Ricardo Carneiro | No Le Monde Diplomatique
Entre as grandes instituições multilaterais, financeiras e a mídia especializada, está formado o consenso de que a economia global não escapa de uma desaceleração a partir deste ano; de acordo com alguns indicadores parciais, ela já começou. A dúvida que persiste diz respeito à sua profundidade e à possiblidade de se converter numa recessão ou ainda numa crise financeira. Esta possibilidade está associada à articulação da desaceleração com processos mais profundos: de um lado, o desinflar da bolha de preços de ativos, produzida no pós-crise financeira global de 2008 (CFG) pela política monetária não convencional, em especial nos Estados Unidos; de outro, uma possível escalada da proteção comercial a partir das elevações unilaterais das tarifas por parte da gestão Trump.
Um primeiro aspecto a abordar diz respeito à dimensão quantitativa da fase de crescimento do ciclo econômico e a sua aceleração em 2017/2018. A primeira constatação é que há uma convergência no crescimento das principais economias desenvolvidas, fenômeno que não se observava desde os anos pré-CFG. Após esta última, o crescimento das economias desenvolvidas não só foi volátil e assincrônico, como raramente excedeu o patamar de 2,5% ao ano nas maiores economias – Japão, Estados Unidos e União Europeia. Assim, dois anos de crescimento convergente nesses países, acelerando para um patamar de 3%, foram saudados como um grande feito. Mas, pelos padrões pré-crise, trata-se apenas de um crescimento moderado e que já mostra desaceleração.
É importante analisar essa configuração dos ciclos econômicos nos países desenvolvidos. Há fortes indicações de que a financeirização dessas economias, sobretudo após a CFG, tenha produzido menos dinamismo do ponto de vista produtivo, vale dizer, crescimento menor e mais volátil. O exemplo mais evidente é o dos Estados Unidos. A despeito da ampla liberdade para manejar sua política econômica vis à vis os demais países – mesmo os desenvolvidos – os Estados Unidos também foram vítima de um crescimento volátil e baixo, a despeito de superior aos demais. Assim, a comparação entre o período pré-CFG, 2000 a 2007, com aquele pós-crise, 2010 a 2108, mostra que este país perdeu um terço da sua taxa de crescimento, de 3,5% a.a. para 2,2% a.a.
O detalhamento do ciclo norte-americano indica um peso maior do investimento ante o consumo no biênio recente. A esse propósito, duas observações: essa ampliação do investimento, a despeito de relevante, não recupera os patamares pré-crise. Por sua vez, o aumento se fez com níveis rapidamente crescentes de endividamento corporativo. Isso porque a financeirização impôs às empresas um padrão de escolha de ativos que vai muito além da compra de máquinas, equipamentos e instalações. Ele compreende a recompra de ações, as operações de Fusões e Aquisições e a distribuição de dividendos, que no seu conjunto exigem a ampliação da alavancagem, mas ampliam a fragilidade financeira, pois esses investimentos não dinamizam o circuito gasto-renda. Certamente, essa é uma das razões para o menor fôlego do ciclo.
O consumo, que havia sido o componente de destaque no crescimento norte-americano antes da CFG, entre 2000 e 2007, e cujo peso é decisivo, cerca de 70% da demanda agregada, tem comportamento muito menos dinâmico no ciclo recente. Cresce abaixo do aumento do PIB nos anos 2010 a 2014 e em 2017 a 2018. Duas razões de fundo explicam esse desempenho: a estagnação dos salários reais – cujo crescimento significativo, em torno dos 2% a.a., é muito recente – e o ainda elevado endividamento das famílias, em torno de 80% do PIB. A combinação de salários estagnados (resultante da desestruturação do mercado de trabalho e com implicações negativas sobre a massa salarial) com a menor propensão ao endividamento (dado o seu já elevado patamar e frágeis expectativas de aumento da renda) explica o menor aumento do consumo e de sua menor contribuição ao crescimento, retirando amplitude quantitativa e longevidade ao ciclo. Por fim, chama também a atenção no caso norte-americano a forte desaceleração nos gastos públicos a partir de 2010, fator adicional de menor dinamismo.
Um ator decisivo nos rumos da economia global, por seu peso econômico e geopolítico, é a China. Não fosse a sustentação da sua taxa de crescimento no patamar superior a 6% a.a., tanto a crise quanto a recuperação mundial teriam sido piores. Todavia, é necessário considerar que o menor crescimento global impôs à China uma desaceleração expressiva, reduzindo a sua taxa de crescimento também em um terço em comparação ao período pré-CFG. As dificuldades dizem respeito à rapidez da reconversão do modelo de desenvolvimento do país, ou seja, à compatibilização de estruturas de oferta e demanda. A operação aparentemente trivial de conversão das exportações líquidas e investimento autônomo para consumo e investimento induzido, como carros-chefes do crescimento, esbarram em alguns obstáculos estruturais, tais como o nível e a distribuição da renda e a inserção nas cadeias globais de valor.
Assim, desde 2008, os sucessivos pacotes fiscais e creditícios do governo chinês tornaram a economia menos dependente das exportações líquidas e do seu nexo com o investimento. A parcela do investimento correspondente à construção de habitações e infraestrutura urbana, mas sobretudo o consumo, cresceram muito rapidamente. Desde 2014, por exemplo, a contribuição deste último ao crescimento supera a do investimento e nos anos recentes tem sido o dobro. A despeito de todo esse esforço, a economia desacelerou e corre o risco de desacelerar ainda mais por conta dos estímulos adversos do setor externo. Por outro lado, é pouco provável, como quer o pensamento conservador, que se assista a uma crise financeira, por conta dos empréstimos excessivos do setor bancário e o correspondente sobre endividamento das famílias e empresas. O sistema financeiro pouco liberalizado e não globalizado, de propriedade pública, permite um grau de controle elevado das autoridades monetárias, inclusive no gerenciamento de crises de crédito.
Um terceiro polo importante da economia internacional, mais pelo seu tamanho do que pelo dinamismo, é o da União Europeia. Nos últimos três anos, a região recuperou parte do desempenho pré-CFG, alcançando o patamar de crescimento de 2% a.a. A falta de dinamismo, tanto quanto a já precoce desaceleração da região, deve-se a seu padrão de crescimento muito dependente das exportações, que tem respondido recentemente por cerca de metade da taxa de crescimento. As dificuldades para engrenar um modelo mais atrelado à demanda doméstica passa pelos sucessivos ajustes fiscais, sobretudo na periferia da região. Por sua vez, a economia mais dinâmica, a da Alemanha, na falta de dinamismo doméstico, buscou compensá-lo ampliando ainda mais seu coeficiente exportado. Um fator genérico, a apreciação do Euro, e outro específico, as exportações de máquinas e equipamentos para China, e a sua contração, respondem pela sua perda de dinamismo recente.
Os dados globais disponíveis, tais como a produção industrial e as novas ordens de exportações, já indicam desaceleração a partir do terceiro trimestre de 2018, com crescente difusão pelo conjunto das economias desenvolvidas. Voltamos aqui à pergunta inicial: se a desaceleração já está em curso, qual a sua amplitude, qual a possibilidade de converter-se numa recessão e mais ainda, numa crise financeira? Aqui o primeiro aspecto a destacar é que a desaceleração em si piora o desempenho de variáveis reais como fluxos de caixa e rentabilidade das empresas, bem como salários, arrecadação fiscal etc. Ou seja, constitui uma pressão negativa para a economia sob a ótica dos fluxos. Essa dimensão pode ser agravada por processos em curso, como a guerra comercial. Mas o decisivo será a sua articulação com variáveis financeiras, como endividamento das empresas, valorização das bolsas de valores, spreads etc.
Sob o acicate de um longo período de baixa taxa de juros decorrente da política monetária não convencional – o Quantitative Easing (QE) – iniciada nos Estados Unidos e depois generalizada para o Japão e a União Europeia, como mecanismo de enfrentamento da crise financeira, as economias desenvolvidas, mas sobretudo os Estados Unidos, fomentaram o surgimento de uma nova bolha, visível na combinação de níveis elevados de endividamento das empresas e aumento de preços de ativos em vários mercados. A sua intensidade e caráter geral levou o The Economist a caracterizá-la como “a bull market in everything”.
A bolha, no seu insuflamento, ao ampliar a riqueza das empresas e das famílias, induz a elevação dos gastos em investimento e em consumo, alavancados por crédito barato e farto. A sua continuidade depende de dois fatores: de um lado, da elevação de gastos e, consequentemente, da renda aos quais induz. De outro, da permanência de sua condição essencial: a baixa taxa de juros. Ela tem várias dimensões, dentre as quais, o rápido e já elevado endividamento das empresas com o desenvolvimento de um mercado particular, os empréstimos alavancados (leveraged loans) e que tem como contrapartida a ampliação do mercado de títulos de alto rendimento (high yield bonds); a redução significativa dos spreads das taxas de juros nos vários mercados e riscos; e o aumento das cotações das ações com a relação preço/lucro atingindo patamares inusitados.
A valorização da principal Bolsa de Valores, a norte-americana, tem sido forte e contínua, se espalhando pelas demais praças. Esse é um processo longo que vem desde 2010, mas que se acentuou nos últimos três anos, fazendo o índice P/L alcançar níveis históricos. Há alguma razão em se atribuir o fenômeno à recuperação e ao aumento de lucratividade das empresas, mas a dimensão especulativa da valorização é dominante, como, aliás, atesta o crescimento do indicador (P/L). A ampliação das compras alavancadas (leveraged buyouts), mas sobretudo da recompra de ações das próprias empresas (buybacks), definem a essência do processo especulativo impelido por baixas taxas de juros.
Em estrita associação a esses dois processos e tendo também como determinante o largo período de taxas de juros muito baixas, engendrou-se uma crescente alavancagem das empresas, levando o endividamento corporativo a patamares superiores ao do imediato pré-crise, cerca de 75% do PIB. O processo específico mais relevante desse ciclo de endividamento é o mercado de empréstimos alavancados (leveraged loans), assim denominado porque seus padrões de retorno, alavancagem e riscos excedem as normas dos mercados correntes. Ademais, esses empréstimos têm na sua origem a participação de bancos sindicalizados, que num segundo momento os repassam a investidores institucionais, num esquema semelhante ao das hipotecas subprime, ou seja, originar e distribuir em contraposição ao originar e preservar.
O fluxo de novas emissões em 2018 atingiu U$S 800 bilhões, nível tão elevado quanto o do melhor ano pré-CFG, mas com algumas particularidades: metade desses empréstimos foi destinada a compras alavancadas, fusões e aquisições, recompra de ações e pagamento de dividendos. Outro aspecto importante é a queda da qualidade dos tomadores dos créditos, com a predominância dos graus especulativos e a redução de garantias. Neste âmbito, 80% dos créditos originados em 2018 foram com baixa garantia (convenant-lite). Por fim, estabeleceu-se uma mecânica explosiva de ampliação dos novos empréstimos, que podem ocorrer automaticamente se os rendimentos propostos pelos tomadores se confirmarem. Em resumo, das fragilidades criadas pela bolha, essa é indiscutivelmente a maior.
Um aspecto que não pode ser menosprezado nas perspectivas da economia internacional é o da escalada tarifária, na iminência de se converter em uma guerra comercial. A despeito de se encontrar ainda nos seus primórdios, a elevação de tarifas já contribuiu para o aumento da inflação ao consumidor, mas principalmente elevou preços de insumos e bens intermediários relevantes das cadeias produtivas, conduzindo ao atraso e mesmo cancelamento de investimentos programados, ampliando a desaceleração. É discutível se as tarifas serão os instrumentos adequados para promover a re-localização da produção e dos fluxos de comércio. Mas, se o fizerem, será à custa da desestruturação de uma forma de organização da produção e da concorrência, definidoras da essência da globalização: as cadeias globais de valor. E isso não se fará sem custos.
Os fatos discutidos acima apontam para dois processos em curso: a desaceleração econômica e o insuflar da bolha. Dessa perspectiva, além do modo de operação de uma economia financeirizada, serão decisivos para definir os rumos da economia global a política comercial e a monetária, sobretudo a segunda, tendo os Estados Unidos como epicentro. A ninguém cabe desconhecer os distúrbios que as sucessivas elevações das taxas de juros – mormente nos Estados Unidos – provocaram nos mercados financeiros no último trimestre de 2018. Isso levou o FED, na sua reunião de 31 de janeiro de 2019 a recuar do seu caminho anunciado originalmente, de fazer mais duas elevações dos juros neste ano, a pretexto de que o aumento das taxas estava induzindo uma desaceleração muito rápida.
O verdadeiro motivo para a mudança de curso do Banco Central norte-americano foi a volatilidade nos mercados financeiros. A sua reviravolta deixou grande parte do mercado norte-americano perplexo. Mas o fato é que com a financeirização da economia e o peso crescente dos mercados
líquidos de títulos, e a recorrência das bolhas, o FED encontra-se reiteradamente diante de uma espécie de escolha de Sofia. No caso recente, ou mantinha um ritmo significativo de aumento dos juros, levando ao aprofundamento da desaceleração e quiçá à sua conversão em recessão, mas mantendo a bolha sob controle; ou recuava nesse ritmo de aumento e mesmo de atenuação da reversão do QE. Nesse caso, o bônus pode ser o de acentuar a desaceleração; e o ônus, o de estimular a bolha, aumentando, com os riscos de seu estouro posterior, o da eclosão de uma nova crise financeira.
As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade do autor.
* Ricardo Carneiro é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.