MÍDIA
Entrevista a Antonio Martins | No Outras Palavras
Como se faltasse outro emblema para registrar a insensibilidade social dos mais ricos no Brasil, ele veio agora, com a assustadora protelação dos R$ 600 ao mês, devidos desde segunda-feira aos brasileiros mais necessitados. O benefício é a única renda com que contarão dezenas de milhões de pessoas, enquanto durar a quarentena nas cidades. Mas primeiro, Jair Bolsonaro e Paulo Guedes queriam limitar o valor a R$ 200. Ao triplicar o valor, o Legislativo manteve, no entanto, o auxílio limitado a duas pessoas por família. Também continuaram excluídos os que recebem salário regular e os aposentados. Ao receber a lei, o presidente vetou artigo que beneficiava os idosos empobrecidos. E até agora, passadas mais de 72, horas, continua procrastinando a sanção da medida, a publicação no Diário Oficial e – mais angustiante que tudo – a efetivação do pagamento. No entanto, em 23 de março, sem nenhum debate com a sociedade ou o Congresso, o Banco Central aprovou, em favor dos bancos, um pacote que pode permitir-lhes acessar R$ 1,2 trilhão…
Como lidar com o 0,1% dos brasileiros que se beneficia do ultracapitalismo de Bolsonaro e, animado pelo tilintar de moedas, lixa-se para as tendências fascistas do capitão criminoso? Nesta quarta-feira (1º/4), Eduardo Fagnani falou a Outras Palavras a respeito. Professor de Economia da Unicamp, ele ćoordena também a Plataforma Politica Social, uma rede de pesquisadores que, ao invés de se limitar à Academia, intervém constantemente no debate dos grandes problemas brasileiro e das alternativas. Fagnani desenvolveu duas propostas de impacto – uma para já, outra para o país que será preciso construir, passado o túnel de horrores da pandemia.
No plano imediato, ele crê que o país só escapará de uma grande crise humanitária se a sociedade for capaz de, diante da tragédia, reverter as políticas que estrangulam o SUS desde a Emenda Constitucional 95, que congelou o gasto social por vinte anos. A Casa Grande, frisa Fagnani, sabota o Sistema Único de Saúde desde sua instituição. Agora, faltam respiradores, máscaras, UTIs, médicos, equipes de Saúde da Família. Nas periferias, as condições de isolamento social são reduzidas. Sem uma reviravolta dramática, haverá devastação. Mas como evitar que o trem descarrilhado, com o capitão à frente, mantenha a marcha ao abismo? Assim com nós, Fagnani não sabe.
Por isso, ele está de olho também no pós-crise, no país que será preciso reconstruir depois de passado o caos. A normalidade não voltará. Dois cenários já se desenham. O primeiro é a repetição piorada da crise de 2008. Os Estados resgatam os bancos e a oligarquia financeira. Esta, tão logo vê-se a salvo, apaga o passado (com o prestimoso auxílio da mídia) e passa a exigir o “aperto dos cintos”, as medidas de “austeridade” que eliminam direitos sociais e serviços públicos.
O segundo cenário é o que Fagnani chama de “reconstrução do Estado Social brasileiro”. Devastado após a pandemia, o país reúne forças para refletir sobre si mesmo e sacudir as estruturas que produzem desigualdade, alienação, predação brutal da natureza. É uma revolução, algo só possível com mudança radical da consciência das maiorias e da correlação de forças. Hoje, parece distante. Mas as crises colocam as velhas ideias em xeque – e algumas pré-condições parecem lentamente fermentar. Muitos já nos demos conta, por exemplo, de que ressurgem, em falas e textos, o questionamento das lógicas do capital e as ideias perigosas…
Fagnani trabalha por elas. Há um ano, ele articulou, a partir da Rede Política Social e outras entidades, uma proposta alternativa de Reforma Tributária que está em debate inclusive no Congresso – embora ocultada pela mídia comercial. Na semana passada, diante do espectro do coronavírus, deu-se um passo adiante. Surgiu o documento Tributar os Ricos para Enfrentar a Crise, que propõe um conjunto de mudanças fiscais imediatas contra a pandemia. O fim da isenção de impostos para ganhos com dividendos permitirá… tributar as famílias bilionárias que recebem o grosso dos lucros estratosféricos dos bancos. Uma grade mais sofisticada de alíquotas do Imposto de Renda das Pessoas Físicas levará o 0,1% – que no Brasil tem rendimentos médio de R$ 216 mil! – a contribuir mais que os assalariados que recebem salários de R$ 6 mil. Impostos extraordinários devem distribuir, em favor da Saúde e dos serviços públicos, parte da imensa riqueza acumulada pelas instituições financeiras ou pelos exportadores de minérios e commodities agrícolas. O conjunto de propostas é mais amplo e detalhado. A leitura é um ótimo programa para a quarentena.