Fernando Nogueira da Costa | Na Carta Maior

O Relatório sobre Estabilidade Financeira, publicado pelo Banco Central do Brasil em outubro de 2019, traz dados inéditos sobre a estratificação social da carteira de crédito para Pessoa Física. Reelaborando os dados, a tabela anexa permite uma comparação entre os perfis das carteiras por modalidade e renda e por ocupação e renda. Fornece mais um retrato revelador da desigualdade social brasileira.

Quando a comparamos com outra fonte de informações, a PNADC 2018 recentemente divulgada, aumenta a nitidez. A análise da concentração de rendimento por meio da distribuição das pessoas por classes de rendimento mostrou, em 2018, as pessoas no último percentil de rendimento, ou seja, aquelas componentes do 1% da população com rendimentos mais elevados, cujo rendimento médio mensal real era R$ 27.744, recebiam, em média, 33,8 vezes o rendimento da metade da população com os menores rendimentos, cujo rendimento médio mensal real era R$ 820. Essa é a renda média de quem está abaixo da mediana. O limite superior dessa mediana era R$ 1.220.

Quem se situava no decil acima de 70% até 80% recebia praticamente o rendimento médio mensal de toda a população ocupada: R$ 2.262 contra R$ 2.234. Em 2018, havia no mercado de trabalho brasileiro 90,1 milhões de pessoas ocupadas com 14 anos ou mais de idade.

Em relação ao nível de instrução mais elevado alcançado, a participação das pessoas ocupadas com, no mínimo, o ensino médio completo foi de 59,3%. Do total de ocupados, 25,8% eram sem instrução ou com o ensino fundamental incompleto em 2018. Frente a 2012, o maior crescimento ocorreu no ensino superior completo. Correspondia a 14,8% dos ocupados em 2012 e passou para 20,3% em 2018.

O nível de instrução foi um indicador importante na determinação do rendimento médio mensal real de todos os trabalhos, apresentando uma relação positiva, ou seja, quanto maior o nível de instrução alcançado, maior o rendimento. As pessoas sem instrução apresentaram o menor rendimento médio (R$ 856). Por outro lado, o rendimento das pessoas com ensino fundamental completo ou equivalente foi 67,8% maior, chegando a R$ 1.436.

Quem tinha ensino médio completo, em 2017, ganhava próximo da renda média (R$ 2.246). Em 2018, seu rendimento médio mensal real caiu para R$ 1.755. Quem ficou próximo da média tinha ensino superior incompleto e recebia R$ 2.161.

Por fim, os formados com ensino superior completo registraram rendimento médio (R$ 4.997) aproximadamente três vezes maior em comparação ao daqueles com somente o ensino médio completo e cerca de seis vezes o daqueles sem instrução. Recebendo mais de R$ 5.245 já situa entre os 10% mais ricos e acima de R$ 9.928 entre os 5% mais ricos.

 TABELA 1

A taxa de desocupação entre formados com superior completo era 5,9% no fim de 2018. Com ensino médio completo já dobrava: 12,8%. E com médio incompleto, 20,9%, acima mesmo de sem instrução: 10%. Explica-se essa distribuição da desocupação por nível de instrução. As maiores participações eram: fundamental incompleto, 22,7%; médio incompleto, 12,4%; médio completo, 37,2%; superior completo, 9,6%. Somavam 82%.

O desemprego por classe social (estimada em renda mensal familiar com valores do fim de 2017) eram em 2018 na classe E (19% até R$ 1.100) 30,7%; classe D (17% até R$ 1.819) 17,7%; classe C (54% até R$ 7.278) 8,9%; classe B (5% até R$ 11.000) 3,8%; classe A (5% acima desse último valor) 3,3%. Portanto, os chefes das famílias entre as 10% mais ricas tendem a terem o ensino superior completo e sofrerem pouco com o desemprego.

E recebem mais crédito! Poderia se argumentar quem mais necessitar completar seu poder de compra com empréstimos ser mais pobre, porém, como dizia Mark Twain: “banqueiro é um sujeito capaz de emprestar seu guarda chuva quando o sol está brilhando e o querer de volta quando começa a chover”.

Nos bancos só se empresta dinheiro a quem demonstra não precisar dele. Entenda-se sua avaliação de risco ser de acordo com o perfil da massa de clientes para uma operação pré-compromissada com determinada taxa de juro ofertada. Em princípio, quem tem maior volume de negócios (depósitos e aplicações) registrado no próprio banco costuma receber oferta de empréstimos. Quem tem educação financeira não a aceita, prefere receber juros em vez de pagar juros.

Na distribuição da massa de rendimento mensal real domiciliar per capita segundo as classes de percentual das pessoas, aquelas com mais de 90% até 100% (“classe alta”) recebiam 43% no fim de 2018. Até 50% das pessoas mais pobres (“classe baixa”) receberam 15%. O restante (“classe média” nos decis de 50% até 90%) ficava com 42%.

Quando se analisa os dados da tabela anexa com crédito total para Pessoa Física por faixa de renda, acima de 10 salários mínimos recebeu 41%; entre 5 e 10, 22%; entre 3 e 5, 18%; até 3 salários mínimos, os mesmos 18%. Então, os 5% mais ricos receberam quase metade de todo o crédito. Eles receberam além dessa sua participação média (41%) em crédito não consignado (46%), outros créditos (51%) e rural (86%). Os 95% mais pobres se concentraram em cartão de crédito, consignado e veículos.

Quando se analisa o perfil da carteira PF por ocupação e renda, o crédito se concentra em agricultor com renda acima de 10 salários mínimos (89%), menos em funcionário público mais rico (47%) e empresário bem-sucedido (32%). As participações são mais equivalentes por faixas de renda entre aposentados e empregados privados.

Como esperado, dados o desemprego e a menor renda, ativos problemáticos (inadimplentes) são maiores em carteiras dos mais pobres (até 3 salários mínimos): 10%, declinando nas faixas subsequentes mais ricas até baixar para 5% de quem ganha acima de 10 salários mínimos. Por conta da lentidão de seu Poder Judiciário, tempo e custo para recuperação de garantias no Brasil são muito mais elevados em relação ao restante do mundo.

Segundo o Banco Central, na média de 2011 a 2016, 77% do spread bancário corresponde aos custos: inadimplência, administrativos, tributários, compulsórios, FGC, etc. Dentre os custos, a inadimplência responde por 55,7% do total.

As despesas com Provisões para Devedores Duvidosos sobre o total de ativos de crédito no Brasil atingem 4,5%, enquanto nos demais países emergentes a média é 1,9% e nos países desenvolvidos, 0,4%. O impacto da carga tributária no spread de crédito também é muito mais elevado no país. Seria justo caso fosse para financiar políticas públicas contra a desigualdade social.

O lucro dos bancos nas operações de crédito equivale a 23% do spread, considerando recursos livres e direcionados. Lucro é essencial para manter os níveis de Capital (Basileia), delimitando a Razão de Alavancagem e evitando bancarrota. Possibilita também os investimentos bancários em tecnologia da informação, destacadamente para o sistema de pagamentos eletrônicos.

As linhas tradicionais de crédito de PF concentram 86% dos saldos e têm taxa média de juros, ponderada pelos saldos, em 13% aa (cerca do dobro da Selic). As linhas emergenciais ou sem garantia têm taxa média de 198% aa. Referem-se a cartões de crédito, cheque especial e crédito pessoal não consignado, justamente utilizados pelos mais necessitados face ao desemprego e consequente carência de renda para pagar a dívida.

Alíquotas nominais de depósitos compulsórios no Brasil são as mais altas dentre os países analisados, o que resulta em um volume recolhido de 6,4% dos ativos totais dos bancos, comparativamente a 1,9% na mediana dos países de amostra representativa do resto do mundo. Além disso, a Autoridade Monetária brasileira enxuga, artificialmente, o considerado por ela “excesso de liquidez” para colocar o juro básico de mercado no nível de sua meta anunciada no regime de meta inflacionária.

Em síntese, um próximo governo com programa social-desenvolvimentista tem de rever toda essa prática de política monetária e de crédito. Fazê-las de maneira coordenada com política fiscal, cambial e de combate à desigualdade social. A experiência mostra a necessidade de quebrar o tabu de só nomear economistas de O Mercado para a diretoria do Banco Central do Brasil. Jamais se nomeou desenvolvimentistas com uma visão alternativa para implementar outras diretrizes socialmente mais justas.

Entre as quais, trocar as operações compromissadas (quase R$ 1,3 trilhão) por depósitos voluntários no Banco Central como é feito em outros países. Esse meio de diminuir a dívida bruta (em 18% do PIB) não seria “jabuticaba” nem “contabilidade criativa”. Tendo reservas cambiais para evitar o risco de dolarização, poderia os remunerar com juros reais abaixo de zero em troca do risco soberano, isto é, a garantia da devolução. Isso está ocorrendo nos países de capitalismo maduro. Em conjunto com uma política anticíclica de gasto em investimento público, a consequente demanda por crédito poderia dirigir a oferta para a retomada do crescimento da renda e do emprego.

Enfim, a economia brasileira só será normalizada com crescimento sustentado em inclusão social. O apartheid social entre “castas” e “párias” necessita ser superado.

As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.

* Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.