maioria. Ela proíbe o governo federal de usar a taxação dos contribuintes para financiar projetos localizados alhures.
Logo, os governos estaduais e locais foram adquirindo importância na empreitada desenvolvimentista, atuando tanto como poder público empreendedor, quanto como sócio principal de empresas mistas. Atuaram no financiamento dessas operações, não só por meio de impostos e taxas, mas também captando empréstimos internos ou externos, contraindo ou garantindo dívidas, e criando corporações para assumir a responsabilidade financeira pelo projeto em troca de ganhos extras com o investimento, um arranjo frequentemente utilizado através da criação de bancos.
Os Estados federados investiam em bancos, canais fluviais, pontes e estradas. Operavam como intermediadores e captadores de capital, dentro ou fora dos Estados Unidos, para projetos de infraestrutura. Assim, em grande medida, construiu-se a infraestrutura de transporte e finanças, viabilizando um grande mercado interno nacional.
Muitos dos bancos estaduais se opuseram à segunda tentativa de instituir um Banco Central de abrangência nacional pelas mesmas razões pelas quais se opunham à primeira. Em primeiro lugar, ele poderia estabelecer rede de agências bancárias através da ramificação estadual, mas eles não poderiam. Em segundo lugar, a questão da emissão de notas bancárias pelos bancos estaduais ainda era uma questão controversa.
Eles reclamavam de o Banco dos Estados Unidos ter forçado a acumulação de suas notas e moedas, depois de prometer seu resgate em espécie. Embora a Autoridade Monetária argumentasse essa medida ser necessária para evitar a inflação e a degradação das moedas, os bancos estaduais viam como uma furtiva fabricação de dinheiro fiduciário.
Os bancos estaduais eram capazes de cunhar seu próprio dinheiro. Caso fossem necessários lastros de pagamentos em espécie (ouro/prata), o Segundo Banco dos Estados Unidos poderia obter controle financeiro sobre os Estados dependentes deles.
Em 1861, antes da Guerra Civil, os subsídios estaduais já estavam proibidos por emenda constitucional em quase todos os Estados. A doutrina de laissez-faire passou a ser mais frequentemente aplicada à condenação das ações dos governos regionais, inclusive em questões financeiras, tal como um refrão em discursos político-parlamentares.
Quando as emendas constitucionais passaram a impor limites ao endividamento dos Estados, dado o abuso na visão privatista, abriram espaço para o ativismo municipal. As municipalidades assumiram o protagonismo, investindo amplamente em infraestrutura de serviços públicos, estradas, água, coleta de esgoto e educação.
Assim, se no fim dos anos 1830, o débito dos Estados era cerca de oito vezes o débito nacional somado aos de governos locais, em 1900, o débito dos governos locais era cerca de oito vezes o endividamento dos Estados, invertendo a situação de 1839. Em resumo, Reginaldo e Maitá demonstraram ter havido duas fases no ativismo estatal norte-americano, abrindo caminho para o desenvolvimento do país no século XIX. Na primeira dessas fases, o protagonismo coube ao governo estadual, na segunda, ao governo municipal. Aqui-e-agora, o neoliberalismo imobilizou o federalismo brasileiro.
As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.
* Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.