Fernando Nogueira da Costa | No GGN

“Política monetária é como corda: você laça o touro, mas se ele se volta contra você, ela não serve para retrocedê-lo”. Essa é a ilustração metafórica do papel assimétrico exercido pela política monetária e creditícia no controle e na criação de liquidez.

Essa política, no sentido contracionista, consegue contrair a liquidez real, limitar a capacidade de criação de poder de compra ex-nihilo pelos bancos e levar à uma estagdesigualdade como a vivida atualmente pela economia brasileira. Mas a política monetária e creditícia expansionista não multiplica a renda, se não for atendendo às decisões de gastos dos agentes econômicos, inclusive do gasto público.

Há um debate entre economistas de correntes de pensamento distintas se ela é instrumento de destruição tão poderoso a ponto de seu uso necessitar ser limitado por instância externa ao Banco Central ou se é meio de alavancagem tão frágil de modo a “tese do dinheiro farto e barato” ser descartada. No primeiro caso, o monetarismo é acusado de dano social insanável. No segundo, o keynesianismo ingênuo é criticado.

Justamente por isso, na fase atual do ciclo de endividamento, economistas do mainstream de formação neoclássica atualmente atuantes no governo demonstram ressentir da carência de um conhecimento do be-a-bá keynesiano. Em um período excepcional de “armadilha de liquidez”, quando uma convenção de preferência pela liquidez absoluta é generalizada entre os agentes econômicos, os encaixes monetários refletem um desequilíbrio entre as despesas (demanda agregada) e os produtos disponíveis (oferta agregada), crescendo a ociosidade da capacidade produtiva.

Nesse caso anormal, em situação de depressão ou mesmo de recessão, não há decisões de gastos de investimentos por parte das empresas não-financeiras. Daí, não há demanda de crédito e o circuito monetário se encolhe. Não se efetiva a oferta de crédito se ela não responde à encomenda, isto é, se nem os consumidores nem os investidores efetuam planos de gastos.

Decisões de gastos em investimentos dependem do grau de endividamento das empresas não-financeiras. Quando chegam à uma elevada alavancagem financeira, face ao princípio de risco crescente de não obterem refinanciamento ou alongamento do perfil da dívida, elas partem para a fase de desalavancagem.

Para ilustrar, considerando o ranking das 1000 maiores empresas brasileiras (inclusive Petrobras), em 2010, a alavancagem (relação entre a dívida financeira líquida e o EBTIDA – lucros antes de juros e impostos, depreciação e amortização) era de 1,23 vezes. Em 2015, multiplicou-se para 3,56 vezes. Daí ao fim do ano passado (2018) caiu para 1,83 vezes, ou seja, ainda estava em patamar superior ao do início do boom no ciclo de endividamento.

Quando se considera a alavancagem em moeda estrangeira, no primeiro trimestre de 2018, de 114 empresas (excluindo Petrobras) era 39,7% do patrimônio líquido. Passado um ano e meio, no fim do segundo trimestre de 2019, permanecia em 39,5%.

Como os demais determinantes das decisões de gasto em investimento permanecem inibidores – ritmo de vendas baixo derrubando as expectativas de lucro, baixa utilização da capacidade produtiva já instalada, e ausência de inovação tecnológica suficiente para arremeter a novo ciclo de produto –, as Pessoas Jurídicas estão inertes.

As Pessoas Físicas, ameaçadas de desemprego e com corte de direitos previdenciários e trabalhistas, por sua vez, controlam a propensão a consumir. Dada a baixa taxa de juro, as camadas de rendas mais elevadas aumentam a propensão a poupar na tentativa de manter seus planos de constituição de uma reserva financeira suficiente para aposentadoria com a manutenção do padrão de vida alcançado na fase de vida ativa.

Grosso modo, a fase de “empurrando corda” iniciada agora corresponde àquela de 1995 a 1998, quando a relação crédito / PIB caiu de 32% para 28%. Depois, de 1999 a 2003, houve uma fase de “normalização”, quando ela se manteve no patamar médio de 25% do PIB. A partir de 2004, iniciou-se uma crescente alavancagem financeira (cerca de 2 pontos percentuais ao ano de um PIB em expansão) até alcançar 44% em 2010.

Durante o governo Dilma, essa relação se elevou foi como se inflasse uma “bolha de crédito”, indo de 46% em 2011 até 54% do PIB em 2015, no “auge”. Na virada para a depressão, desde a nomeação do representante da casta dos mercadores-financistas para o ministério da Fazenda até o golpe semi-parlamentarista, apoiado pelos podres poderes judiciário e midiático, iniciou-se a fase de desalavancagem financeira.

Esse ciclo de endividamento interno, evidentemente, se sobrepôs à explosão da bolha de commodities, em setembro de 2011, afetando os saldos anuais do balanço comercial. Crescentes de maneira significativa desde 2003, o maior saldo foi US$ 45 bilhões, alcançado em 2006. A partir de 2008 até 2011, manteve-se em torno do patamar de US$ 25 bilhões, caindo com a queda da cotação do petróleo para apenas US$ 400 milhões em 2013. Houve um déficit comercial em 2014 de -US$ 6,6 bilhões.

Com a brutal depressão interna e a ligeira recuperação mundial, recuperou-se a partir de 2015 até atingir o recorde de US$ 64 bilhões em 2017. Caiu para US$ 54 bilhões em 2018. O superávit do balanço comercial continua em queda: US$ 27 bilhões até agosto de 2019, quando no mesmo período do ano anterior tinha sido de US$ 33,4 bilhões.

Para afastar qualquer “caça à bruxa” nessa recuperação histórica, houve “cisnes negros” inesperados: desde choques exógenos até acidentes climáticos (secas em estações chuvosas), provocando inflação de alimentos em quatro anos consecutivos de 2013 a 2016. Somando as “falhas humanas”, resultou no quadro calamitoso.

Exemplo de erros: combater as quebras de oferta com elevações dos juros e o atraso em abaixá-los, somente a partir de outubro de 2016, quando a inflação caia desde o verão daquele ano. Em consequência, agravou a concentração de riqueza financeira. Cada cliente do segmento Private Banking ganhou R$ 3,5 milhões em média per capita, entre dezembro de 2015 e junho de 2019, ou seja, média de um milhão de reais por ano. Gente da classe média alta ganhou R$ 200 mil, da baixa perdeu R$ 9.000 per capita.

Grandes bolhas, seja em ações, seja imóveis, são alimentadas por especuladores e credores. Extrapolam sucessos passados ao fazer novos investimentos financiados por dívida, apostando na tendência de alta dos preços dos imóveis. Levou à crise dos distratos dos contratos imobiliários. Afetou ainda mais o setor da construção civil, já criminalizado pela Operação Lava-Jato. Praticamente, todas as grandes incorporadoras brasileiras pararam de operar. Estima-se pelo menos 10% do desemprego total estar aí.

Pior, o Banco Central do Brasil continuou a apertar a política monetária, mesmo depois de estourarem as bolhas de commodities, imóveis e crédito. E foi muito lento em cortar taxas de juros. O governo também espera muito tempo para uma monetização agressiva da dívida pública. Os ineptos buscam austeridade fiscal em situação de estagnação do PIB, ou seja, sem crescimento da arrecadação. Instituições sistemicamente importantes como os bancos públicos estão sendo descapitalizadas e deixadas danificadas para atender à prioritária retomada do crescimento da renda e do emprego.

O ex-banqueiro de negócios pressupõe o crowding-out ser naturalmente substituído por um crowding-in com bancos privados ocupando o “vácuo” dos públicos. Ledo engano. Não há vácuo, mas sim uma economia brasileira menor com a retirada de cena dos bancos públicos. Além disso, eles constituem, historicamente, um dos principais instrumentos para concessão de crédito, em especial, a Caixa Econômica Federal porque ela atende à demanda inelástica por financiamento de Habitações de Interesse Social.

Estima-se as necessidades de unidades habitacionais (UH) de 2018 a 2027 em 12 milhões, sendo em média 294 mil UH por ano para atender à demanda de novas gerações de casais e trabalhadores e o restante corresponde ao déficit habitacional de 7,8 milhões UH. Cerca de 6 milhões (77%) são para famílias com renda até 3 salários mínimos. Em outras palavras, enquanto existirem favelados no Brasil – hoje são cerca de 12 milhões – haverá demanda para a missão social da Caixa Econômica Federal.

Por isso, é um escândalo a política de devolução do IHCD – Instrumento Híbrido de Capital e Dívida por parte do preposto do ministro da Economia. É imoral (e ilegal) descapitalizar a CAIXA justamente quando a sociedade mais precisa dela para a retomada do financiamento habitacional e do saneamento e, com ele, do crescimento.

E é burrice! O custo médio da dívida mobiliária interna de 8,79% em julho de 2019 foi a menor da série temporal iniciada em 2005. A taxa média das novas ofertas de títulos da dívida mobiliária interna ficou em 7,11% aa em julho. Então, abriu-se espaço suficiente na administração da dívida pública para a concessão de empréstimos perpétuos à CAIXA com a finalidade de lastrear o IHCD e, com isso, aumentar a Razão da Alavancagem e o Índice da Basileia de modo a conceder novos empréstimos imobiliários.

Os IHCD de todos os Bancos Oficiais somam apenas 0,6% do PIB. São componente menor da Dívida Bruta de 78,7% do PIB. Essa política de devolução do IHCD é apenas uma falsa alegação do ministro da Economia para a verdadeira pretensão de sua ingerência política na CAIXA: “desestatização do mercado de crédito”. Leia-se: atuar contra os interesses públicos e em favor dos parceiros do mercado de capitais.

As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.

* Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.