MÍDIA
POR VALÉRIA BASTOS, ANTÔNIO BUAINAIN E SERGIO CARVALHO | Revista Economistas https://online.flippingbook.com/view/493641621/32/
A regulação da Inteligência Artificial (IA), portadora de “ameaças” associadas a transformações profundas na sociedade, é fundamental (Barcellos e Bastos, 2024). No entanto, limitar a intervenção pública à regulação poderia enterrar de forma definitiva qualquer ambição do Brasil de se tornar protagonista na produção e inovação em IA e perpetuar seu papel como usuário e importador (Buainain, Bastos e Carvalho, 2024).
Nesse sentido, o anúncio do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA), apelidado de “IA para o Bem de Todos”, despertou muito entusiasmo em todos os interessados. Passada a euforia inicial, é necessário analisar a proposta, seu contexto, seus objetivos, eventuais incongruências e incompletudes. No estágio atual, o PBIA não é um plano, mas apenas uma apresentação em PowerPoint (site do G20), divulgada como resultado de um processo aberto e que contou com a participação de 300 especialistas.
O Plano Brasileiro de IA
O PBIA não tem um, mas cinco objetivos, todos ambiciosos: 1) Transformar a vida dos brasileiros por meio de inovações baseadas em Inteligência Artificial; 2) Equipar o Brasil com infraestrutura tecnológica com alta capacidade de processamento, incluindo um dos cinco supercomputadores mais potentes do mundo, alimentado por energias renováveis; 3) Desenvolver modelos avançados de linguagem em português, que abarquem nossa diversidade cultural, social e linguística, para fortalecer a soberania em IA; 4) Formar, capacitar e requalificar pessoas em IA em grande escala para valorizar o trabalhador e suprir a demanda por profissionais qualificados; e 5) Promover o protagonismo global do Brasil em IA por meio do desenvolvimento tecnológico nacional e ações estratégicas de colaboração internacional.
A ênfase recai sobre o terceiro e o quinto objetivos – desenvolver modelos de IA em português e alcançar protagonismo global. No entanto, esses e os demais objetivos são complementares e integrados, como a necessidade de desenvolver robusta infraestrutura computacional e formação de profissionais qualificados, fundamentais para soberania em IA e protagonismo global.
Muita coisa para uma única política pública, que mistura objetivos de desenvolvimento — por definição de longo prazo — e outros mais imediatos, mas não menos desafiadores. Sem clareza de onde e como pretende chegar, o PBIA se reduz a um plano orçamentário com objetivos aparentemente inalcançáveis em quatro anos e meio, especialmente dado o histórico de dificuldades para implementar ações que exigem elevada cooperação entre segmentos do Estado e, principalmente, entre os setores público e privado.
O investimento total também é ambicioso: R$ 23,03 bilhões entre 2024-2028, considerando os padrões brasileiros, cujo dispêndio do governo federal (orçamento executado) para toda a área de C&T em 2022 foi de R$ 26 bilhões, ainda que irrisório frente ao investimento privado, carro-chefe da IA em quase todo o mundo (Goldman Sachs, 2023).
O PBIA contempla variadas fontes de recursos, privadas e públicas, orçamentárias ou não. Pouco mais da metade (55%) corresponde a crédito, mecanismo que — mesmo concedido em condições especiais — tem se revelado ineficaz para promover a inovação no país. Outros 25% correspondem a apoio financeiro não reembolsável do FNDCT (24%), teoricamente livre de contingenciamento. No entanto, a experiência indica que sempre é possível reter os recursos na boca do caixa, comprometendo a execução dos projetos.
Os recursos do PBIA destinam-se a ações de impacto imediato (ações em curso, cujos impactos não parecem imediatos) e estruturantes, divididas em cinco grandes grupos. A maior parcela dos recursos (60%) é destinada a IA para inovação empresarial, por meio de crédito. Ainda que as ações de impacto imediato devam absorver apenas 2% dos recursos, convém notar que refletem a prática de agrupar ações — muitas desconexas — e apresentá-las como parte de um novo plano. Essa “tática” nunca produziu resultados relevantes e transformadores.
A parcela expressiva dos recursos resultará da demanda por crédito e de novas chamadas de projetos do FNDCT, cujas prioridades setoriais não são conhecidas a priori e dependerão da demanda, dos editais e de prioridades (setoriais) a serem definidas por normativos do Conselho Superior/Câmaras Temáticas do PBIA.
Políticas de inovação podem ser orientadas pela oferta ou demanda, e as exitosas amarram as duas pontas. O PBIA parece ter um viés de oferta, presente na ação de Infraestrutura e Desenvolvimento de IA (25% dos recursos), com destaque para a “atualização” do supercomputador Santos Dumont do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), orçado em R$ 1,8 bilhão, cerca de US$ 329,4 milhões (dólar a R$ 5,47), com recursos do FNDCT não reembolsável, FAPESP e Petrobras. Um valor expressivo, ainda assim insuficiente frente ao custo dos supercomputadores existentes.
Uma preocupação adicional refere-se ao uso do supercomputador pelas Instituições de Ensino e Pesquisa, startups e desenvolvedores no país, todos ávidos por capacidade computacional para treinamento de modelos de IA.
O viés de oferta está presente em outras iniciativas, como a criação de novas instituições, a compra de supercomputadores para centros de computação regionais (CENAPADs), redes de conexão de alta velocidade e aquisição, instalação e modernização de infraestrutura de IA (capacidade computacional e datacenters) nas Instituições de Ciência e Tecnologia brasileiras. Estão previstas 5 novas instituições: o Instituto Nacional de Informática com foco em IA - R$ 120 milhões; o “Centro Nacional de IA para a Indústria” - R$ 260 milhões; o “Centro de transparência algorítmica e IA confiável” - R$ 40 milhões; o “Observatório Brasileiro de IA” - R$ 11,8 milhões; e o “Centro Nacional de IA aplicada à agricultura e pecuária”, ainda sem fonte orçamentária. No caso dos supercomputadores, prevê-se R$ 125 milhões para cinco centros, ou R$ 25 milhões, em média, para cada.
A modernização de infraestrutura de IA nas ICTs absorverá R$ 250 milhões para 25 projetos, em média R$ 10 milhões para cada projeto, suficiente para custear, no máximo, apenas chips de clusters de 45 GPUs em cada centro, menos do que 68 GPUs do grupo de Processamento de Linguagem Natural da Universidade de Stanford.
Essas iniciativas, cujo orçamento e custeio sustentável precisariam ser mais bem analisados, ainda que venham a cobrir lacunas na infraestrutura disponível, sem a qual nem usuários de IA poderemos ser, levantam uma questão importante. A estruturação de tantos órgãos e infraestrutura pressupõe apoio para desenvolvimento de modelos/tecnologias de IA, que não se resume a aquisições de equipamentos e à construção de edifícios e laboratórios, e pressupõe recursos humanos altamente qualificados, bem-remunerados e com carreira atraente para evitar a fuga de cérebros da qual tanto se fala.
Ademais, uma política de inovação efetiva precisa também estruturar a demanda, principalmente em indústrias nascentes como a IA. Do contrário, dispenderemos recursos inutilmente.
O PBIA menciona o alinhamento estratégico com a Nova Indústria Brasil ([nova-industria-brasil-plano-de-acao.pdf](www.gov.br)), com investimentos de R$ 300 bilhões, até 2026, que poderiam contemplar os usos das inovações em IA, com aplicações para a transformação digital da indústria, complexo agroindustrial, complexo industrial da saúde e defesa. Tal alinhamento é, de fato, crucial para evitar superposições, falta de continuidade e desperdício de recursos públicos, buscando a requerida complementaridade das políticas. Não está claro como será alcançado.
A ação com maior potencial de criar mercado para aplicações setoriais de IA é a “IA para Melhoria dos Serviços Públicos”, em que quase 80% do orçamento de R$ 1,76 bilhão é destinado à “Infraestrutura Nacional de Dados”, com destaque para a criação da “Nuvem soberana”, a cargo do Serpro e Dataprev (R$ 1 bilhão, 70% com o Serpro). Não há qualquer menção se os serviços em nuvem serão contratados de terceiros (como sugere a Portaria SGD/MGI 5950, de 26 de outubro de 2023, que estabeleceu as condições para contratação pelo governo federal) ou por desenvolvimento de infraestrutura própria no país.
O anúncio pelo Serpro da Nuvem de Governo, em novembro de 2023, com a promessa de ser a única soberana do hemisfério sul, sugere que a soberania se resume aos dados, com serviços em nuvem contratados de Cloud Service Providers.
Neste caso, chama a atenção a ausência no PBIA de “public procurement for innovation” (OECD, 2017), instrumento consagrado nas políticas de inovação. A contratação de produtos e serviços de IA providos por empresas locais poderia complementar os instrumentos de crédito e subvenção, assegurando um mercado institucional capaz de alavancar iniciativas domésticas. Inovar envolve incertezas técnicas, mas também incertezas comerciais e econômicas, mitigadas apenas por meio de mecanismos de compartilhamento dos riscos.
A ação
“fomento à curadoria de conjuntos de dados nacionais e apoio ao desenvolvimento de modelos fundacionais especializados em português” é a que gerou grande nervosismo no setor. O PBIA menciona o apoio ao desenvolvimento de LLMs em português em 12 meses, mas o detalhamento da iniciativa faz referência apenas ao aprimoramento de bases de dados nacionais para treinamento, que interessa a muitos desenvolvedores, recomendando que, por contar com recursos públicos, pelo menos a base deva ser de acesso aberto, não proprietário.
Ao citar LLMs do país, como Sabiá-2 e MariTalk (da Maritaca IA) e Amazonia AI (WideLabs), criou especulações sobre a identificação ex-ante de potenciais “campeões nacionais” (Queiroz, 2024), o que pode comprometer a credibilidade da política.
É importante lembrar a assimetria que caracteriza a indústria global de IA, com players gigantes, multinacionais e integradas, que controlam o progresso técnico e os ativos complementares para apropriação do valor da inovação, junto a uma multiplicidade de pequenos desenvolvedores, startups, sem capacidade para atender requisitos tradicionais de concessão de crédito, como colaterais e até mesmo garantia de mercado.
A pulverização dos pequenos desenvolvedores se reflete na sua representatividade, existindo múltiplas associações de classe, sem que nenhuma seja efetivamente capaz de responder pelas demandas da indústria.
Por fim, a instalação de datacenters no país diante da dificuldade física para expansão dos existentes nos países desenvolvidos, além dos crescentes requisitos ambientais, cria uma vantagem comparativa para o país pela tradição e potencial de energia renovável, mas esbarra em problemas relacionados ao clima mais quente e uma maior demanda por consumo de água para resfriamento dos equipamentos.
A gestão: esquecendo erros passados para projetar os futuros
A gestão e o monitoramento do PBIA parecem inspirados no modelo de Comitês Gestores dos fundos setoriais do FNDCT. Contempla três instâncias: 1) um Conselho Superior, composto pela Presidência da República, representantes dos Ministérios, setor empresarial, academia e sociedade civil, responsável pela definição de diretrizes, harmonização das ações estruturantes e iniciativas; 2) um Comitê Executivo, que dá suporte ao Conselho Superior e supervisiona as Câmaras temáticas, composto por representantes dos Ministérios, representantes do setor empresarial, academia e sociedade civil; e 3) cinco Câmaras Temáticas, que deverão acompanhar a execução das ações e apresentar soluções para demandas do Conselho Superior, que indica seus membros.
O modelo de gestão compartilhada é, na realidade, uma nova embalagem dos modelos existentes, complexos e de difícil operacionalização. Cria instâncias elevadas, desvinculadas da rotina operacional e da legislação pertinente às agências executoras, com destaque para as responsáveis por crédito e recursos não reembolsáveis, com grande potencial de atrito e ineficiência. A definição dos representantes das Câmaras Temáticas pelo Conselho Superior pode sugerir ingerência de natureza política, em lugar de técnica.
Um aspecto importante diz respeito à seleção de projetos para crédito e recursos não reembolsáveis. O PBIA menciona, pontualmente, o instrumento de editais, sem referência à forma e critérios da seleção para crédito e subvenção. Ademais, não menciona instrumentos de capital de risco operados pela FINEP e BNDES, nem parece contemplar instrumento de incentivo fiscal e o já comentado public procurement.
O acompanhamento parece corresponder aos tradicionais mecanismos de acompanhamento financeiro, sem explicitação de indicadores para monitoramento, factíveis e transparentes em termos de resultados esperados. A grande pulverização das ações em mais de noventa iniciativas cria dificuldades quase intransponíveis para visualizar o produto final e permitir reorientações de rumo — como pode requerer uma tecnologia em rápida e permanente mudança como a IA — para viabilizar uma “IA para todos”.
A indústria da IA tem um padrão diferenciado da grande maioria dos setores tradicionais da economia industrial, com o lançamento de novos modelos acompanhado por publicações científicas concomitantes. Muitos são disponibilizados em licenças open-source, de diferentes modalidades, com grandes desafios em termos de propriedade intelectual que não foram sequer mencionados no PBIA, podendo criar entraves futuros.
Considerações finais
A despeito do inegável mérito de termos um esboço de plano para IA, libertando o país das amarras da mera abordagem regulatória, com a ambição de construir uma agenda moderna do século XXI para uma IA segura, confiável, mas também inovadora, o PBIA deixou muitos pontos em aberto, lacunas e mais perguntas que respostas. As observações relacionadas à atualização do supercomputador do LNCC, ao apoio ao desenvolvimento de LLMs em português, à instalação de datacenters e, em especial, ao escopo da soberania tecnológica e das questões relacionadas à propriedade intelectual precisam ser esclarecidos.
O plano, oportuno e ambicioso, parece incorrer em velhos vícios da política de inovação brasileira, que, somados à inexperiência de um setor emergente, formado por players nacionais dispersos e com pouca interação com políticas públicas, pode nos excluir do uso inovador da IA. As velhas práticas de dar uma nova roupagem a ações orçamentárias existentes; a falta de prioridades claras, que se revela na multiplicação de ações; mecanismos de governança “participativos” que diluem responsabilidades e não agregam valor às ações; um driver estatizante; e o viés acadêmico e científico, como é da tradição da política de inovação do país, podem ser fatais neste setor.
A obliquidade de política de oferta se sobrepõe à orientação para a demanda das modernas políticas de inovação e, finalmente, há o velho e sempre presente risco de cortes.