Fernando Nogueira da Costa | Na Carta Maior

Joseph Schumpeter, em seu livro “História da Análise Econômica” (1954), salienta a superprodução de Teorias das Crises e a posterior eliminação de suas ideias mais ingênuas. Nota também diversas Teorias de Subconsumo aparecerem quase como contrapartida da impossibilidade lógica de uma superprodução em todos os setores de atividade, dado o encadeamento de insumos e produtos. Critica as Teorias das Perturbações Ocasionais, ou seja, os casuísmos explicativos para situações datadas e localizadas, mas não passíveis de generalização.

O passe teórico seguinte na História do Pensamento Econômico foi a descoberta do ciclo e o aparecimento tanto das teorias monetárias quanto das teorias do investimento em relação à evolução cíclica. Mesmo uma Teoria de Superconsumo ou outra de Ciclos de Colheitas não estiveram ausentes de trabalhos estatísticos para levantamento numérico do problema da oscilação do crescimento econômico.

Sua impressão é de nenhum autor ter contemplado todos os componentes interconectados de um sistema complexo, cujas interações possibilitam as configurações de ciclos sequenciais com suas crises periódicas. Permanece o desafio de os combinar em uma estrutura teórica integrada, mesmo sendo esta provisória, dada a possibilidade de surgimento de novos elementos, seja pela inovação tecnológica, seja pela inovação financeira.

John Stuart Mill, no século XIX, tentou oferecer uma síntese ao descrever o mecanismo cíclico em termos de expectativas de lucro, induzidas por ocorrências favoráveis ou desfavoráveis no ritmo de vendas, atuantes sobre os estoques dos vendedores e, em consequência, sobre os preços. Em uma “inflação verdadeira”, estes se elevariam pelo esgotamento da capacidade produtiva. Em situação de capacidade ociosa, inclusive pela queda do poder aquisitivo real, os preços começariam a cair – e cairiam ainda mais em um processo deflacionário pela simples razão de terem caído antes e os consumidores esperarem sempre “comprar barato só amanhã”.

Ele realçou o fato de a disponibilidade de crédito farto e barato aumentar enormemente a violência de tais flutuações. As crises comerciais foram definidas como situações nas quais um grande número de vendedores, de uma só vez, por conta do receio de falência caso não consigam cumprir seus compromissos contratuais com os bancos, coloquem em simultâneo seus ativos existentes em liquidação para obterem liquidez. Os preços despencam e eles se descapitalizam em valores de mercado.

Uma crise poderá surgir sem uma concessão extraordinária de crédito (e dívida) quando uma grande proporção do capital de suporte para a razão da alavancagem financeira é absorvida por uma demanda inusitada de remessa de lucros ao exterior. Dada uma crise na matriz, o repatriamento de capital para o centro descapitaliza as filiais na periferia. Isto quando o capital não está todo imobilizado em investimentos fixos.

Como dito, foram filtradas as ingênuas Teorias de Superprodução e de Subconsumo, especialmente a Teoria da Superpoupança. Dentro dos acontecimentos macroeconômicos da depressão, têm lugar tanto a capacidade produtiva não ocupada quanto a insuficiência de gastos, seja em consumo, seja em investimento. Os juros têm um papel estrito e, da mesma forma, o mecanismo puramente monetário do dreno interno por conta das operações compromissadas e/ou dos recolhimentos compulsórios determinados pela Autoridade Monetária. Isto sem falar na (dis)paridade com o juro internacional e a consequente drenagem ou irrigação de liquidez.

A periodicidade regular ou irregular foi também objeto de debate sobre a possibilidade de extensão de uma série temporal regular para vislumbrar o futuro desconhecido e incerto. Esta seria a busca por economistas do seu Santo Graal, um recipiente mágico capaz de dar vida e vigor às pessoas. Afinal, esta lenda aparece durante a Idade Média e passa por um processo de cristianização ao designar o cálice usado por Jesus Cristo na Última Ceia. Daí ela ser uma fonte de milagres econômicos é apenas um passo.

A análise de Marx dos ciclos econômicos é um capítulo à parte – e não escrito. Não apresentou nenhuma imagem nítida do fenômeno, para tristeza e desafio de todos os marxologistas. Embora sua metodologia histórico-indutiva se resuma na célebre trilogia concreto-abstrato-concreto pensado, ele parte, em sua exposição em O Capital, do nível mais abstrato em sua Teoria do Valor-Trabalho, tratando do capital em geral, para baixar posteriormente a abstração do complexo para o simples. Incorpora outras áreas de conhecimento, em uma ciência aplicada, até alcançar o nível mais concreto e histórico da concorrência entre capitais particulares. Mas poucos dogmáticos demonstram ter lido os Livros II e III de O Capital, talvez por serem póstumos, senão pela extensão.

No Livro Terceiro, Marx trata do processo global da produção capitalista, inclusive analisando a divisão do lucro em juro e ganho empresarial ao analisar o capital portador de juros e as partes constitutivas do capital bancário, distinguindo o capital monetário e o capital real. Trata também de renda diferencial e fundiária. Finaliza se referindo à ilusão da concorrência e, ao falar de relações de produção e de distribuição, conclui com análise das classes sociais. No suplemento, seu parceiro Friedrich Engels acrescenta um manuscrito de página e meia sobre a bolsa de valores.

Cobrar de Marx uma antevisão do ocorrido no futuro seria puro anacronismo. Consistiria em erro cronológico, quando determinados conceitos, objetos, pensamentos, costumes e eventos são usados para retratar uma época diferente daquela de fato pertinente. O anacronismo é caracterizado pelo desalinhamento e falta de correspondência entre as particularidades das diferentes épocas, quando elementos próprios de cada tempo são, erroneamente, misturados em uma mesma narrativa.

Após 1865, quando o Livro Terceiro de O Capital foi manuscrito, sobreveio uma transformação financeira capaz de conferir à bolsa de valores uma importância crescente, tornando-a via ações na representante eminente da atribuição subjetiva de valores de mercado às riquezas capitalistas. Até então, a bolsa era ainda um elemento secundário no sistema capitalista. Assim, como no seu caso, era impossível antever as demais inovações financeiras, aliás, ainda em curso no sistema complexo em evolução.

São níveis de abstração distintos pensar a essência de exploração da força do trabalho pelo capital-dinheiro e analisar as crises periódicas com repercussões institucionais. Na questão dos ciclos, o nível de abstração é mais baixo por cada crise constituir uma individualidade histórica quando analisada em seus pormenores. Cada qual é condicionada por circunstâncias irrepetíveis ou sem analogias exatas em outros ciclos.

O analista tem de lidar com fatos históricos e até mesmo construir para eles teorias ad hoc. A escolha dos fatos cuja relevância deve ser analisada depende do nível de abstração escolhido. A Teoria do Ciclo visa comumente uma generalização. Mesmo com a pretensão de ser bastante geral pode conter elementos não essenciais sob o ponto de vista de um modelo puro, apresentados apenas como ilustrações de casos.

Marx, segundo a leitura de Schumpeter, “atentou cuidadosamente para a distinção vital entre as condições institucionais gerais que permitem os movimentos cíclicos e as ‘causas’ ou fatores que realmente os produzem”. Exemplifica essa postura com a anarquia da sociedade capitalista, a intervenção da moeda entre as transações reais, e a volatilidade do crédito bancário serem apresentadas como condições necessárias, mas não suficientes para serem vistas como as “causas”. Além delas, Marx destaca “os sintomas”.

As crises não foram para Marx nada mais além de uma fase no processo cíclico. Porém, percebe uma relação aparente entre os ciclos e o colapso financeiro da sociedade capitalista. As crises se tornariam mais destrutivas enquanto vai se esgotando a Era do Capitalismo de Mercado. Isso significaria uma transição através do Capitalismo de Estado (ou Socialismo de Mercado) antes de se alcançar o utópico Comunismo da Comunidade, imaginado por uma crítica radical à atual realidade?

Haveria um súbito ou um gradual colapso final? Seria imaginável o capitalismo se destruir em uma crise final? Seria ela de tal forma desastrosa a ponto de romper os alicerces da estrutura da sociedade capitalista?

Em sua análise, o processo cíclico por si e a tendência apontada no sentido do colapso pode ser vista como gradual e se dar, por exemplo, com uma longa estagnação de economias rastejantes, sem grande valor adicionado, mas com os valores existentes em contínua concentração nas mãos de poucos bilionários. As crises periódicas seriam assim “causas contribuintes” para uma situação final socialmente insustentável.

Marx jamais esboçou explicitamente uma teoria definida dos ciclos. Visualizou o ciclo decenal, interrompido por oscilações menores, correndo ao longo de uma sequência de fases ou períodos de atividade média - prosperidade - superprodução - crise - estagnação como característicos do processo de acumulação capitalista – e não simplesmente resultados de uma série de incidentes ou acidentes.

Destacou a elevação da ociosidade da capacidade produtiva resultante em contrapartida à criação do exército de reserva industrial como fatores de desbalanceamento. As crises seriam as catástrofes capazes de, periodicamente, restabelecerem os ciclos de reforços de feedback, isto é, quanto mais se tem, mais se ganha. O balanceamento, via “queima dos valores de capital excedente”, impediria o sistema de explodir ou implodir ao amplificar o movimento em círculos virtuosos ou viciosos.

Schumpeter destaca a questão remanescente: por que deve o processo de acumulação ser essencialmente desequilibrante? Equilíbrio segue a Lei da Gravidade econômica?

Marx considerou o ciclo como uma forma essencial da vida capitalista. Logo, uma resposta à citada questão não pode ser uma Teoria de Perturbações Ocasionais.

Imerso no século XIX, ainda sem redes globais de crédito bancário, ele julgou como desprezíveis as teorias creditícias do ciclo, embora tenha considerado a especulação e os outros excessos facilitados por um sistema de crédito expandido. Também não era adepto de qualquer ingênua Teoria de Superprodução, nem tampouco de Teoria de Subconsumo capaz de associar as crises com a inadequação do poder aquisitivo dos operários explorados.

Marx destacou a lei de movimento em longo prazo expresso pela tendência de queda da taxa de lucro, advinda não da acumulação por si, mas do relativo incremento do capital constante contra o capital variável. Curiosamente, embora Schumpeter considere tal lei estar no mais elevado nível de abstração, na atual 4ª Revolução Industrial com “internet das coisas” e automação, a substituição de trabalhadores por máquinas robóticas parece confirmar aquela troca.

Não estamos em período de prosperidade e pleno emprego global, mas mesmo assim inovações tecnológicas têm provocado investimentos em ciclos de novos produtos. Há expansão da capacidade produtiva maquinal, mas não empregadora de mão de obra. O aumento da produtividade em centros de tecnologia tem efeito sobre a queda dos preços dos bens antes considerados de consumo capitalista em benefício de toda a sociedade a ponto de a inflação deixar de ser um problema presente na maioria das economias com soberania monetária? Ao mesmo tempo, o efeito da economia de escala massiva não repercute na expansão dos lucros dos possuidores de tecnologia (Big Techs como o grupo GAFA – Google, Amazon, Facebook, Apple) e capital acionário?

Finalmente, Marx teria acertado ao antever a tendência ao desemprego tecnológico, mas foi demasiadamente otimista quanto ao fato de ele minar a estrutura industrial existente e a substituir por agroindústria e serviços urbanos, destruindo formas menos eficientes ou mais primitivas de exploração, de modo a levar à situação capaz de revoltar o proletariado. Ele parece ter compreendido nenhum desses elementos ser capaz de explicar, prontamente, a forma cíclica do processo de acumulação do capital e, muito menos, a ocorrência da CGC (Crise Geral do Capitalismo).

As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.

 

* Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.