MÍDIA
Roberto Alexandre Zanchetta Borghi* | Jornal do Economista
Os acontecimentos mundiais pós-pandemia revelam-se preocupantes. Mecanismos de cooperação internacional e reforço das instituições multilaterais que poderiam ser esperados após a devastadora pandemia de Covid-19, que somava mais de sete milhões de mortes até o início de janeiro deste ano, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), e que agravou as desigualdades sociais em todo o planeta, cederam lugar para algo completamente distinto, que coloca em dúvida uma recuperação econômica e social rápida e sustentável. Observa-se, em contrapartida, um recrudescimento dos conflitos armados mundo afora. Muitos desses conflitos se arrastam por anos e possuem raízes históricas, mesmo antes da pandemia, embora tenham ganhado mais força no contexto recente. Há praticamente dois anos, estende-se o conflito entre Rússia e Ucrânia, agravado pelas repercussões sobre a saída de Moscou do tratado sobre testes de armas nucleares e pela realização dos maiores exercícios militares por parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em décadas. Eleva-se a tensão entre Israel e Palestina, explicitando uma enorme crise humanitária. No Oriente Médio, ainda, verificam-se tensões crescentes no Iêmen e no Mar Vermelho, assim como entre Irã e Paquistão. Ao mesmo tempo, reforça-se a presença americana e de aliados ocidentais na região. Na Ásia, a disputa entre China e Taiwan ganha novos capítulos e as ameaças também se intensificam. Na África, a guerra civil no Sudão exacerba tragédias humanas com a morte de civis inocentes. E, mesmo próximo, na América Latina, esboça-se um conflito entre Venezuela e Guiana sobre a região de Essequibo e amplia-se a tensão gerada pelos narcotraficantes no Equador.
Esses movimentos têm ganhado destaque na mídia nacional e internacional, reiterando as preocupações com seus desdobramentos de diferentes perspectivas. Do ponto de vista humano, sublinha-se o potencial de catástrofe que tais conflitos possam gerar, para além das perdas de vidas humanas, afronta aos direitos humanos internacionais e crises migratórias que já provocaram. Do ponto de vista militar e geopolítico, reforça-se o poderio bélico das nações em torno da reconfiguração da ordem internacional, de caráter mais multipolar, induzindo a uma corrida armamentista que pode se mostrar desmedida, e reduz-se o espaço da capacidade de diálogo entre grandes potências para assumir posição conjunta sobre o encaminhamento de temas fundamentais na agenda mundial para os próximos anos e décadas, como da paz mundial, da segurança alimentar e das questões ambientais e do clima. Do ponto de vista social, acentuam-se as desigualdades e a vulnerabilidade de povos e classes sociais historicamente oprimidos. Do ponto de vista ambiental, uma agenda crucial para o futuro das nações e da humanidade pode ser relegada a segundo plano nas negociações internacionais, caso a escalada armamentista se intensifique ainda mais.
Se isso não bastasse, do ponto de vista econômico, delineiam-se também grandes desafios, inclusive no curto prazo. As repercussões dos conflitos armados, que se somam aos efeitos remanescentes provocados pela pandemia, podem ser sentidas de diversas formas: na cadeia de suprimentos, no crescimento econômico, nos preços das commodities, na inflação global e nas finanças mundiais. Ou seja, de várias perspectivas – comercial, produtiva, tecnológica, monetária e financeira –, inúmeros efeitos podem ser desencadeados a partir da escalada desses conflitos e de outros que venham a surgir na ausência da razão e do diálogo.
Vejamos alguns desses efeitos econômicos potenciais. O comércio global mostra dificuldades em retomar a pujança pré-pandemia diante de maiores incertezas e do resgate de medidas protecionistas. É bem verdade que o acirramento da disputa comercial e tecnológica entre Estados Unidos e China se reflete na forma de estruturação das cadeias globais de valor. Uma relação simbiótica de décadas entre ambos os países cede cada vez mais espaço para questionamentos de um lado e de outro sobre seus distintos interesses. Não à toa, explicita-se em documentos oficiais americanos e de aliados ocidentais a preocupação sobre o controle e direcionamento de cadeias produtivas estratégicas, sob o argumento de segurança nacional e ampliação da resiliência das cadeias domésticas de suprimentos em determinados setores, como de energia, semicondutores e de saúde. Do ponto de vista produtivo, isso pode reforçar um conjunto de investimentos nacionais para liderar setores estratégicos, como os mencionados, diante de uma corrida tecnológica e em meio a uma transição energética. Em contrapartida, pode prejudicar investimentos transfronteiras, sobretudo para as economias periféricas geopoliticamente não alinhadas, o que exige cautela acerca da política externa de tais economias. As eleições americanas deste ano tendem a cumprir um papel decisivo nos rumos dessas questões. A isso se entrelaça a dimensão tecnológica, que também rebate na questão militar e na ampliação de gastos bélicos, seja para produção, seja para inovação. Apesar de algum impulso de demanda que isso possa dar, o caráter armamentista destrutivo e o contexto incerto que se cria tendem a limitar o crescimento econômico, como já se observa nos últimos anos, com previsões para um crescimento mundial em declínio. De acordo com estimativas do Banco Mundial, as previsões de crescimento global para 2024 são de 2,4%, marcando o terceiro ano consecutivo de desaceleração econômica, após registrar 2,6% em 2023, 3,0% em 2022 e 6,2% em 2021, naquele momento apontando para uma recuperação decorrente das medidas de expansão econômica global adotadas adiante da pandemia. Do ponto de vista monetário e financeiro, coloca-se uma outra corrida, pela diversificação das oportunidades de alocação da riqueza e por sua denominação para além de uma única moeda. É inegável o papel que o dólar cumpre no sistema monetário e financeiro internacional, sobretudo como reserva de valor, fruto do poderio da moeda e das armas dos Estados Unidos. Contudo, o cenário descrito e as manifestações de sanções ocidentais, por exemplo, sobre a Rússia, já impulsionam alternativas para a manutenção da riqueza privada. Isso se confunde com o próprio processo de internacionalização de outras moedas, como o renminbi chinês, que ganha espaço nesse contexto. Ao mesmo tempo, isso se reflete também nos fluxos internacionais de capitais, que podem se tornar mais seletivos e exigir prêmios de risco mais elevados, pressionando as taxas de juros e as taxas de câmbio dos países, especialmente na periferia do sistema.
Somam-se a isso os riscos de nova elevação dos preços mundiais de commodities e de energia, como observado em 2022 a partir do conflito entre Rússia e Ucrânia. Se, por um lado, isso favorece países exportadores de commodities por meio da ampliação de seus saldos comerciais, por outro, impõe aumento de custos de produção e pressão nos preços, por exemplo, de alimentos. Uma escalada de conflitos no Oriente Médio pode ser ainda mais desconcertante, pois poderia pressionar os preços internacionais do petróleo e, consequentemente, a inflação dos países, que por ora segue trajetória de arrefecimento. Isso, por sua vez, poderia levar a uma nova rodada de aperto monetário, isto é, retomada de taxas de juros mais elevadas e, portanto, um cenário de crescimento econômico ainda mais debilitado.
Logo, é sobre um tabuleiro geopolítico bastante complexo e movediço que caminham as principais potências mundiais recentemente. Seus posicionamentos e ações exigem muita cautela, uma vez que podem exacerbar uma situação já delicada, agravada pela sobreposição de problemas vivenciados na economia global nos últimos anos. Consequentemente, os impactos econômicos e sociais podem se mostrar ainda mais severos, com rápida transmissão para o mundo como um todo, penalizando com maior intensidade países, povos e grupos sociais em situação de maior vulnerabilidade.
* É professor associado do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e atual coordenador do Centro de Estudos de Relações Econômicas Internacionais (Ceri) da mesma instituição. Doutor pela Universidade de Cambridge, no Reino Unido. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..