Fernando Nogueira da Costa | Na Carta Maior
Os níveis de estoque de riqueza mudam com o tempo, devido ao saldo entre seus fluxos de entradas e de saídas. Com reforços de feedback, quanto mais se tem, mais se ganha. Amplificam o movimento em círculos virtuosos ou viciosos: booms e crashes.
Segundo as diferentes classes de rendimentos e variação patrimonial, a POF (Pesquisa de Orçamento Familiar) 2017-2018 registrou diferenças importantes entre as distribuições de gastos das famílias. Fica patente a desigualdade social ao confrontar as características das famílias por grupos de despesas de consumo e seus impactos nos gastos familiares totais das classes extremas de rendimentos definidas: até R$ 1.908,00 (24% do total de 69 milhões de famílias) e acima de R$ 23.850,00 (1,8 milhões ou menos de 3% do total). O primeiro agrupamento corresponde às famílias até dois salários mínimos de R$ 954, além das sem rendimentos. O mais rico se refere às famílias com renda acima de 25 salários mínimos.
Quanto ao peso dos gastos com alimentação na despesa total, incluindo o consumo, as despesas correntes e outros, alcançou 22,6% quando para os rendimentos até R$ 1.908,00. O percentual é cerca de três vezes menor (7,6%) na classe com renda acima de R$ 23.850,00.
Quanto à habitação, quando os rendimentos foram os das famílias de mais baixos, a participação na despesa total foi de 39,2%. Na situação das mais ricas, foi de 22,6%, pouco além da metade. As famílias do primeiro grupo apresentaram participação mais significativa para os gastos com os itens aluguel (20,6% contra 10,7% do grupo com rendimentos mais elevados), serviços e taxas (11,2% contra 3,5%) e mobiliários e artigos para o lar e eletrodomésticos (2,1% contra 1,1%).
Com transporte, a participação registrada para o grupo de famílias com os maiores rendimentos foi maior: 15,3% contra 9,4%. Nesse componente, para as famílias menos beneficiadas, foi mais importante o item transporte urbano (2,1% contra 0,4%). Para a classe correspondente aos valores mais elevados de rendimentos, o item mais importante foi aquisição de veículos (7,5% contra 2,3%).
As participações das despesas com assistência à saúde foram similares, 5,9% e 5,6%. No entanto, a composição desses gastos difere bastante. Para a classe até R$ 1 908,00, os remédios pesam 4,2%, ou seja, correspondem a 71,2% do dispêndio com saúde. A participação do gasto com medicamentos para a classe oposta é de 1,4%. Por outro lado, a participação correspondente ao plano/seguro de saúde foi de 2,9% na classe com rendimentos acima de R$ 23.850,00, tendo alcançado 0,4% na classe oposta.
Quanto à educação, as participações, segundo a POF 2008-2009, foram de 1,9% quando os rendimentos eram os mais baixos e, de 5,1% na classe dos valores mais elevados. Os mais ricos têm condições de investir mais (em termos absolutos e relativos) em “acumulação de capital humano”, isto é, capacidade pessoal de ganho. Desse modo, é esperada a manutenção da desigualdade educacional.
Mas além desses itens destacados pela imprensa, saliento o aumento do ativo nas famílias mais pobres corresponder a apenas 1,4% da despesa total. O das mais ricas é quase sete vezes maior: 9,6%. Por sua vez, a diminuição do passivo foi, respectivamente, 2% e 3,5%. O aumento do ativo corresponde a despesas com aquisição de imóveis, construção e melhoramento de imóveis próprios e outros investimentos por aquisições patrimoniais. Pode ser traduzido como um aumento do patrimônio familiar. Na diminuição do passivo estão incluídas as despesas com pagamentos de débitos, juros e seguros com empréstimos pessoais e prestação de financiamento de imóvel.
Variação patrimonial compreende vendas de imóveis, carros e outros bens, heranças e o saldo positivo da movimentação financeira: depósitos e retiradas de aplicações financeiras como, por exemplo, poupança e cotas de fundos de investimento. A estimativa do rendimento total e variação patrimonial médio mensal familiar é a soma dos rendimentos monetários mensais brutos, dos rendimentos não monetários mensais das unidades de consumo e da variação patrimonial, dividida pelo número de unidades de consumo contidas neste conjunto.
A partir dos rendimentos auferidos por todos os membros das famílias, estas decidem quantos bens e serviços serão adquiridos e sua forma de aquisição. A parte monetária é formada por rendimentos captados no mercado de trabalho, nas transferências governamentais e intrafamiliares e os associados ao patrimônio como, por exemplo, os aluguéis de imóveis. Além do rendimento, fazem parte do orçamento das famílias as variações no patrimônio, como saques da poupança, recebimento de herança, vendas de imóveis, etc.
Em média, as famílias em situação rural receberam pouco mais da metade (52,3%) dos valores recebidos pelas famílias em áreas urbanas. A migração campo-cidade, provocada pelo balanço entre fatores de repulsão e fatores de atração, na história brasileira, buscou uma maior chance de mobilidade social para as famílias.
No Brasil, o valor médio do rendimento do trabalho foi de R$ 3.118,66, o que representa 57,5% do valor médio recebido por todas as famílias como rendimento e variação patrimonial (R$ 5.426,70). A segunda maior participação foi de transferências (19,5%), incluindo as aposentadorias e pensões pública e privada, bolsas de estudos e programas sociais de transferência de renda. Chama a atenção as aposentadorias e pensões do INSS, cuja participação no total das transferências foi de 55%, os programas sociais federais representam 5,4% das transferências e apenas 1% dos valores recebidos como rendimentos e variação patrimonial. No Brasil os rendimentos de aluguel (de bens móveis e imóveis) e as outras rendas apresentaram as menores contribuições na composição do total dos valores recebidos: 1,6% e 0,7% respectivamente.
Outro componente bastante importante é a variação patrimonial. Mostra a parcela monetária obtida pelas famílias com resgate de valores dos seus ativos financeiros, como saques de poupança ou de outros ativos financeiros, bem como a venda de terrenos ou outros bens. No Brasil, a participação deste item representou 6,2%.
Quando são agrupadas as famílias capazes de viver com 10 salários mínimos (R$ 9.540,00) ou menos em seus orçamentos, reúnem-se quase 9/10 das famílias brasileiras (mais especificamente 87% delas) e um pouco mais da ½ da soma valores recebidos por todas as famílias brasileiras (mais especificamente 54,2%). Esse numeroso grupo com rendimentos até 10 salários mínimos é formado por 179,2 milhões de pessoas em 60 milhões de famílias. Caso os valores recebidos por este grupo fossem repartidos igualmente por todas suas famílias, o valor médio mensal cairia para R$ 2.942,66, equivalendo a pouco mais da metade da média global. Revela a desigualdade social.
Ela é ainda mais perceptível ao analisar a apropriação da média global pelas famílias com rendimentos acima de 10 salários mínimos. Em termos percentuais, elas se apropriam de 45,8% dos valores recebidos mesmo constituindo grupo com apenas 13% das famílias brasileiras. Caso apenas os valores recebidos por este grupo, correspondente a um pouco mais de 1 a cada 10 famílias brasileiras, fossem repartidos igualmente por todas as famílias, o valor médio mensal de R$ 2.484,04, o que equivale a pouco menos da metade da média global. Daí a reação conservadora “contra o comunismo”. As classes de mais alta renda têm pavor da progressividade tributária.
Na classe mais rica estão apenas 2,7% das famílias brasileiras. Elas receberam mais de 25 salários mínimos (R$ 23.850,00). Este grupo se apropria de quase 1/5 de todos os valores recebidos pelas famílias brasileiras, mais especificamente, 19,9%.
No Brasil, as principais fontes de renda do grupo mais pobre, cuja renda vai até dois salários mínimos, foram os rendimentos não monetários com 28,2% do total recebido, os rendimentos de trabalho como empregados (27,2%) e por conta própria (13,3%), as aposentadorias e pensões do INSS (15,8%), e as transferências dos programas sociais federais (7,7%). Já para o grupo mais rico, as principais fontes foram os rendimentos do trabalho como empregados (34,3%), empregadores (18,4%), a variação patrimonial (15,3%), os rendimentos não monetários (7,9%), as aposentadorias e pensões da previdência pública (7,5%) e rendimentos do trabalho por conta própria (7,4%).
Por fim, para diferenciar fluxos de rendimentos e estoques de riqueza, vale registrar o total de bens e direitos nas DIRPF 2018-AC 2017: R$ 8,918 trilhões. Imóveis em valor histórico eram R$ 3, 453 trilhões ou 39% do total, destacando-se apartamentos (R$ 1,3 trilhão ou 14,6%) e casas (R$ 1,025 trilhão ou 11,5%). Essas moradias somaram 26% do bens e direitos. Veículo automotor terrestre (caminhão, automóvel, moto, etc.), também em valor contábil de compra, valiam R$ 599 bilhões ou 7%. Considerando o restante ativos financeiros, inclusive dinheiro em espécie e ouro, essa riqueza financeira com valor de fim-do-ano calendário somava R$ 4,912 trilhões ou 54% do total. Se os 10% mais ricos recebem 43% dos fluxos de renda, provavelmente, a maior parte é deles.
No entanto, não se pode iludir com a diferença entre fluxos e estoques, nem com o sofisma da composição: o que é verdade para alguns poucos indivíduos “rentistas” não corresponde a todos. Segundo DIRPF 2018-AC 2017, o 13º salário recebido por todos os declarantes somou R$ 94 bilhões. Esse valor mensal da renda do trabalho superou os rendimentos anuais de suas aplicações financeiras: R$ 90 bilhões. No agregado, os rendimentos anuais do trabalho (salários) superam em muito os rendimentos financeiros (juros). O capital financeiro tem origem trabalhista. Os trabalhadores intelectuais, para manterem o padrão de vida quando se aposentarem, terão de ser rentistas. Para essa prevenção, necessitam de educação financeira.
As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.
* Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.