Fernando Nogueira da Costa | No GGN

Pedalada virou uma palavra estigmatizada no Brasil por seu mau uso como pretexto para dar uma capa de rito legal ao golpe contra a Presidenta eleita. Pedalada fiscal foi o motivo alegado para encobrir a verdadeira razão de não eleitos – partidos de oposição aliados a Cunha e Temer – ocuparem o Poder Executivo. Foi um subterfúgio referente à operação extremamente comum em uma economia de mercado: o crédito. No caso, ele teria sido concedido dos bancos públicos ao governo em função do atraso de reembolso dos pagamentos de programas sociais essenciais para a população brasileira.

A ironia da metáfora ciclista é ela não ter funcionado, nas circunstâncias políticas brasileiras, como a ação de “pedalar para não cair”. Dilma caiu. Entretanto, a designação de um objeto (bicicleta) ou ação referida a ele (pedalar) referente à designação de outra qualidade (movimento ao longo do espaço e do tempo) ocorre porque tem com o primeiro uma relação de semelhança. A economia de mercado é movida para o futuro com base na manutenção do crédito.

Crédito é confiança concedida, crença alimentada pelas qualidades de uma pessoa ou projeto. Refere-se à segurança imaginada de alguém ou algum modelo de negócios ser capaz de gerar benefícios para o credor. Este é o beneficiário de compensações.

Iniciou-se, historicamente, como reserva moral de confiabilidade conferida a uma ou mais pessoas – “os irmãos de crença” – e posta em certo prazo e/ou condições. Ganhou impessoalidade e confiabilidade perante uma autoridade com bom nome e reputação. Banqueiros judeus medievais passaram a conceder crédito a príncipes ou burgueses cristãos. No entanto, muitos se valeram de suas condições para os calotear na hora de pagamento dos juros ou a amortização dos empréstimos.

O juro tão condenado no cristianismo medieval (e na esquerda “anti-financeirização”) é a quantia remuneradora de um credor pelo uso de seu dinheiro por parte de um devedor durante um período determinado. Como o devedor lucrará com aquele dinheiro de outrem, ele paga uma percentagem sobre o que lhe foi emprestado para compensar o custo de oportunidade do credor. Senão, este poderia fazer bom uso dos próprios recursos.

Esta soma cobrada de outro, pelo seu uso, por quem empresta o dinheiro é malvista como fosse uma renda “imprópria” ou rendimento de capital investido não produtivo. O pior autoengano é cometido por marxistas com leitura equivocada de um conceito da Teoria do Valor-Trabalho de Marx. Capital improdutivo designa simplesmente o capital na esfera de circulação, o caso do capital financeiro. Mas não lhe atribui o adjetivo de inepto ou inútil. Pelo contrário, esse capital circulante é fundamental para o dinamismo do capitalismo! Capitalismo sem empreendedorismo é rentismo! Se não o pedalar com crédito ele cai!

Quando cai em depressão, falta de confiança, pessimismo quanto ao futuro, aí sim o capital fica improdutivo. Não gera emprego e renda e descumpre o contrato social da casta dos mercadores com a casta dos trabalhadores. O problema surge quando não há demanda por crédito porque todos, capitalistas e trabalhadores inativos, viram exclusivamente rentistas: aqueles recebedores de rendas de aluguéis e/ou de rendimentos financeiros. Sem empreendedores para pedalar com crédito não há dinamismo econômico, isto é, variações ao longo do tempo na economia de mercado.

Um conceito-chave, e relativamente pouco conhecido por meus companheiros de esquerda, é o de alavancagem financeira. Se obtiver a mesma valorização de um ativo – forma de manutenção de riqueza – com a tomada de um empréstimo de capital de terceiros, dando muito maior escala na compra ou na produção desse ativo, pode-se multiplicar a rentabilidade em relação à obtida com o uso apenas do capital próprio. O limite do juro a ser pago tem de ser inferior à rentabilidade patrimonial inicial (sem o uso de capital de terceiros) para valer a pena. Este é o segredo do negócio capitalista: operar com recursos dos outros!

Curiosamente, o capitalismo de Estado chinês está aplicando a alavancagem em limites inimagináveis por economistas ocidentais. O mercado de títulos de dívida, inclusive os emitidos em longo prazo pelos bancos de desenvolvimento estatais, é dominado pelo governo e banco central chineses. Os títulos, sendo 35% deles bônus corporativos, são mantidos até o vencimento pelos investidores, incluindo os próprios bancos estatais.

Lastreados por esses títulos de dívida pública com baixo risco soberano, a capacidade de expandir o crédito na China tem sido extraordinária. Os ativos totais do sistema ­financeiro estrito saltam de USS 3,3 trilhões em 2003 (204% do PIB) para US$ 25,0 trilhões em 2013 (270% do PIB).

Esses financiamentos são, principalmente, concedidos por cinco grandes bancos comerciais públicos – Banco Agrícola da China, Banco da China, Banco de Construção da China, Banco Industrial e Comercial da China e Banco das Comunicações da China – cujos ativos saltam de US$ 1,9 trilhão em 2003 para US$ 10,8 trilhões em 2013. São liberados ainda por três grandes bancos de desenvolvimento públicos (policy banks): cada qual apoia os projetos de infraestrutura, a agricultura e o comércio exterior. Too big to fail lá é “estatal demais para falir”. Negócio da China...

A economia chinesa ainda terá necessidade, no médio e longo prazo, de pesados investimentos em infraestrutura e construção. A população chinesa é de 1,37 bilhão de pessoas. Entre 2001 e 2015, a porcentagem da população residente na zona rural caiu de 62% para 44%. Esse processo de urbanização ainda não se esgotou, gerando a necessidade de se criar as condições materiais para a habitação desses migrantes na zona urbana. Então, o uso do crédito lá não é considerado um abuso!

Por aqui, a crença de economistas ultraliberais é, sem interferência governamental, todos os mercados, inclusive o mercado monetário, ao longo do tempo chegarem espontaneamente a um estado de equilíbrio entre as diversas decisões dos agentes econômicos e a disponibilidade de recursos. Mantêm a fé (cega) na Lei de Say de a oferta criar a própria demanda. Isso se não houver crédito indo além da poupança prévia, desequilibrando assim a demanda agregada face à oferta potencial da capacidade produtiva. Por ignorância ou má fé condenam a política governamental de crédito.

Outro desconhecimento demonstrado por parte deles diz respeito a até dois terços de dólares emitidos em papel-moeda — US$ 1,07 trilhão — serem mantidos fora dos Estados Unidos. Cerca de US$ 80 bilhões encontram-se em instituições depositárias locais. O restante – cerca de US$ 453 bilhões – está nas mãos de empresas e indivíduos americanos.

Em 2017, segundo números divulgados pelo Fed, US$ 1,6 trilhão estava em circulação, incluindo US$ 1,3 trilhão em notas de US$ 100, ou 80% do total. Em 1997, US$ 458 bilhões circulavam, incluindo US$ 291 bilhões em cédulas de US$ 100, ou 64% do total.

Nessas duas décadas, o valor da moeda norte-americana circulante aumentou em média 6% ao ano. Mesmo quando ajustado à inflação, o volume total mais que dobrou desde 1997, e o valor total das notas de US$ 100 quase triplicou. No entanto, Milton Friedman e seu monetarismo continuam mortos: a taxa de inflação se mantém baixa. Dólares, além de meios de pagamento (e unidade de conta), são demandados como reserva de valor e “dinheiro frio” em especial fora dos Estados Unidos.

Mais interessante ainda é o endividamento mundial. Demonstra a moeda de crédito escritural ir muito além da moeda em espécie. O volume global de dívida, no primeiro trimestre de 2018, atingiu US$ 247,2 trilhões, o equivalente a 318% do PIB global, segundo dados do Instituto de Finanças Internacionais (IIF). A dívida das empresas não financeiras somou US$ 186 trilhões ou 75% do total.

Embora o total de dívida nos mercados emergentes, excluindo as empresas financeiras, tenha atingido um novo recorde de US$ 58,5 trilhões, a dívida em moeda estrangeira desses mercados emergentes, mesmo sendo recorde, somou US$ 5,5 trilhões, com as empresas não financeiras respondendo por 78% do total. Dada a alta dependência das dívidas em moeda estrangeira, Argentina, Hungria, Turquia, Polônia e Chile são mais vulneráveis a uma grande mudança no fluxo de capital, diferentemente do Brasil.

No Brasil, os neoliberais colocam foco só na dívida pública – e não nos bônus e empréstimos sindicalizados tomados por empresas não-financeiras. As amortizações dessas dívidas corporativas denominadas em dólar sofrem com o risco de depreciação da moeda nacional.

Em vez do endividamento externo característico do passado brasileiro, durante os governos Lula e Dilma, obras de infraestrutura energética foram realizadas apenas com recursos do BNDES e dos fundos de pensão patrocinados por empresas estatais. Elas propiciam o País não ter novo apagão como o de 2001. Elas são concretas. Fictícias são as possibilidades de calotes dos bancos públicos no Tesouro Nacional, cujo endividamento propiciou a alavancagem financeira dos empreendimentos. O suposto risco da dívida bruta (77% do PIB) é uma Falácia do Espantalho: ataca uma ideia caricatural em lugar de analisar o argumento técnico sério, baseado em evidências empíricas. Os países emergentes crescem em ritmo superior quando utilizam seus bancos públicos para a alavancagem financeira.

*Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor de “Brasil dos Bancos” (2012) e “Bancos Públicos no Brasil” (2016). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.. 

O artigo é uma opinião pessoal do autor.