Daniela Magalhães Prates, Maryse Farhi e Raquel Almeida Ramos | Do Le Monde Diplomatique
O atual presidente do Banco Central do Brasil (BCB), Roberto Campos Neto, lançou dia 26 de maio uma nova agenda estrutural do BC, batizada agora de BC#. Um dos pilares dessa agenda é a simplificação, desburocratização e aprofundamento da liberalização do mercado de câmbio. Seu objetivo final, a ser alcançado em dois ou três anos, é a plena conversibilidade de jure do real, ou seja, a permissão de abertura de contas em reais no exterior (dimensão externa) e de contas em dólares por residentes e não residentes no país (dimensão interna).
A adoção da plena conversibilidade de jure exige a mudança da lei 4.131 de 1962, que regula os capitais estrangeiros no Brasil e, assim, a aprovação do Congresso Nacional. Desde o final dos anos 1980, as mudanças que viabilizaram a chamada conversibilidade da conta financeira (inexistência de restrições à entrada de capitais de não residentes no país e saída de capitais de residentes para o exterior) foram realizadas mediante resoluções do Conselho Monetário Nacional (CMN) e circulares do BC, resultando numa base legal frágil, pois não amparada em lei. Por um lado, essa estratégia possibilitou a inserção do Brasil na globalização financeira sem o debate e eventual aval do legislativo, representante dos interesses da sociedade. Por outro lado, ela permite ao governo brasileiro reverter parcial ou totalmente essas mudanças quando desejar ou necessitar (por exemplo, numa situação de aumento da saída de capitais). Ou seja, se a nova lei for aprovada nos moldes descritos, além de resultar na conversibilidade de jure do real, completando o processo de abertura financeira da economia brasileira, ela também fornecerá uma base sólida à liberdade dos fluxos de capitais entre o Brasil e o exterior, eliminando a possibilidade de sua reversão pelo CMN ou pelo BCB.
A conversibilidade de jure teria implicações muito negativas para a economia brasileira. Isto porque, na sua dimensão externa, ela não faria com que o real passasse a desempenhar as funções da moeda em âmbito internacional (meio de pagamento, unidade de conta e reserva de valor), ou seja, não se tornaria conversível de facto. O real continuaria a ser demandado como alternativa de investimento de curto prazo para obtenção de ganhos especulativos. Assim, a moeda brasileira não subiria na hierarquia do sistema monetário internacional na qual o dólar posiciona-se no “topo” pois é a divisa-chave que desempenha essas funções. As moedas dos demais países centrais ocupam os “andares” logo abaixo, pois as desempenham parcialmente, enquanto as moedas emitidas pelos países emergentes situam-se no “piso” por não serem utilizadas em nenhuma das três funções, o que as torna amplamente vulneráveis aos ciclos de liquidez internacional, resultando em maior volatilidade cambial.
Assim, nas fases de otimismo e apetite por riscos, a demanda especulativa por essas moedas e ativos nelas denominados aumenta, resultando em apreciações cambiais, enquanto nas fases de
pessimismo e aversão aos riscos, sua venda em massa resulta em acentuadas depreciações. Em contraste, a simultânea fuga para a divisa-chave e sua consequente apreciação não desestimula a demanda por essa moeda e respectivos ativos (sobretudo, os títulos do Tesouro norte-americano, “porto seguro” da riqueza financeira global). O mesmo processo, em menor intensidade, se observa nos demais países centrais. Como Belluzzo e Carneiro (2004)[1] destacam, “moedas não são bananas”. Como a conversibilidade de jure não alteraria a posição inferior do real na hierarquia de moedas não seria eliminado o prêmio de risco exigido por esses agentes para manter a riqueza na nossa moeda frágil. Por sinal, esse prêmio explica, em grande medida, o diferencial entre a taxa de juros básica brasileira e a norte-americana.
Já a permissão de contas em dólares no espaço nacional (dimensão interna) poderia resultar num processo de substituição monetária, ou seja, no uso crescente do dólar como reserva de valor e mesmo como unidade de conta e meio de pagamento. Mesmo que o diferencial de juros conseguisse manter a demanda por reais, nossa soberania monetária diminuiria, já que a capacidade de intervenção do BCB para manter o funcionamento normal do sistema monetário e financeiro dependeria do seu estoque de reservas cambiais, que apesar de atualmente elevado (em torno de US$ 400 bilhões) é finito. A consequência seria uma redução adicional da nossa autonomia de política macroeconômica, que já é limitada por causa da posição inferior do real na hierarquia de moedas.
Para compreender as implicações da conversibilidade de jure do real para essa autonomia, também é preciso considerar duas especificidades que diferenciam o Brasil de outras economias periféricas.
Um primeiro fator é a alta volatilidade da moeda brasileira. Exatamente por ser considerada nos mercados financeiros internacionais como uma “moeda de investimento especulativo”, a demanda dos investidores estrangeiros pelo real muda muitas vezes de forma abrupta não apenas em momentos de turbulência no mercado brasileiro, mas também por conta de turbulências em outros mercados. O resultado é uma trajetória da taxa de câmbio subordinada às condições financeiras externas e marcada por variações diárias de grande amplitude.
Em razão dessas variações extremas frequentes, a volatilidade média da taxa de câmbio do real é muito superior àquela de economias centrais e de outras economias emergentes – outras moedas de volatilidade parecida são o rand sul-africano e a lira turca. Uma marca do uso do real como “moeda de investimento especulativo” é sua alta volatilidade especificamente em momentos de crise nos centros financeiros mundiais. Por exemplo, ela aumentou significativamente no período entre a eclosão da crise financeira global (2008) até o final da crise do euro (2012); e foi a moeda emergente mais volátil nesse período. A conversibilidade aumentaria as possibilidades de especulação com o real e, consequentemente, intensificaria sua demanda como ativo especulativo, acentuando ainda mais a volatilidade da taxa de câmbio brasileira.
O segundo fator refere-se ao nosso mercado de derivativos cambiais que apresenta diversas particularidades, entre as quais se destaca a liquidação das operações tanto dos agentes privados
quanto da autoridade monetária em reais exatamente em função da proibição de contas em dólares no país por residentes e não residentes.
Essa característica provê ao BCB um grau de liberdade muito mais amplo em suas intervenções no mercado de derivativos de câmbio destinadas, quando necessário, a prover liquidez ao mercado e a reduzir a volatilidade cambial. Por serem liquidadas em reais, essas intervenções acabam tendo efeitos fiscais, mas não têm impacto nas reservas internacionais.
A adoção de medidas para permitir que os agentes possuam contas em dólares no país levaria à mudança das características dos derivativos de câmbio que passariam a ser liquidados no vencimento pela entrega da moeda norte-americana. Em consequência, as intervenções no mercado de câmbio do BCB estariam sujeitas a sofrer constrangimentos suplementares já que teriam impacto sobre as reservas internacionais. Um exemplo significativo desse efeito é a crise da Tailândia no primeiro semestre de 1997. Frente a um forte ataque especulativo, o Banco Central Tailandês optou por defender a taxa de câmbio, praticando uma política monetária mais restritiva e operando agressivamente nos mercados de derivativos de câmbio, até o ponto em que seus compromissos futuros ultrapassaram o nível das reservas disponíveis. À medida que esses compromissos foram vencendo, ele foi obrigado a reconhecer que não dispunha de divisas suficientes para honrá-los, provocando a eclosão da crise cambial, que resultou numa forte recessão.
Ademais, é importante sublinhar que, precisamente porque são liquidados em moeda nacional, os derivativos cambiais não estão incluídos nas leis relativas ao mercado de câmbio. Ao passar a serem liquidados em dólares, eles deverão fazer parte da nova legislação. Dependendo da forma como forem integrados na nova lei, podem ocorrer impactos na alta liquidez e profundidade que atualmente os caracteriza, com parte das operações dos agentes migrando para o mercado internacional (off-shore), o que poderia beneficiar os bancos brasileiros que operam em reais. Com isso, o escopo das intervenções da autoridade monetária nesse mercado e sua eficácia em diminuir a volatilidade cambial seria ainda menor.
Em suma, no caso de uma moeda como a brasileira, situada no piso da hierarquia do sistema monetário internacional, a conversibilidade de jure e a consolidação em bases legais da abertura financeira não mudariam a natureza especulativa da demanda dos investidores não residentes pelo real (e ativos nele denominados) e poderiam desencadear um processo de substituição monetária. Nesse contexto, a autonomia da política macroeconômica se tornaria ainda menor e a volatilidade cambial se intensificaria. Como sua implementação será gradual, resta torcer para que a atual equipe econômica reavalie essa estratégia, promovendo somente a simplificação e desburocratização das transações cambiais.
As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.
*Daniela Magalhães Prates, Maryse Farhi e Raquel Almeida Ramos são, respectivamente, professora associada do IE/Unicamp, pesquisadora do CNPq e editora da revista Economia e Sociedade; professora colaboradora do IE/Unicamp; e pós-doutoranda do IE/Unicamp.
[1] Belluzzo, L. G. M; Carneiro, R. O mito da conversibilidade, Revista de Economia Política, v.24, n.2 (94), abr.-jun. 2004, p.218-222.