Fernando Nogueira da Costa | No GGN
Em companhia de dois, três provocam complexidade. Nunca o(a) outro(a) foi bem aceito(a) em uma relação de casal. Porém, O mundo real vai muito além de pares e/ou raciocínios binários, tipo Tico-e-Teco (“2 neurônio” sem S e sem conversarem entre si).
É um contumaz reducionismo se restringir a análise socioeconômica à disputa entre O Estado e O Mercado. Este é louvado como um ser sobrenatural e tratado com letras maiúsculas, porquanto ser visto como onipresente, onipotente e onisciente, embora estes dois últimos atributos sejam logicamente contraditórios. Se Ele prevê o futuro, perderá o poder de mudar o rumo da história...
Uma série de filmes recentes tem feito comentários sociais a respeito da reação de A Comunidade face à disputa binária entre O Mercado e O Estado: Coringa, Bacurau, A Lavanderia, etc. O primeiro é apresentado como invasor da privacidade, sugador de mentes, explorador dos “perdedores” (“losers”) descartáveis, inclusive com seguidos corte dos seus direitos sociais. O Mercado impõe o corte dos gastos públicos em nome da prioridade colocada na solvabilidade do Estado soberano quanto aos títulos de dívida pública usados como lastro da riqueza privada. Ou, antes, para eliminação do risco da eutanásia dos rentistas se a inflação ultrapassar os juros prefixados.
O Estado, por sua vez, é representado por milionários/bilionários populistas e/ou políticos oportunistas, circunstancialmente eleitos ao aproveitar da raiva difusa do povo eleitor contra o desemprego cíclico e tecnológico, a reversão da mobilidade social, a corrupção, a letalidade policial, entre outras mazelas cotidianas. O populista de direita diz falar “em nome do povo”, na verdade, o reduz a uma diminuta maioria eventual, angariada apenas na data da eleição, e esmaga os direitos dos demais cidadãos. Logo, com a decepção da maioria dos eleitores iludidos, sua base de apoio se torna minoria.
A Comunidade é tratada como mera “massa de manobra” para proveito individualista. Seja como palhaços enlouquecidos (no Coringa), seja como caças revoltadas (no Bacurau), ou mesmo, como viúvas sem marido e dinheiro (em A Lavanderia), os filmes mostram a explosão vingativa do ódio popular. No Chile em chamas, por conta de uma revolta de eleitores fartos do neoliberalismo, monumentos e muros da capital amanheceram pichados com frases do filme de Todd Phillips. Foi pichada a frase “We are all Clowns”, traduzindo o sentimento popular: “Nós somos todos palhaços”.
No Equador, a revolta foi também contra o modelo neoliberal, defendido em benefício próprio por O Mercado, para ser imposto a todos países atrasados. Os índios, os nativos e, principalmente, as mulheres indígenas se insurgiram contra essa ideologia governamental indiferente à Comunidade. Aguardam-se, na América Latina, novas explosões populares de raiva difusa. Aqui, talvez, contra o neofascista Sniper de helicóptero, cujas “balas-perdidas” atingem vítimas inocentes.
O “dinheiro de helicóptero” será a solução contra o desemprego e a carência de renda? Até essa proposta de política de financiamento monetário do gasto público, para evitar aumento do endividamento, em investimentos de infraestrutura e subsídios ao financiamento habitacional de interesse social, é vista com restrição por economistas-chefes de O Mercado. Eles pautam a imprensa chapa-branca em nome da ideologia neoliberal defensora apenas da liberdade econômica – e indiferente aos demais direitos (civis, políticos e sociais) da Comunidade.
Assisti, na semana passada, uma apresentação no XXIII Congresso Brasileiro de Economistas sobre criptoativos. Os três representantes de O Mercado se estenderam tanto na propaganda enganosa a ponto de não sobrar tempo para o debate com os economistas de posição antagônica. Durante suas longas exposições apologéticas da insurgência da inovação tecnológico-monetária “fora-do-controle” de O Estado, foi possível analisar a retórica típica desses executivos yuppies.
De início, retomam o abandonado conflito de gerações para louvar a indústria de gestão de recursos e seus novos gadgets à mão. “A preferência dos investidores está mudando conforme os millennials e a geração Z tomam o lugar dos baby boomers e da geração Y no mundo dos investimentos. A tecnologia avançou ao ponto de usar micro-ondas para economizar milissegundos em negociações. Os órgãos reguladores reconheceram a velocidade das inovações e estão criando sandboxes para as fintechs testarem suas soluções em um ambiente controlado e sob sua supervisão.” Ora, ora, nem crianças brincando em caixas-de-areia acreditariam em controle da Autoridade Monetária sobre as moedas-digitais emitidas à vontade por rede formada por tecnólogos de O Mercado.
A retórica mercadológica busca sempre contar estórias, isto é, inventivas narrativas capazes de serem apreendidas pelos cérebros de humanos abominadores de complexidade. Esta é o reconhecimento de o comportamento coletivo de todo o sistema não poder ser simplesmente inferido a partir do entendimento do comportamento dos componentes individuais. Os propagandistas do individualismo adotam um método de enrolar, capaz de juntar fatos, generalizações de baixo nível de abstração e tecnologias de conhecimento apenas de especialistas, para iludir leigos. Arremata esse malcozido discurso ainda adicionando pitadas de julgamentos de valor em uma narrativa imaginada ser coerente.
Não se inibem em propagandear enganos ilusórios: “o Bitcoin é um dos ativos mais rentáveis da história do capitalismo. Se um investidor tivesse comprado US$ 100 nas primeiras negociações de Bitcoin, em 2010, teria hoje mais de US$ 5 milhões. Os retornos de 5.000.000% mexem com o imaginário tanto do investidor comum quanto do institucional. Mesmo hoje o Bitcoin ainda é uma opção muito atraente.”
Argumentam: “a união entre a indústria dos fundos de investimento e a dos criptoativos estar só começando, mas mostrar grande potencial. Para tanto, basta os agentes tradicionais reduzirem sua desconfiança em relação às inovações”. Ora, não se trata de reação conservadora contra o avanço da história, mas sim de conhecimento das instituições sociais, entre as quais, a moeda é uma das mais estudadas. Deveria ser obrigatório qualquer economista formado saber diferenciar entre moedas e dinheiro.
Sempre houve tentativas de criar diferentes formas de moeda, seja por O Mercado, seja por A Comunidade. Qualquer bem de quantidade escassa e desejado por muitos passa a ser visto como moeda na função reserva de valor. Por exemplo, o ouro é extraído das profundezas das minas para ser recolocado novamente nos subsolos, em cofres-fortes de Bancos Centrais, só a longa distância de onde foi extraído. Como o valor simbólico, atribuído por uma massa de especuladores boateiros, é volátil, em tempos de insegurança social, o escasso parece oferecer segurança individual! É puro rumor!
A diferença dessas moedas materializadas para a digital desmaterializada é questão de fé. Então, os sacerdotes de O Mercado pregam a crença em uma moeda invisível, escritural como outras, mas desejada por muitos. Possibilitaria o enriquecimento fácil.
Em uma religião, profeta é quem diz ter sido contatado pelo sobrenatural. Em Economia, diz ter sido contratado pelo divino O Mercado e ser capaz de falar por Ele, servindo como um intermediário com a Humanidade, isto é, a reles Comunidade, composta de desprezíveis carneirinhos com comportamento de rebanho. Ele passa este novo conhecimento, descoberto junto à entidade sobrenatural, para seus seguidores crentes.
A mensagem transmitida pelo profeta é chamada de Profecia. No caso, é autorrealizável: se todos querem qualquer coisa dada, o valor daquilo sobe às alturas. Infla como uma bolha. E depois explode como um sonho irreal.
Os representantes dos fundos de bitcoin e outros criptoativos propagam a sua grande atratividade como um investimento por conta de sua súbita valorização. Não alertam sua grande volatilidade representar risco em mercado financeiro. E tampouco falam de liquidez: dificuldade de, em momentos de crise, os resgatar. Isso sem falar em inúmeras Pirâmides da Felicidade, o Esquema Ponzi de novas entradas serem contabilizadas como retornos. O instinto puramente especulativo leva os incautos não só a acreditar nos valores crescerem ainda mais, mas também a crer possuírem a genialidade especial de cair fora antes de O Mercado desabar. É a falácia conhecida como “sorte do iniciante”. Ele sempre entra no boom, ganha e se gaba tanto a ponto de atrasar-se perante o crash.
Moeda nacional tem curso forçado por pagar tributos em determinado território. Uma moeda com valor especulativo e capaz de transpor fronteiras nacionais é muito capaz de atender a interesses do narcotráfico, do mercado global de armas, da escravidão sexual, entre outros mercados paralelos criminosos. Por isso, sete das empresas de alta visibilidade, entre as quais eBay, PayPal, Visa e Mastercard, recuaram do projeto Libra, liderado pelo Facebook. Membros da Associação Libra se afastaram após autoridades reguladoras e políticos do mundo inteiro terem advertido: uma moeda digital do mercado de massa representaria uma ameaça ao sistema financeiro, além de levar à lavagem de dinheiro e possibilitar maior financiamento ao terrorismo.
Um economista consciente de sua responsabilidade necessita alertar a razão da moeda oficial ser de curso forçado: para A Comunidade e O Mercado pagarem impostos para O Estado atender à demanda social por serviços públicos como segurança, educação, saúde, etc. Para se tornar dinheiro, tem de cumprir todas as três funções clássicas: reserva de valor, unidade de conta e meio de pagamento. Todo dinheiro é moeda, mas nem todas as moedas se transformam em dinheiro por seu uso geral.
As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.
* Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.