Fernando Nogueira da Costa | Na Carta Maior
Pode se afirmar, como faz o verbete sobre “banco” na Wikipedia, a maior enciclopédia de todos os tempos, o surgimento das operações bancárias ter sido simultâneo ao surgimento da moeda? Argumenta este ter logo criado a necessidade de instituições para a depositar em segurança.
No entanto, a evolução da moeda começa a ser narrada a partir de duas inovações básicas, ocorridas por volta de 2000 a.C. Originalmente, o dinheiro era uma forma de recebimento, representando grãos estocados em celeiros de templos na Suméria, na Mesopotâmia, então o Antigo Egito.
Esse primeiro estágio da moeda, no qual metais eram usados para representar reserva de valor e símbolos para representar mercadorias, formou a base do comércio no Crescente Fértil por mais de 1500 anos. O colapso do sistema comercial do Oriente Próximo, supostamente, teria falhado por se dar em uma Era na qual não havia nenhum lugar onde fosse seguro estocar o valor de reserva.
O valor de um meio circulante poderia ser reconhecido se houvessem forças defensoras daquela reserva. O comércio via troca de mercadorias por moeda, em lugar do escambo direto, poderia alcançar o máximo de credibilidade com o uso da força militar do Estado.
O termo “Idade do Bronze” deriva das “Idades do Homem”, as fases da existência humana na Terra segundo a Mitologia grega. Destes, a Idade de Ouro e a Idade da Prata são classificadas pelos historiadores modernos como míticas, mas a Idade do Bronze, bem como a Idade do Ferro, ambas são pertinentes ao conhecimento histórico.
Todo o período é caracterizado pela adoção plena do bronze (liga metálica resultante da mistura de cobre com estanho), em muitas regiões, embora o local e o período da introdução e desenvolvimento da tecnologia do bronze não sejam universalmente síncronos. A tecnologia humana para elaboração do bronze requer um conjunto de técnicas de produção. Relaciona-se a Idade do Bronze com um período de uso intenso de metais e de redes de desenvolvimento do comércio.
No Antigo Egito, a Idade de Bronze começa, no período dinástico dos faraós, em 3150 a.C. Seu fim ocorreu entre 1300-700 a.C. A recuperação do comércio fenício nos séculos IX e X a.C. teria propiciado um retorno à prosperidade com o surgimento da cunhagem real primeiro por Creso, rei da Lídia, e subsequentemente pelos gregos e persas.
Na África, muitas formas de reserva de valor foram usadas, como grânulos, lingotes, marfim, várias formas de armas, gado, a moeda manilla, ocre e outros óxidos da terra. Os anéis de manilla da África Ocidental foram uma das moedas usadas a partir do século XI em diante para comprar e vender escravos. Em muitos lugares diferentes, formas tribais de escambo ou trocas cooperativas a prazo ainda existem.
Os cristãos afirmam no Evangelho estar a condenação de Jesus aos emprestadores de dinheiro. Em seu tempo, havia essa atividade “bancária”? O nome “banco” nasce da designação do assento da mesa onde eram trocadas as moedas por banqueiros judeus de Florença na época do Renascimento. Em 1406, foi criado aquele considerado o primeiro banco moderno: o Banco di San Giorgio, em Gênova.
Se uma boa vida espiritual e uma vida em busca de bons negócios com base em dinheiro são inconciliáveis, a narrativa bíblica de Jesus ter ficado furioso ao ter visto mercadores e banqueiros negociando no pátio do templo em Jerusalém é edificante. É uma postura influente em 1400 anos da Era Cristã, mas é anacrônica.
Anacronismo consiste em erro cronológico, quando determinados conceitos, objetos, pensamentos, costumes ou eventos são usados para retratar uma época diferente daquela à qual, de fato, são pertinentes. Ele é caracterizado pelo desalinhamento e falta de correspondência entre as particularidades das diferentes épocas, quando fatores próprios de cada tempo são, erroneamente, misturados em uma mesma narrativa.
O ataque cristão contra a imoralidade do dinheiro influencia toda a Idade das Trevas. Esta é uma periodização histórica de modo a enfatizar as deteriorações demográfica, cultural e econômica, ocorridas na Europa, em consequência do declínio do Império Romano do Ocidente.
O rótulo Idade das Trevas emprega o tradicional embate visual luz-versus-escuridão para contrastar a “escuridão” deste período com os períodos anteriores e posteriores de “luz”. O Renascimento, nos séculos XIV-XVI, substitui o teocentrismo pelo antropocentrismo e dele surgem o racionalismo, o experimentalismo, o individualismo.
Esse iluminismo foi um movimento filosófico e intelectual acontecido entre os séculos XVII e XVIII na Europa. Os pensadores iluministas defendiam as liberdades individuais e o uso da razão para validar o conhecimento. Também chamado de “Século das Luzes”, o movimento iluminista representa a ruptura com o saber eclesiástico, isto é, do domínio exercido pela Igreja Católica sobre o conhecimento. Dá lugar ao saber científico, adquirido por meio da racionalidade. O liberalismo se digladia com o mercantilismo.
Antes há uma relativa escassez de registros históricos e outros escritos, pelo menos para algumas áreas da Europa, tornando a “Era das Trevas”, assim, obscura para os historiadores. O termo deriva do Latim saeculum obscurum, originalmente aplicado em 1602, em referência a essa época regressiva entre os séculos V e IX.
Uma questão-chave para a historiadores pesquisadores do “as if" (“como se” ou “como fosse”) é se o cristianismo medieval teria sido muito influente para o atraso do capitalismo financeiro durante séculos. Somente em Veneza, no ano de 1450, um frade franciscano publicou o primeiro livro sobre Contabilidade: “Summa de Arithmetica”. Esta teria sido uma importante invenção propriamente capitalista ao ser capaz de sistematizar a ideia e planejar a alavancagem financeira.
Bancos emprestadores serviriam de grandes alavancas tanto para o lucro privado, quanto para a arrecadação fiscal. A contabilização do lucro, depois de descontadas as despesas financeiras com pagamento de juros, em relação ao patrimônio total, isto é, o patrimônio líquido mais os passivos de terceiros, indicaria se ele seria superior à rentabilidade patrimonial original sem o uso capital de terceiros. Essa ideia-chave estaria presente desde os primórdios do capitalismo.
Em termos de custo fiscal e orçamentos governamentais, bancos públicos podem “fazer mais por menos”. São muitas vezes mais, se comparar o valor em dinheiro necessário para executar diretamente políticas públicas com a mesma quantidade de recursos capitalizados nesses bancos para fazer empréstimos indiretos e tomar depósitos para a multiplicação monetária. O Capitalismo de Estado da China soube usar muito bem esse mecanismo para seu grande desenvolvimento recente. O Capitalismo de Mercado sofre o pudor evangélico em torno da necessidade de parcimônia virtuosa prévia ao crédito.
Lidar bem com dinheiro não depende de fé, mas sim de acreditar ele não ser nem castigo nem recompensa divinos. É ciência aprendida com paciência. Conceder crédito em dinheiro significa o credor confiar no projeto do devedor ser capaz de o reembolsar, pagando-lhe o custo de oportunidade de usar o dinheiro em seu lugar.
O nascimento da sociedade por ações se deu durante a revolução financeira na Holanda, um século antes da revolução industrial inglesa, ocorrida no século XVIII. Ela partiu de uma ideia-chave do capitalismo: usar dinheiro de outras pessoas em benefício do próprio empreendimento. Conseguir associados propicia um ganho ao fundador. Ele condiciona a manutenção de sua gestão ao conceder participação acionária, tendo como contrapartida a divisão de lucros ou eventuais prejuízos.
Esta alavancagem financeira com capitalização prévia condiciona a ocorrer com dívida. No caso de tomada de empréstimos, para aumentar a rentabilidade patrimonial do capital próprio com o uso de capital de terceiros para o propósito de elevação da escala do negócio, o devedor assume o risco de a rentabilidade esperada não se confirmar e ficar abaixo dos juros do crédito contratado. Para compensar o risco da inadimplência, o credor solicita, em geral, uma garantia patrimonial como colateral do empréstimo.
Essa ideia de multiplicação monetária e da renda substitui a ideia anacrônica anterior à existência de um sistema bancário com sua rede de agências, inclusive virtuais ou digitais: via parcimônia (ou poupança) colocar somente o rendimento excedente de volta para o próprio negócio. O autofinanciamento não permite o ganho de escala necessário e o dinamismo econômico possível com o uso de financiamentos bancários.
A conquista das Américas foi a expropriação da riqueza metálica existente e a exploração do comércio de escravos para estes criarem riqueza agrícola nova em benefício de seus senhores de origem europeia. O crédito, seja de origem privada dos mercadores, seja de origem monárquica, foi decisivo para todas essas empreitadas criadoras do capitalismo. Relacionou credores e empreendedores motivados por ganhar mais dinheiro e dispostos a compartilhar parte da maior rentabilidade. Os conquistadores tinham as iniciativas particulares de usarem tecnologias de navegação e outros conhecimentos para a colonização, mas antes disso necessitavam se endividar.
As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.
* Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.