MÍDIA
Marcio Pochmann* | Na Carta Maior
No seu livro Formação do Brasil contemporâneo, Caio Prado Júnior explicitou, há 70 anos, o quanto o sentido da colonização portuguesa correspondeu à organização de uma grande empresa comercial voltada à exploração da natureza no “novo mundo” para atender aos negócios europeus. Por mais de três séculos, o modelo de produção primário exportador gerou uma classe autocrática a contribuir para o enriquecimento externo, incapaz, contudo, de promover o desenvolvimento interno.
O êxito na constituição da primeira grande empresa colonial agrícola europeia passou pela superação dos problemas próprios do século 16, como a técnica de produção, a criação dos mercados, o financiamento e a oferta de mão de obra no vasto território colonial. O extraordinário ganho financeiro da colonização agrícola do Brasil combinou o poder do Estado português a oferecer gastos públicos ampliados a serem capturados privadamente, conforme asseverou Celso Furtado em 1959 no seu livro Formação econômica do Brasil.
A devastação ambiental combinada pela intensa desigualdade social provocada pelo sucesso do sentido empresarial da colonização portuguesa se revestiu da sequência de modelos políticos assentados na dominância da classe de proprietários rurais. Ao longo do tempo, o território brasileiro foi sendo ocupado por proprietários cada vez mais representados nos poderes executivo, legislativo e judiciário, sobretudo na atualidade, segundo revela o livro O partido da terra de Alceu Luís de Castilho de 2012.
Por condições específicas historicamente, o Brasil conseguiu se afastar do modelo de produção primário exportador da Revolução de 1930 ao fim do governo Sarney (1985-1990). Na década de 1970, por exemplo, somente o Brasil e a Coreia do Sul de passado colonial que tinham alcançado a industrialização, em pleno domínio do capitalismo monopolizado por grandes empresas e de uso das tecnologias estabilizadas.
A subalternidade do ingresso brasileiro na globalização a partir de 1990 estabeleceu o curso de retorno à condição de fazendão, cujo sentido neocolonial foi sendo gradualmente consolidado. Sob o receituário neoliberal, o Brasil se integrou ao novo arranjo de produção e exploração que transformou profundamente o meio rural, submetido à lógica da financeirização, concentração e centralização do capital por grandes corporações transnacionais.
Por um lado, a necessidade do uso do poder do Estado na difusão de subsídios aos proprietários rurais que, em aliança com as crescentes e poucas grandes corporações transnacionais, implantaram o ciclo vicioso da especialização produtiva primário exportador. Enquanto o sistema político-democrático era cada vez mais ocupado por representantes dos partidos da terra, o Estado foi sendo colocado a serviço do agronegócio exportador.
Através da renúncia fiscal (ITR insignificante, Lei Kandir que isenta a exportação, desoneração da importação de insumos agrícolas), da extensão do crédito nos bancos públicos com pagamentos a perder de vista, do desmonte da regulação fundiária, entre outras, o setor privado ganhou escala nacional para se submeter à ordem da grande empresa transnacional. Da mesma forma, a efetivação das ações para reduzir os custos de produção, como aqueles vinculados ao uso da mão de obra e à proteção ambiental.
Por outro, a liberação das fronteiras institucionais às operações que foram tornando a economia brasileira cada vez mais dependente do tripé de sentido neocolonial. O primeiro referente aos Investimentos Estrangeiros Diretos que têm guardado correspondência com até 1/3 do total voltado ao setor primário desde os anos de 1990, sendo superior, por exemplo, ao alocado na indústria, em 2019.
Enquanto recursos externos são internalizados na especialização da economia para produção primário exportadora, o capital de residentes no Brasil se desloca para o exterior. Em 2019, por exemplo, o Banco Central informou a que dos 385 bilhões de dólares aplicados no exterior por quase 45 mil brasileiros, 58% do total dos recursos e 44% do conjunto dos aplicadores se concentraram nos chamados paraísos fiscais.
O segundo componente do tripé da dependência se relaciona com o comércio externo intrafirma sem substituição às exportações e importações entre países, especialmente no setor do agronegócio. Com a globalização sendo conduzida por grandes corporações transnacionais, as exportações e importações brasileiras assumiram crescente responsabilidade do comércio intrafirmas estrangeiras.
Do total das importações registradas pelo Ministério da Economia, cerca de 56% resultam de trocas comerciais intrafirmas estrangeiras. Ao mesmo tempo, quase 2/3 do total das exportações cadastradas pelo Departamento de Operações de Comércio Exterior pertenceram às trocas externas intrafirmas multinacionais.
O terceiro componente se vincula à dependência tecnológica. Desde 1990, com o processo de abertura e privatização no Brasil, as corporações transnacionais assumiram o maior protagonismo na economia, sobretudo no agronegócio. Nos dias de hoje, o capital externo domina a oferta, em geral, constituída pela importação de sementes, fertilizantes, defensivos, máquinas e equipamentos necessária ao funcionamento do agronegócio.
Do mesmo modo, a cadeia da agroindustrial de comercialização externa (trading) se subordina ao comando do capital estrangeiro. Resta, ainda enquanto componente nacional, a mão de obra de uso decrescente no agronegócio e a terra, embora em já avançado estágio de internacionalização das propriedades rurais.
Nesse sentido que o paradoxo do Brasil arcaico voltou a se manifestar. Ou seja, a conjugação de um país com perspectiva de ser uma espécie de entreposto comercial desova da grandiosa produção primária voltada ao exterior, enquanto parcela crescente de sua população permanece desempregada e passa fome, conforme tratado no passado por José de Castro no livro A geografia da fome de 1946.
Para os próximos 10 anos, as projeções do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) para o agronegócio apontam a redução de 28,7% no total da área plantada no Brasil nas culturas voltadas ao mercado interno (arroz, feijão, mandioca, batata-inglesa e outras). Nas lavouras de cultivo dos produtos denominados por commodities, em geral direcionadas ao mercado externo (soja, milho, algodão, fumo e outras), o mesmo MAPA projeta o aumento de 22,6% no total da área plantada.
As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.
* - Marcio Pochmann é Professor e pesquisador do Cesit/IE/Unicamp e da Ufabc