MÍDIA

Guilherme Mello | No Teoria e Debate

O coronovírus já pode ser considerado um marco histórico na economia global, não apenas pelos seus efeitos imediatos, mas por seu potencial transformador na forma de organização das sociedades e da produção. Em curto prazo, a necessidade de isolamento social e quarentena deve levar a economia global, que já vinha desacelerando, à recessão. O desemprego, a redução de renda das famílias e das empresas, assim como a destruição de riqueza financeira, são marcas imediatas da coronacrise.

Em longo prazo, é provável que vejamos o aumento do papel de coordenação do Estado, além de mudanças na divisão internacional do trabalho, no comércio global e até no comportamento social dos indivíduos. A globalização produtiva, marcada pelo livre comércio e pelas cadeias globais de valor, pode regredir devido à recém-adquirida consciência de sua fragilidade e da perda de autonomia nacional frente a momentos de crise no sistema produtivo global.

Do ponto de vista social, a importância da garantia de uma renda mínima, mote central dos governos de todo o mundo neste momento agudo da pandemia, deve se tornar uma pressão permanente da sociedade, em um cenário de crescimento das desigualdades e do desemprego. Da mesma forma o fortalecimento dos serviços públicos universais, em particular os ligados à saúde, deve se tornar uma constante no novo quadro que emergirá no cenário pós-coronavírus.

Ao mesmo tempo, é possível que o protecionismo promova prejuízos consideráveis aos países em desenvolvimento, dependentes da exportação de commodities. Caso o comércio global desacelere e impacte negativamente o crescimento mundial, os países subdesenvolvidos precisarão adotar uma postura de maior colaboração em blocos econômicos regionais, assim como voltar maior foco ao seu mercado interno.

Em curto prazo, as medidas adotadas pelos diferentes governos no enfrentamento dos efeitos econômicos imediatos do coronovírus podem ser organizadas em três grandes eixos: 1) a estatização dos estoques de riqueza financeira, em escala superior ao observado na crise de 2008; 2) a estatização dos fluxos de renda, como salários e faturamento das empresas, através de crédito e/ou gastos públicos; 3) a crescente estatização dos fluxos produtivos e comerciais, com um processo acelerado de “reconversão produtiva" e proibição de exportação de produtos essenciais.

Esse conjunto de medidas, além de elevado custo fiscal, possui um traço em comum: o enorme papel do Estado, que passa a assumir a propriedade dos estoques de riqueza (inclusive de títulos privados), a garantir a renda do setor privado e a orientar as decisões de produção de setores estratégicos. Ou seja, temos um cenário em que o Estado vai muito além de seu papel tradicional em uma economia de mercado, contando com o apoio de boa parte dos capitalistas e até mesmo dos economistas neoliberais para isso.

Isso não significa, porém, a derrota do neoliberalismo. Quem acompanha o debate econômico perceberá facilmente que a defesa do papel do Estado como coordenador das ações durante a crise se limita ao período de emergência sanitária, com a maior parte dos analistas econômicos se remetendo à ideia de uma “economia de guerra”, por maiores que sejam as diferenças de nosso momento atual com uma guerra (onde há pleno emprego dos fatores produtivos). Esse momento, portanto, não é visto como um ponto de inflexão ou de mudança de paradigma, mas como um mero “solavanco”, pontual e passageiro, na trajetória de uma economia globalizada neoliberal.

Apesar do desejo de alguns, o retorno ao “normal” pode se provar mais difícil do que se imagina. Mesmo que todas as medidas necessárias sejam tomadas por parte dos governos nacionais, o setor privado sairá enfraquecido dessa crise, seja devido ao elevado endividamento, seja pela redução na renda das famílias e empresas. A recuperação em “V”, sonhada por alguns analistas no início da pandemia, tende a se transformar em uma recuperação em “U”, com uma duração desconhecida à fase de baixa do ciclo. No limite, a recessão pode perdurar por vários anos, assumindo o formato de uma crise em “L”, como tem sido a situação da economia brasileira desde 2015.

Tanto a duração da crise quanto a velocidade da recuperação dependerão de dois fatores. O primeiro, a dinâmica do vírus, que pode gerar ondas seguidas de contaminação, exigindo o retorno intermitente ao estado de isolamento social; o segundo, a capacidade dos Estados de coordenar os esforços no campo econômico e social, com destaque à indução do investimento e garantia do emprego no pós-crise.

Desse ponto de vista, os Estados partem de pontos muito distintos, com alguns já tendo estruturada uma ampla rede de serviços públicos e/ou possuindo um histórico de planejamento dos investimentos, enquanto outros dependem fundamentalmente do setor privado como promotor principal dos investimentos produtivos. Ao mesmo tempo, países com “moedas conversíveis”, ou seja, moedas aceitas como meio de pagamento e reserva de valor no âmbito internacional, possuem capacidade superior de financiar os necessários gastos públicos em relação a países com “moedas periféricas”, sempre sujeitos a fugas de capital e ataques especulativos contra sua moeda e seu mercado de dívida pública.

O Brasil possui vantagens e desvantagens para se preparar para o pós-crise. Do lado positivo, temos estruturas bem desenvolvidas de serviços públicos universais (com destaque para o Sistema Único de Saúde – SUS), de seguridade social e de transferência de renda, heranças da Constituição de 1988 e dos governos do PT. Temos também bancos públicos de grande porte, capazes de enfrentar a escassez de crédito típica de períodos recessivos.

Do lado negativo, temos uma economia enfraquecida por cinco anos de depressão, com elevado desemprego, desalento e informalidade. Ademais, o desmonte dos instrumentos de planejamento e atuação do Estado foi acelerado desde o governo Temer, com queda do investimento público direto federal e criação de regras fiscais extremamente restritivas, que impedem a atuação indutora do Estado.

Do ponto de vista fiscal, apesar de termos uma dívida pública elevada em comparação a outros países em desenvolvimento, o Estado brasileiro ainda possui todas as condições de ampliar o endividamento sem maiores riscos inflacionários. Nossa solvência também está garantida pelas reservas internacionais acumuladas ao longo dos governos petistas. Os juros historicamente baixos são um fator decisivo, que farão com que o necessário aumento do endividamento não seja determinante na trajetória futura da dívida pública.

Superar os limites e se valer de nossas potencialidades será o grande desafio do Brasil no pós-crise. Para isso, temos que tomar atitudes imediatas, impedindo que as consequências econômicas da coronacrise promovam uma deterioração permanente na estrutura econômica e social do Brasil.

O que o Brasil deveria fazer para enfrentar a coronacrise?

Para enfrentar os impactos econômicos decorrentes da pandemia do coronavírus, a experiência internacional tem mostrado que é fundamental um trabalho de planejamento conjunto das diferentes esferas de governo. A transferência ilimitada de recursos para a saúde pública, capaz de alcançar rapidamente os estados e municípios que prestam o serviço na ponta, é condição essencial para o enfrentamento eficaz da crise sanitária.

Para além disso, em primeiro lugar é necessário atender as camadas mais vulneráveis, como os assistidos por benefícios sociais e os trabalhadores informais, garantido a eles uma renda mínima emergencial para superar a crise sem a necessidade de se exporem nas ruas em busca de renda. Nesse sentido, o projeto aprovado no Congresso Nacional de auxílio mínimo de R$ 600,00 foi um avanço insuficiente, cuja implementação imediata dependerá da capacidade e vontade política do governo federal, que caminha a passos lentos (quando não no sentido oposto) nas medidas de suporte aos menos favorecidos. Enquanto trilhões de reais são rapidamente canalizados para a salvação dos mercados financeiros, as migalhas orçamentárias voltadas aos mais pobres seguem em passo lento.

Em segundo lugar, é importante garantir a renda dos trabalhadores formais. Nesse sentido, a MP 936/2020, que regulamenta diferentes cenários de redução da jornada de trabalho e do salário dos trabalhadores formais do setor privado, se apresenta como um ataque direto ao trabalhador. De acordo com estudo publicado por pesquisadores do Cecon-IE/Unicamp, a medida do governo irá provocar uma redução dos salários que pode variar entre 10% e mais de 80% dos rendimentos do trabalhador, a depender do tamanho do salário inicial e do tamanho do corte da jornada/salário. Isso representará uma queda da massa salarial que pode variar entre 9% e 28%, retirando até R$ 21 bilhões por mês das mãos dos trabalhadores, com evidentes impactos sobre o consumo.

Por fim, é fundamental garantir a saúde financeira das empresas, para que possam prosseguir com os pagamentos de salários e fornecedores, impedindo assim uma quebradeira generalizada. Para isso, nenhuma medida do governo federal foi totalmente efetiva até o momento. A liberação de liquidez para os bancos assim como a chamada “PEC da Faria Lima” apenas ajudam a salvar o mercado financeiro, mas não resolvem a falta de crédito que já pode se observar para as empresas, uma vez que os bancos usam os recursos para se manterem líquidos e seguem com medo de emprestar, diante do risco de inadimplência. A medida do Banco Central, de ofertar linhas de crédito subsidiado, atinge apenas empresas com faturamento superior a R$ 360 milhões/ano, deixando de lado milhões de pequenas e microempresas, que se encontram sem nenhum acesso a crédito longo e barato. É fundamental que os bancos públicos assumam a dianteira no processo e ofertem crédito, garantido pelo BC, para as empresas (em particular as menores) seguirem vivas e atuantes no pós-crise.

Aos governos subnacionais, além da coordenação dos esforços de combate à pandemia no âmbito sanitário estadual e municipal, caberia a discussão acerca da arrecadação de impostos e tarifas de serviços públicos sob seu controle. O adiamento de cobrança e até o abono desses encargos devem ser considerados como políticas imediatas de combate à crise, na medida em que aliviam a já combalida renda das empresas e das famílias. Além disso, governadores e prefeitos podem trabalhar de forma cooperada no sentido de acelerar um processo de reconversão produtiva, em particular no Sudeste, que possui ampla base industrial. A utilização das indústrias de vários setores para o enfrentamento da crise necessita de coordenação e suporte estatal, incluindo garantia de demanda e planejamento para o pós-crise.

Em longo prazo, o desafio é ainda maior. Será preciso repensar totalmente a relação entre o Estado e o setor privado, desmontada pelo projeto neoliberal em voga nos últimos anos. Em primeiro lugar, o grande desafio será manter um patamar mínimo de renda das famílias por vários anos, capaz de ajudar na retomada da demanda doméstica e de garantir os direitos de cidadania de milhões de brasileiros que estarão desempregados ou na informalidade. Nesse sentido, é imperativo o avanço no debate acerca de uma renda mínima de cidadania, que atualmente é objeto de estudos e debates em diversos países.

O SUS deverá ser fortalecido para enfrentar novas ondas do coronavírus e de epidemias já conhecidas, como dengue, zika e chikungunya. O mesmo se aplica aos investimentos em pesquisa, ciência e tecnologia, que por sua vez dependerão fortemente do fortalecimento do ensino público. Ademais, será fundamental que o Estado volte a assumir um papel de protagonismo da articulação dos investimentos produtivos, com foco na infraestrutura social, mas também na logística, energia elétrica renovável e outros setores que exigirão planejamento e indução dos investimentos privados.

Para que tudo isso se torne possível, será preciso rever o conjunto de regras fiscais brasileiras, uma das mais rígidas e complexas do mundo. Abrir espaço para o investimento público, permitir a atuação anticíclica do Estado e financiar adequadamente os serviços públicos universais devem ser princípios norteadores de uma eventual nova regra fiscal, que coadune responsabilidade fiscal, responsabilidade social e garantia dos direitos humanos.

Talvez o maior desafio para o Brasil será superar os seguidos anos de predomínio do ideário neoliberal que tomou conta do debate público. A criminalização da atuação estatal e a visão equivocada de que “o Estado quebrou”, “acabou o dinheiro” e “não há alternativas” estão sendo desconstruídas pelos fatos e pela necessidade urgente de intervenção estatal no tecido econômico. Apesar disso, a realidade não é suficiente para alterar a ideologia de muitos economistas, que insistem em retornar ao paradigma da austeridade uma vez superada a crise sanitária. Nada mais ilusório e danoso do que acreditar que será possível retomar o caminho já anteriormente trilhado e fracassado, mas agora em condições ainda mais adversas. O velho já morreu, resta saber se uma nova utopia, fundada na solidariedade e na democracia, terá força para nascer.

Conclusão

O Brasil segue em passos lentos na implementação das medidas econômicas de enfrentamento da crise, apesar de já possuir um quadro rico e suficiente de todas as medidas que deveriam ser adotadas. Isso se deve em parte à resistência e à inépcia do governo federal, em sua incapacidade de coordenar esforços e planejar ações. Mas também se deve ao desmonte da capacidade produtiva e estatal que a economia brasileira sofreu nos últimos anos, enfraquecendo o sistema de saúde pública, assim como as pesquisas científicas, as universidades públicas, os mecanismos de coordenação e planejamento econômico, as empresas e os bancos públicos. O neoliberalismo radical cobra seu preço nesse momento que a coordenação é tão fundamental para o enfrentamento da pandemia e seus efeitos. Abandoná-lo e substituir a mentalidade neoliberal por uma concepção mais solidária, justa e democrática de sociedade será o grande desafio do mundo todo, e do Brasil em particular, no pós-coronacrise.

As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.

* Guilherme Mello é economista, professor do Instituto de Economia da Unicamp e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura do IE/Unicamp