Fernando Nogueira da Costa* | Na Carta Maior

No artigo “O que é ser de esquerda hoje?”, postado no site da Carta Maior, lancei a clássica pergunta: “O que fazer aqui-e-agora?”. Respondi: “uma Frente Ampla da Esquerda à la Uruguai e Portugal”. Neste artigo aprofundo o exame da questão.

De início, amplio a proposta para uma Frente Ampla Progressista (FAP). A estratégia é, justamente, sair do gueto e ampliar a aliança de modo a conseguir inclusive o apoio dos liberais clássicos. Ao aceitar a economia de mercado como um motor da evolução sistêmica, a esquerda pactua com os liberais a defesa do mecanismo de mercado competitivo. Aprende a regular apenas contra o excesso de exploração, sem a travar com excesso de regulação supostamente protecionista, mas prejudicial à abertura comercial e à multiplicação de empregos pelo componente de exportações líquidas.

Para tanto, percebe a alternativa – capitalismo de compadrio – ter levado ao favorecimento corrupto. A estratégia para essa luta deixa de ser uma súbita mudança revolucionária e passa a ser o gradualismo, lento ou rápido a depender das circunstâncias, em um processo incremental de luta em defesa de ideais éticos.

Em visão holística, a realidade passa a ser vista pelos revisionistas da nova esquerda como permanente “movimento social”: a ampliação gradual de conquistas de direitos (civis, políticos, sociais, econômicos e de minoria) da cidadania. Sendo para todos os cidadãos, independentemente de classes sociais ou castas profissionais, dialeticamente, transforma quantidade em qualidade, isto é, cria um novo modo de vida e produção.

Voltando aos citados exemplos, a Frente Ampla (FA) é uma coalizão eleitoral de esquerda do Uruguai. Nela se integram vários partidos políticos e organizações da sociedade civil. Foi fundada em 5 de fevereiro de 1971 na tentativa de eleger Líber Seregni à presidência da República. Com o golpe militar de 27 de junho de 1973 foi colocada na ilegalidade e reprimida, sendo seus líderes presos.

Mais de trinta anos depois, elegeu democraticamente Tabaré Vázquez para presidente do Uruguai. Após cinco anos de um governo popular, elegeu seu sucessor, José Mujica. Em 2014, Tabaré Vázquez foi eleito presidente novamente. São 15 anos com a FA no poder executivo do Uruguai.

A Frente Amplio (https://frenteamplio.uy/) se apresenta como uma força política de mudança e justiça social de concepção progressista, democrática, popular, anti-oligárquica e anti-imperialista. Forma uma organização para ação política permanente com o caráter de coalizão e movimento social, com base no respeito recíproco pela diversidade ideológica, funcionamento democrático e unidade de ação.

No documento fundador dessa força política, a Declaração Constitutiva de 5 de fevereiro de 1971, sua origem pode ser claramente lida: “Foi concebida na luta do povo contra a filosofia fascista da força. E a união, por sua natureza e origem, tendo o povo como protagonista, permitiu o agrupamento fraternal dos colorados e blancos, democratas-cristãos e marxistas, homens e mulheres de ideologias, ideias religiosas e filosofias, trabalhadores, estudantes, professores, padres e pastores, pequenos e médios produtores, industriais e empresários, civis e militares, intelectuais e artistas, em uma palavra, todos os representantes dos trabalhadores e da cultura, os porta-vozes legítimos para o coração da nacionalidade. (...) O pilar fundamental é a construção de uma sociedade justa”.

Estas definições foram ratificadas e atualizadas nos Congressos sucessivos, instâncias máximas de direção da Frente Ampla. São ordinariamente realizadas a cada 30 meses.

“Geringonça” é o apelido dado ao governo cuja aliança assumiu o poder em Portugal em novembro de 2015. O gabinete é liderado por primeiro-ministro do Partido Socialista (PS), de centro-esquerda, e se sustenta em acordos com três siglas cujas ideias são em geral classificadas como de extrema-esquerda no contexto europeu: o Partido Comunista Português (PCP), o Bloco de Esquerda e o partido Os Verdes.

A Geringonça se formou de maneira improvável. Após governar Portugal por quatro anos entre 2011 e 2015, o primeiro-ministro do Partido Social Democrata (PSD), de centro-direita, coligado com o Partido Popular venceu as eleições legislativas de 4 de outubro de 2015 com 38,5% dos votos, cerca de seis pontos à frente do PS isoladamente.

Aquele primeiro-ministro não conseguiu, no entanto, manter a maioria no parlamento português, a Assembleia da República. Esta havia lhe permitido implantar a política de austeridade exigida pela União Europeia em meio à crise da dívida no continente. Em 10 de novembro de 2015, o gabinete provisório da centro-direita foi derrubado por uma coalizão de partidos de esquerda e extrema-esquerda. Esta aliança detinha a maioria na formação pós-eleitoral da assembleia.

A derrubada do governo de centro-direita só foi possível por conta da união das esquerdas em torno do nome do Partido Socialista. Tal acordo se deu em meio a muitas críticas. Economicamente, os críticos esperavam a coalizão esquerdista colocar o país em apuros, porque prometia “virar a página da austeridade” e reduzir o alcance de uma política econômica de agrado ao mercado financeiro, mas com grande desemprego.

Politicamente, a coalizão era criticada por ser apontada como frágil, uma vez que havia muitas diferenças entre os integrantes da união. Então, o presidente do CDS — Partido Popular, um partido conservador, fez um duro discurso onde afirmou a coalizão não ser “um governo, mas uma geringonça”. Literalmente, geringonça significa o que é malfeito, com estrutura frágil e funcionamento precário. Mas também pode ser vista como um aparelho ou mecanismo de construção complexa como é a própria realidade.

O epíteto, então depreciativo, passou a ser adotado por comentaristas políticos e também por integrantes da “geringonça”. Hoje, com o sucesso de sua política socioeconômica, ganhou uma conotação positiva. Designa o desafio de lidar com um sistema complexo, dinâmico e emergente de interações entre múltiplos componentes. Leia mais em: https://medium.com/geringon%C3%A7a.

Entre 22 países analisados, o Brasil lidera a concentração de riqueza nas mãos do 1% mais rico da população, segundo relatório “Panorama Social da América Latina 2017”, divulgado CEPAL a partir de dados da rede internacional de pesquisadores World Wealth and Income Database. Reúne informações tributárias para estimar a desigualdade de renda nos países. O 1% mais rico da população brasileira concentra 27,8% da renda total do país, apontam dados de 2015.

O ranking mundial do Índice de Gini de distribuição da renda familiar coloca o Brasil na 19ª pior colocação. O Uruguai fica no 55º lugar e Portugal na 108ª posição. Os países nórdicos e da Europa Oriental (ex-URSS), além de Alemanha (145º) e Bélgica (150º), assim como todos os europeus com socialdemocracia estão em posições melhores entre os 158 países. Indica o imenso desafio de se implantar aqui uma política de igualdade de oportunidades, compensatória do “azar do berço”, e igualdade de resultados com tributação progressiva da desigualdade excessiva, gerada na economia de mercado. Isto exigirá uma reforma pronunciada na estrutura tributária brasileira hoje regressiva.

Mas, acompanhadas do combate à pobreza, essas devem ser as políticas prioritárias em uma FAP, e não a política de “escolha de vencedores” com subsídios fiscais e/ou creditícios para grandes corporações. Esta gera compadrio, favoritismo, clientelismo, etc. Já vimos esse “filme” – e ele não termina bem. O foco deve se dirigir para as políticas sociais, além das já citadas, em especial, para a educação, saúde e segurança pública.

Na área econômica, é estratégica a implantação de infraestrutura (energia, logística em transportes, mobilidade urbana), onde o Estado deve estabelecer as prioridades e incentivos. Mas só aí. De resto, impor a competição, o critério de mérito e a abertura comercial. Os consumidores não devem pagar mais em função de protecionismo e/ou reserva de mercado, mesmo através da taxa de câmbio, para a indústria. Já não é “nascente”, na verdade, aqui predomina a estrangeira.  O déficit comercial da indústria de transformação tem sido compensado pelo superávit obtido pela parceria agronegócio-Embrapa-BB-BNDES. Uma indústria competitiva pela economia de escala instalada aqui se torna uma base para a exportação de manufaturados para os vizinhos.

Dani Rodrik diz haver apenas três maneiras de reduzir a incompatibilidade entre a estrutura dos setores produtivos exigente de maior qualificação em automação digital e a desqualificada população em idade ativa. A primeira estratégia é o investimento em qualificações, educação e capacitação do capital humano. São políticas importantes, mas com efeitos em longo prazo. Uma segunda estratégia é convencer empresas bem-sucedidas a conduzir a inovação para tecnologias socialmente mais benéficas, voltadas para aumentar, em vez de substituir, o contingente de trabalhadores menos qualificados. Porém, os exigentes padrões de qualidade necessários para abastecer as cadeias de valor mundiais não podem ser atendidos facilmente pela substituição de máquinas por mão de obra manual. Uma terceira estratégia seria impulsionar uma faixa intermediária de atividades de baixa qualificação intensivas em uso de mão de obra. O turismo e a prestação de serviços urbanos, como cuidadores de idosos, são potenciais setores absorvedores de mão de obra. O emprego público em educação, saúde e segurança pública, além da construção de habitações de interesse social, ambos também ocupam muito. A incapacidade de gerar empregos bons tem custos sociais e políticos muito altos. A FAP pretenderá reduzir esses custos.

O artigo representa a opinião pessoal do autor

 

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-Unicamp. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.