Marta Castilho e Fernando Sarti | No Le Monde Diplomatique
O entendimento das profundas mudanças nos fluxos internacionais de comércio e de investimentos nas últimas três décadas, refletidos na expansão das redes globais de valor e nas novas estratégias corporativas de geração e captura de valor, é fundamental para balizar as ações e negociações de política comercial e externa. Essas transformações ampliaram os riscos e oportunidades para as economias periféricas como o Brasil. Uma política externa ativa e soberana com os principais parceiros dentro das regras da institucionalidade internacional (OMC, G-20, Banco Mundial, Banco dos Brics e outras organizações regionais) contribui para reduzir os riscos e capturar as oportunidades. No que se refere à esfera comercial, uma inserção externa virtuosa nas redes regionais e globais de comércio pressupõe ganhos constantes de competitividade, cada vez mais associados ao desenvolvimento tecnológico, e a uma política comercial e externa adequada e funcional.
O novo governo já sinalizou qual será a tônica de sua política externa. Os caminhos da política comercial e externa brasileira têm aparecido em pronunciamentos formais e informais e também nas nomeações de membros do futuro governo. O que sobressai de todos esses sinais é uma clara mudança de direção e de prioridades na política externa brasileira – e, obviamente, na política comercial –, com reflexo sobre as relações comerciais do país.
Dois elementos permeiam a guinada da política comercial do novo governo: uma maior abertura às importações e a mudança nas prioridades nas negociações de acordos comerciais, mais atrelada à agenda norte-americana, colocando as negociações regionais e as relações comerciais com a China em segundo plano. Com relação à uma nova rodada de abertura comercial, que não trataremos neste artigo, cabe registrar que o expressivo aumento nos coeficientes de penetração das importações (70%) e de insumos industriais importados (40%) nos últimos quinze anos não proporcionaram os ganhos de eficiência, de capacitação tecnológica e de competitividade esperados quando observamos a evolução do coeficiente exportado (exportação em relação à produção doméstica de manufaturados) que permaneceu estável no baixo patamar de 15,7% no mesmo período, segundo dados da CNI.
Neste breve artigo, pretende-se mostrar a racionalidade da política comercial brasileira recente no que tange às suas prioridades em termos de parceiros.
Uma característica bastante positiva da pauta de comércio exterior brasileira é a sua diversificação geográfica. O Brasil é o que se denomina de “global trader”, o que reduz a dependência do país às flutuações macroeconômicas e mudanças políticas de um único país ou região. Diferente do caso do México, por exemplo, que destina 80% das suas exportações para os Estados Unidos, com quem obteve um superávit de US$ 130 bilhões em 2017, mas, em contrapartida, registrou um déficit de US$ 140 bilhões com o resto do mundo. Aliás, essa postura “multilateralista” do Brasil não se restringe à esfera puramente comercial: o país tem uma história de participação e de apoio às organizações multilaterais muito além da OMC. Sua participação ativa em foros multilaterais ambientais e sua contribuição para o tímido e difícil avanço das negociações internacionais sobre mudanças climáticas, por exemplo, é reconhecida pela comunidade internacional.
Os Estados Unidos e a União Europeia seguem importantes parceiros comerciais do Brasil, mas essa importância reduziu-se nos últimos 25 anos como resultado da estratégia de diversificação da pauta de exportação e da maior abertura às importações. Em 1990, Estados Unidos e União Europeia eram responsáveis por mais da metade dos fluxos de comércio exterior (exportação mais importação), o que se reduziu para pouco mais de um terço em 2015. Em contrapartida, a partir de 2000, a China emergiu como outro importante parceiro comercial. Desde 2009, tornou-se o principal mercado de destino de nossas exportações e tem dividido com os Estados Unidos o posto de principal mercado fornecedor de produtos para o Brasil. A América Latina ganhou espaço na pauta de comércio exterior, por conta sobretudo do Mercosul e das relações comerciais com o México, embora a região tenha perdido participação relativa nos fluxos comerciais brasileiros nos últimos quinze anos em função da crescente presença chinesa. O ponto a ser destacado, como bem ilustra o Gráfico 1, é que a distribuição geográfica dos fluxos de comércio brasileiros, a despeito do ganho de importância da China e das negociações regionais, mostra que o país aprofundou ao longo dos 25 anos sua característica de global trader. Percebe-se que cerca de quatro regiões (União Europeia, China, América Latina e Estados Unidos) respondem por fatias que vão de 14% a 20% dos fluxos totais e que outros parceiros da Ásia e da África também ganharam importância. Portanto, os fatos não corroboram a versão equivocada de uma prioridade e/ou dependência regional nos fluxos de comércio. O Brasil fortaleceu sua posição multilateral.
Essa diversificação foi fundamental para o desempenho do comércio exterior brasileiro no período pós crise financeira internacional de 2008. O superávit comercial acumulado no período 2009-2017 foi de US$ 226 bilhões. As maiores contribuições foram da China (40%), América Latina (40%), Oriente Médio (20%) e União Europeia (5%). Com relação aos Estados Unidos, observou-se um déficit acumulado de US$ 46 bilhões. Do ponto de vista estratégico e geopolítico, certamente seria muito mais interessante que o superávit comercial fosse gerado com relação aos Estados Unidos, União Europeia e China, abrindo espaço para um déficit comercial regional no âmbito de um crescente processo de integração produtiva regional.
Esse aspecto relevante das relações comerciais brasileiras resultou, em parte, da política externa dos governos Lula e Dilma que priorizaram as relações sul-sul e que, num variado espectro de políticas externas, promoveram a aproximação – inclusive comercial – com a América Latina, com a África e, last but not least, com os países dos Brics. Outros fatores associados à evolução da economia mundial e dos diversos parceiros contribuíram para o atual desenho das relações externas brasileiras.
A diversificação geográfica do comércio exterior brasileiro vem acompanhada de uma – também salutar – diversificação da composição setorial das exportações brasileiras entre nossos parceiros. Por um lado, para a China elas se concentram em algumas poucas commodities (soja e minério de ferro, de menor intensidade tecnológica, e petróleo, a partir da crescente produção excedente do pré-sal). Já para outros países, como México, Argentina e demais países da América Latina, os produtos manufaturados e, notadamente, aqueles de maior grau de sofisticação e/ou conteúdo tecnológico têm peso significativo.
O Gráfico a seguir ilustra essa diferente especialização. Distinguimos dentre os manufaturados aqueles que possuem maior conteúdo tecnológico dos demais, separando-os igualmente dos produtos primários de origem vegetal e os produtos da indústria extrativa.
O peso de produtos de maior conteúdo tecnológico na pauta de exportação é maior nos países da América Latina, em particular, do Mercosul (60% da pauta). Cabe destacar a importância dos mercados latino-americanos para as exportações brasileiras de bens de maior conteúdo tecnológico. Do total exportado desses produtos, a América Latina absorve mais de 40% (o Mercosul é responsável por 24%), enquanto os Estados Unidos, 22%. Na pauta de exportações para os Estados Unidos, os produtos manufaturados representam mais de 83% do total, dos quais quase a metade de bens de maior conteúdo tecnológico. Já os países da União Europeia absorvem uma parte relativamente baixa de produtos de maior conteúdo tecnológico. Na estrutura de exportação para a União Europeia prevalecem as exportações de manufaturados de menor conteúdo tecnológico. Na pauta com a China os manufaturados correspondem apenas a 23% do total exportado pelo Brasil, sendo somente 5% produtos de maior conteúdo tecnológico.
Esse rápido panorama das exportações brasileiras nos últimos 25 anos ilustra a pertinência de se manter uma estratégia de natureza multilateral: de um lado, reforçando a integração produtiva e os fluxos comerciais com os países do Mercosul e da América Latina, o que contribui para promover o desenvolvimento regional, do qual o Brasil também se beneficia; de outro, aprofundando as relações comerciais com os parceiros dos Brics.
A primeira justificativa reside na importância da América Latina (e também de outros países em desenvolvimento da África) para a indústria brasileira, que, conforme visto acima, é a maior absorvedora de produtos manufaturados de maior conteúdo tecnológico. O Brasil tem, apesar da crescente presença chinesa na região, logrado exportar tais produtos em parte graças aos acordos comerciais existentes com seus parceiros latino-americanos. Uma maior integração e complementaridade produtivas reforçariam os fluxos regionais de comércio.
A segunda justificativa consiste na importância da China como mercado de destino das exportações brasileiras e na geração de expressivos saldos comerciais. Neste caso, seria desejável a busca de uma mudança do mix de produtos a fim de reduzir a concentração extremamente elevada nas exportações de commodities agrícolas e minerais para aquele país. Dada a importância da China para a economia mundial e, em particular, para a economia brasileira (não somente em termos comerciais, mas também em termos de investimento direto estrangeiro e de cooperação financeira internacional), não parece razoável, política e economicamente, criar dificuldades no comércio com a China e aderir à agenda protecionista norte-americana.
A terceira justificativa está no fato de que um possível recuo na institucionalidade do Mercosul significará anular os esforços de acordo com a União Europeia, que compõe um dos pilares da pauta brasileira de comércio exterior. A dinamização das relações comerciais com a União Europeia e os Estados Unidos deve ser buscada por meio de negociações entre Mercosul e aqueles blocos. Porém, essa dinamização não deve ser feita em prejuízo dos principais mercados de exportações brasileiros, tanto os de manufaturados como os de bens primários. Outros argumentos, de ordem não comercial e mesmo não estritamente econômicos, apoiam tal posição. Porém, eles fogem ao escopo da discussão aqui proposta acerca da pertinência da orientação da política externa nos próximos anos dado o perfil comercial brasileiro.
*Marta Castilho é professora do Instituto de Economia da UFRJ; e Fernando Sarti é professor do Instituto de Economia da Unicamp.