Pedro Paulo Zahluth Bastos* | Carta Maior
João Gilberto odiava clichês, mas é difícil não sentir seu passamento como metáfora. Com ele se foi um Brasil cada vez mais distante; não só no tempo, muito mais no espírito.
O tempo não é um conceito físico, mas humano. E João Gilberto dominava o tempo como ninguém: atrasava, adiantava, suspendia, enrolava a melodia; o baixo do violão não errava um compasso, mas os agudos se espaçavam ou comprimiam como se o tempo da composição fosse recomposto pelo intérprete.
Ao vivo a mágica era maior. Ele repetia a melodia como um eterno retorno, e a rigor pela quinta vez não ouvíamos repetição. Às vezes milimetricamente, a nota mais ou menos longa na voz dialogava com variações da batida no violão-percussão em efeito de estranhamento perfeito. Tudo soava certo porque repetia algo errado.
Para uns pareceu casamento malfeito de voz e violão: “desafinado”, “fora do tempo”, “vozinha”. O vozeirão do trovador era a norma culta e bela nos anos dourados que suicidaram Getúlio Vargas, e mais ainda na corte seresteira de JK.
O violão servia como apoio para o vozeirão não perder afinação e linha melódica. João Gilberto começou cantando alto assim em 1950, como “crooner” no conjunto Garotos da Lua. Até que em 1958 ousou corrigir o tempo de Elizeth Cardoso na gravação de Chega de Saudade. Tentou ensinar a unidade voz e violão, e não voz com violão. Quando gravou a mesma música, sem exagero mudou a vida de milhões de músicos e ouvintes no Brasil e no mundo.
João Gilberto insistia que não cantava bossa-nova e sim samba. No samba sem uma nota só, condensou o tempo das “duas brasileirinhas” (“tchacháca, tchacháca”) canonizado por Noel Rosa. Inventou no meio um vazio que sincopava o corpo do ouvinte e soava longo o acorde dissonante. As oscilações do vazio pelo violão quebravam a monotonia a cada falsa repetição cíclica; liberavam a voz para encurtar ou alongar o sentimento e variar, mais súbito, a própria melodia.
Por isso a voz era emitida em volume quase coloquial. Não podia encobrir o violão, nem acordar o vizinho no apartamento ao lado. Precisava sobretudo de agilidade para oscilar tempo e prosódia melódica. Seu timbre não era “silábico”, como se dizia Mário Reis. O exemplo era Orlando Silva, que dominava o desequilíbrio temporal na repetição melódica que o discípulo refinaria.
O Brasil de sua época era como ele. Crescia desequilibrado, como inevitável. Para frente, aos trancos e barrancos, como o Plano de Metas. Sem linha reta, como Vargas, Garrincha ou Pelé. Dava certo porque adaptava errado. Era louvado no mundo por não ser repetição, mas síntese antropofágica. Tropicalista, inculto e belo. Nada como a falta de imaginação do Brasil presente.
JG se foi quando a nação mais precisa de seu espírito. Faleceu na semana em que o presidente JB louvou o efeito disciplinar do trabalho infantil. Enquanto o Brasil subutiliza 25% da população adulta, seu falso mito o compara a uma virgem que todo tarado quer violar. O dito cristão, tal qual violador, propõe uma reforma da previdência que trata o idoso pobre com a piedade de um Anticristo desafinado. Um antipoeta que diz bye buy Brazil em carne, osso e espírito.
Não é possível voltar no tempo nem na música, a não ser como inspiração. Para reinventar o que já fez muito melhor, no seu próximo ciclo o Brasil precisa de menos JB e muito mais João Gilberto.
As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.
* Pedro Paulo Zahluth Bastos é professor Associado de Economia na UNICAMP e músico amador nas horas mais válidas.