MÍDIA

Fernando Nogueira da Costa* | No GGN 

O sistema capitalista é um complexo sistema econômico-financeiro, emergente de diversos componentes, entre os quais destacam-se a propriedade privada dos meios de produção e seu usufruto para a acumulação de capital. Os componentes nucleares deste sistema incluem, além desses componentes destacados, o trabalho assalariado, a troca voluntária, um sistema de preços relativos e mercados relativamente competitivos para estabelecer esses valores de troca, seja de mercadorias, seja de ativos, isto é, formas de manutenção de riqueza.

A etimologia de capital vem do latim capitale, com o significado de “cabeça, principal, primeiro, chefe”. Passou a ser usado, na Itália, desde o século XIII, com o sentido de estoques de mercadorias, dinheiro próprio ou dinheiro emprestado com direito a juros.

O termo capitalista referente ao proprietário de capital data de meados do século XVII, na Holanda. Seu uso é anterior ao do termo capitalismo para designar o sistema.

Evidências de comércio mercantil em longa distância, orientado e motivado pelo lucro, foram encontradas em registros no segundo milênio a.C.. A moeda de troca era já uma realidade consensual. Combinava-se algo ter valor comum para todos os negociantes.

Após a Queda do Império Romano, a maior parte da economia europeia passou a ser controlada pelos poderes dos senhores feudais locais. Então, o mercantilismo entrou em declínio na Europa, mas não nos países árabes.

Estes comerciantes espalharam o mercantilismo, junto com o islamismo, para o Norte da África, a Ásia e, finalmente, a Europa no século XIV. A propagação mercantilista na Espanha e em Portugal propiciou as Grandes Navegações e a conquista das Américas.

Essa chamada “fase comercial do capitalismo” se desdobrou com inovações financeiras cruciais. Embora as primeiras operações bancárias da história tenham sido desenvolvidas na Civilização Fenícia, na Antiguidade, o primeiro banco moderno foi criado em 1406: o Banco di San Giorgio, em Gênova - Itália.

Com o desenvolvimento do comércio marítimo, sinalizando o fim da Idade Média, a função de banqueiro se tornou comum na Europa. Em 1519, Fernão de Magalhães organizou ainda com o financiamento dos reis da Espanha a primeira circum-navegação.

Outra inovação financeira crucial foi o mercado de ações. A Bolsa de Valores de Amsterdam, considerada a mais antiga do mundo por ter sido fundada em 1602, propiciou a Companhia das Índias Orientais Holandesas fazer emissões primárias de suas ações e obrigações – e dar-lhes liquidez em um mercado secundário.

Entre os princípios fundamentais da doutrina mercantilista estava o bullionismo. Para cada reino acumular metais preciosos, necessitava exportar mais bens em vez de os importar. Os estrangeiros propiciariam a diferença em metais preciosos: ouro, prata ou cobre. Originou daí a ideia de protecionismo ou reserva de mercado local.

O primeiro Banco Central é considerado o Banco da Inglaterra, surgido em 1694 como uma sociedade anônima privada. Como contrapartida de empréstimos para financiar a guerra contra a França, o rei inglês concedeu ao banco o monopólio de emissão de moeda na região de Londres.

Deu-lhe, assim, duas das funções clássicas de um Banco Central: banqueiro do governo e monopólio de emissão monetária. Na Suécia, em 1661, devido à incredulidade das moedas de baixo valor em cobre e à escassez de prata, foram emitidas as primeiras cédulas sem lastro na Europa pelo Banco de Estocolmo: eram papel-moeda fiduciário.

A história monetária se caracteriza por secular e progressiva desmaterialização da moeda, desde o padrão-ouro até o presente CBDC [Central Bank Currency Digital]. O Bitcoin foi pioneiro no conceito, mas a CBDC é diferente da moeda virtual e criptomoeda por estas serem privadas e não controladas por um Estado nacional soberano.

O Banco Central da Suécia começou testes com sua moeda digital, a e-krona, no começo de 2020. A China ingressou, de maneira pioneira, no novo mundo das moedas digitais dos Bancos Centrais, ao propiciar a realização de pagamentos com o uso do yuan eletrônico, emitido pelo Banco do Povo da China, o Banco Central chinês.

As CBDCs são espécie de “papel-moeda digital”. Para ganharem massa crítica, os Bancos Centrais competirão com os bancos tomadores de depósito no varejo, o principal negócio dos banqueiros desde a Idade Média.

Paradoxalmente, os CBDC de um Banco Central poderão agravar a instabilidade financeira se fomentar uma “corrida bancária”. Depositantes apavorados com o risco de bancarrota transfeririam seus recursos para a segurança do risco soberano.

Outro problema sistêmico, em condições normalizadas, é o “saque desse papel-moeda digital” afetar o multiplicador monetário. A principal forma de criação de moeda bancária digital se dá através da série de empréstimos-depósitos-empréstimos, regulada seja por recolhimento compulsório de reserva, seja por saque de papel-moeda.

Caso ocorra a extinção definitiva desse papel-moeda em espécie, com o uso de CBDC, provavelmente, bancos de varejo deixarão de receber depósitos à vista. Receberão apenas depósitos a prazo remunerados (CBD), ou seja, encarecerá o funding – e esse maior custo será repassado aos clientes.

Interessante em toda essa trajetória em direção à desmaterialização da forma da moeda é o dinheiro ser muito concreto como riqueza, isto é, estoque de poder de compra. Esta é baseada em predominâncias periódicas de incertas avaliações subjetivas muitas vezes não baseadas em fundamentos reais, mas sim em comportamentos emotivos.

Alguns historiadores veem o mercantilismo como o primeiro estágio do capitalismo, mas outros argumentam este sistema ter surgido mais tarde, porque sua marca seria a criação de mercados para as chamadas por Karl Polanyi de “mercadorias fictícias”. Para ele, terra, trabalho e dinheiro eram meios de produção, logo, não foram produzidos, originalmente, para serem trocados em mercados secundários.

Fictício é um adjetivo referente a fingimento, ser ilusório, enganoso, aparente. A crítica materialista se refere à riqueza ou à acumulação de capital acionário como uma ficção! Nada mais concreto em um mundo materialista...

Em outros termos, essa crítica não é, no fundo, uma crítica moralista, onde permanece a velha pregação religiosa contra o capital portador de juros?

O “capital fictício” corresponderia ao valor presente de um determinado fluxo de rendimentos futuros. Isso torna qualquer fluxo de renda potencialmente capital, capaz de se materializar em um título financeiro precificado a cada momento pela predominância das avaliações subjetivas dos participantes do mercado secundário, baseadas na oferta e demanda.

O capital financeiro pode ser entendido como o capital representado por títulos, obrigações, certificados e outros papéis negociáveis e rapidamente conversíveis em dinheiro. Não tem nada de fictício no sentido de ser ilusório, enganoso, aparente.

A crítica marxista condena, religiosamente, toda atividade econômico-financeira “não produtiva”, ou seja, não diretamente geradora de empregos para trabalhadores na linha de produção, seja em montagem industrial, seja em agropecuária ou indústria extrativa. No entanto, como demostrado ao longo da história econômica mundial, a multiplicação de empregos em diversas atividades de produção de serviços urbanos, inclusive em economia criativa, se deu por meio de alavancagem financeira.

Reagir contra a evolução histórica é típico de reacionarismo. E esse dogmatismo é inútil por causa do tempo ser irreversível.

Conservar intacta, no século XXI, uma doutrina do século XIX não é só anacronismo – erro cronológico, quando determinados conceitos, objetos, pensamentos, costumes e eventos são usados para retratar uma época diferente daquela a qual de fato pertencem. É também um excessivo apelo ao Argumento de Autoridade com inúmeras citações de Karl Marx sem nenhuma adequação ao atual contexto, quando se dá “Adeus ao Proletariado”, por exemplo, em linhas de montagem industrial com robôs ou, brevemente, veículos autônomos prescindindo de motoristas profissionais.

Coerentemente, o marxismo teria de ser vivo e adaptado por seus adeptos ao novo modo de vida. Uma revisão da Teoria do Valor-Trabalho e o abandono do conceito de Capital Fictício são ambos urgentes.

Meus companheiros de esquerda necessitam entender o direito à propriedade privada como um avanço face à escravidão, à servidão e ao mercantilismo. Foi uma conquista social contra o monopólio da riqueza pela Igreja, Monarquia e nobreza.

Os trabalhadores devem agora lutar pela conquista do controle das participações acionárias e consequente autogestão não alienante de companhias abertas: participações nos lucros e resultados através de Opção de Compra de Ações [stock-options]. Este “capitalismo de fundos de pensão” é distinto da má experiência histórica da “propriedade coletiva dos meios de produção”, controlada por uma nomenclatura de um partido único totalitário.

 

As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.

* - Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor do livro digital “Segredo do Negócio Capitalista: Alavancagem Financeira” (2021). Baixe em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.