Fernando Nogueira da Costa* | No GGN

A chamada Nova Democracia, ou Nova Economia, tendo como foco central o humanismo iluminista, adota como uma de suas características a multidisciplinariedade. Adeptos da visão holística tratam a economia como um dos componentes de um sistema complexo, emergente das interações entre todos eles. Essa ótica exige sim um novo conhecimento transdisciplinar, onde as especializações não são apenas justapostas, mas as distintas áreas de conhecimentos são integradas de maneira coerente e consistente. O objetivo é superar a compartimentalização da antiga divisão de trabalho científico.

À la Karl Polanyi, defende uma economia humanizada e incrustada na sociedade. Devido a essa “incrustação”, a economia deixa de ser vista como autônoma, como fosse autodeterminante de um sistema à parte. A Nova Economia também se contrapõe aos pregadores de mercados autorregulados. São ideólogos defensores da subordinação da sociedade à lógica do mercado.

Pelo contrário, na história predominou a subordinação da economia à sociedade. Quando se buscou impor a autorregulação dos mercados, a sociedade reagiu. Pela Nova Democracia, permanece o combate ao predomínio de uma zona de interesses – a Economia – sobre as demais. As políticas públicas devem ser desenvolvidas de forma sistêmica, levando em conta os conflitos de interesses relacionados às escolhas de instrumentos da política econômica, de políticas sociais, das formas de gestão de empresas estatais, etc.

Uma das ideias-força da Nova Economia é a redução das desigualdades. Pressupõe ser este o mote principal, em torno do qual todas as políticas se entrelaçam. Como um lema de vida, o mote dos revolucionários é instaurar uma ordem social igualitária.

Convencionalmente, se colocam na esquerda as pessoas defensoras da eliminação das desigualdades sociais. A direita insiste na convicção de as desigualdades serem naturais e, enquanto tal, não são elimináveis. É um reducionismo binário. Cabe ampliar a reflexão para abranger toda a complexidade existente em torno da questão da desigualdade.

A leitura do capítulo a respeito no livro de autoria do psicólogo evolucionista Steven Pinker, “O novo Iluminismo: Em defesa da razão, da ciência e do humanismo” (SP: Cia. das Letras; 2018), nos propicia questionar esse dogma, caso ele seja apresentado de maneira estática ou absolutista.

À medida que os países enriquecem, devem tornar-se menos iguais. Com a progressiva migração campo-cidade, os migrantes trocam a agricultura por tipos de trabalho mais bem remunerados na indústria ou em serviços, afastando-se da penúria rural. Por exemplo, pela PNADC de maio de 2019, o rendimento médio real das 8,6 milhões de pessoas ocupadas na agropecuária era R$ 1.333, enquanto das 11,9 milhões na indústria geral era R$ 2.277 e dos 16,3 milhões nos serviços públicos, R$ 3.479.

Contudo, “a subida da maré eleva todos os barcos”. Com crescimento da renda cai a pobreza. Ao se desenvolver o Estado de Bem-Estar Social, a desigualdade diminui, configurando uma curva em forma de U invertido, chamada de curva de Kuznets.

Devido à Revolução Industrial, na virada do século XVIII para XIX, países europeus alcançaram a Grande Saída da pobreza universal. Em consequência, Angus Deaton, Prêmio Nobel de Economia e autor de “A Grande Saída” (RJ: Intrínseca; 2017), constata: “um mundo melhor gera um mundo de diferenças; saídas geram desigualdade”.

Conforme a globalização avançou e os conhecimentos sobre como gerar riqueza se difundiram, países pobres começaram a aproximar-se dos mais ricos em uma Grande Convergência. Houve queda na desigualdade global com a decolagem do PIB de países asiáticos, em particular, da China. Levou à queda pronunciada da proporção e do número de pessoas vivendo em extrema pobreza. Ampliou o consumo massivo.

Depois da Revolução Industrial, a desigualdade global aumentou até meados do século XX e então começou a cair. As curvas do Gini internacional (comparação entre rendas médias de cada país) e global (cada pessoa no mundo representa o mesmo peso das demais) mostram, apesar da preocupação com a desigualdade crescente em países ricos, a desigualdade no mundo está diminuindo. Para o progresso humano, segundo Pinker, mais importante do que declínio da desigualdade é ser um declínio da pobreza.

A queda acentuada da desigualdade — chamada de Grande Nivelamento ou Grande Compressão — é simultânea às duas guerras mundiais, entremeadas pela Grande Depressão. Guerras costumam nivelar a distribuição da renda porque destroem capital gerador de riqueza, inflam os ativos de credores e induzem os ricos a tolerar impostos mais altos. Governos em guerra distribuem então a maior arrecadação fiscal para os pagamentos dos militares e empregados de fábricas de armas e munição. Isso, por sua vez, eleva a demanda por mão de obra no resto da Economia de Guerra.

Guerras são apenas um dos tipos de catástrofe capaz de gerar maior igualdade, segundo a lógica de nivelar por baixo. Outros são uma revolução transformadora, o colapso do Estado e uma pandemia letal.

Além de destruir a riqueza e, em muitas revoluções comunistas, fuzilar as pessoas possuidoras dela, esses quatro motivos reduzem a desigualdade ao matar grande número de trabalhadores e, assim, impelir a alta de salários dos sobreviventes. A esquerda, ao prezar a igualdade econômica acima de tudo, precisa ponderar a qual custo ela pode ser alcançada, caso seja em decorrência de demasiado sofrimento social.

Uma economia de mercado deixada livre, ou seja, autorregulada, não é o melhor programa de redução da pobreza. Ela é inapropriada para cuidar dos indivíduos necessitados. Estes não têm a força do trabalho para dar em troca de dinheiro. São os muito jovens, os velhos, os doentes, os desafortunados e outros, cujas habilidades ou forças não são suficientemente valiosas para outros a ponto de lhes permitir, em troca, ganhar a vida a contento.

Em caso de uma economia humanizada e incrustada na sociedade, ou seja, de uma socialdemocracia liderada por partido de origem trabalhista, os fundos arrecadados pelo governo são prioritariamente dirigidos para diminuir a pobreza.

Esses recursos devem provir de um imposto progressivo sobre a renda, no qual os cidadãos mais ricos são tributados com alíquotas maiores. Eles não sentem a perda na mesma intensidade face ao sentido pelos menos ricos. O objetivo é elevar a base, e não rebaixar o topo. No entanto, na prática, a renda disponível do topo desce.

Uma economia tem de buscar sempre se enriquecer. Nesse processo, alguns se enriquecerão em maior ritmo, tornando-se capazes de serem mais tributados para se prestar a assistência social aos necessitados.

Steve Pinker sugere como primeiro fundamento para compreender a condição humana o conceito de entropia ou desordem. Nasceu da Física do século XIX. A segunda lei da termodinâmica determina, em um sistema isolado, ou seja, não interativo com seu ambiente, a entropia nunca diminuir. Sistemas fechados tornam-se inexoravelmente menos estruturados, menos organizados, menos capazes de alcançar resultados úteis. Eles se estacam em um equilíbrio sem vida com a permanência de estagdesigualdade.

A expressão ordem e progresso teve origem na corrente filosófica e política do positivismo, surgida no século XIX. Os ideais e o lema de Auguste Comte contribuíram para a proclamação da República no Brasil e serviram de inspiração para a elaboração da bandeira brasileira. O positivismo possui ideais republicanos, como a busca de condições sociais básicas através do respeito aos seres humanos, salários dignos, bem como o melhoramento do país em termos materiais, intelectuais e morais.

Um cemitério tem ordem, mas não tem progresso. Em economia estagnada e desigual não se combate a pobreza. Esta também não se combate com livre armamentismo para força paramilitar. Isto gera apenas combate mortal aos pobres.

A Revolução Igualitária ocorreu quando sociedades passaram alocar uma parcela substancial de sua riqueza para saúde, educação, pensões e programas de transferência de renda. Nos Estados Unidos, aconteceu com o New Deal, adotado para combater a Grande Depressão. Em outros países desenvolvidos, ocorreu com a ascensão do Estado de Bem-Estar Social após a Segunda Guerra Mundial. Na Guerra Fria, o gasto social prevenia contra a sedução de regimes totalitários sob líderes carismáticos. Hoje, o gasto social absorve em média 22% do PIB desses países, enquanto no Brasil só 16%.

Face à ameaça do desemprego tecnológico e globalização da economia, políticas luditas e protecionistas só piorarão a situação para todos. Em vez de combater a atual estagdesigualdade em si, é mais construtivo lidar com os problemas específicos relacionados a ela ao impulsionar a taxa de crescimento econômico em conjunto com políticas sociais ativas. Não cabe à esquerda celebrar o declínio da desigualdade a qualquer custo, como fosse bom para a humanidade matar os mais ricos e manter os mais inteligentes fora da escola. A vida dos pobres melhora mais com políticas sociais (educação, saúde, segurança pública, etc.) de combate à pobreza. Adotando a tributação progressiva para as financiar, é decorrente o combate à desigualdade.

 TabelaFernadoRiquesa

NOTA: observe no quadro acima, nos últimos 3,5 anos, enquanto 123 mil clientes Private Banking atingiram a riqueza financeira per capita de R$ 9,3 milhões, aumentando-a em R$ 2,8 milhões, os 73 milhões clientes do varejo enriqueceram em apenas R$ 6.140,77 per capita. A classe média baixa perdeu R$ 1.466,82 e a classe média alta ganhou só R$ 28.839,47 em média per capita. Quem bateu panela vazia a favor do golpe era feliz e não sabia...

As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.

* Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..