Fernando Nogueira da Costa* | No Brasil Debate
O segredo do negócio capitalista é dar escala ao investimento e multiplicar sua rentabilidade com a alavancagem financeira. Este é termo usado para designar a obtenção de recursos de terceiros, somando-os aos recursos próprios, e fornecer uma composição passiva capaz de lastrear maiores valores nos ativos do empreendimento.
Pode-se formular os seguintes indicadores da alavancagem financeira:
- a utilização de recursos provenientes de terceiros na composição da estrutura do capital de uma empresa, objetivando obter economia de escala:
[R3º / (R3º + RP) ou R3º / PT] onde R3º significa Recursos de Terceiros, RP, Recursos Próprios, e PT, Passivo Total; - a compra de títulos e/ou bens com recursos de terceiros (R3º / AT), onde AT são Ativos Totais, iguais aos Passivos Totais (PT);
- a participação percentual dos empréstimos contraídos em relação à estrutura de capital da empresa (P3º / PL), onde PL é Patrimônio Líquido (Capital + Reservas).
Gosto de dar um exemplo simples. Caso você tenha 100 mil reais para investir em algum ativo (forma de manutenção de riqueza) com firme tendência de alta, por exemplo, 25% a cada dois anos, você aplica o seu dinheiro para o comprar ainda barato e vender mais caro no fim desse período. Você ganha R$ 25 mil apenas com esse capital inicial.
Com recursos de terceiros, isto é, dos outros depositados em bancos, em vez de investir 100 mil reais, você pode fazer um investimento de 400 mil reais. Você toma emprestados os 300 mil reais restantes de um banco. Após dois anos, com a mesma valorização de 25%, você o vende por 500 mil reais. Aí amortiza o empréstimo ao banco e sai do negócio com aproximadamente 200 mil reais, descontados os juros.
Em vez de ganhar meros 25%, você dobrou o seu dinheiro ao usar o dinheiro dos outros. Teria rentabilidade de 100% sobre o capital inicial em caso de juro zero. O limite do juro a ser pago tem de ser inferior à rentabilidade patrimonial inicial (25%) para valer a pena.
No capitalismo de compadrio brasileiro, as concessionárias de serviços de utilidade pública obtinham empréstimos de bancos públicos com juros abaixo do custo de empréstimos com recursos livres. Tinham longos prazos de carência e pagamento, justamente para obter uma taxa de retorno alavancada.
Como o crédito cria poder de compra em troca de uma promessa de pagamento, isto é, dívida, o crédito é desejável se o dinheiro emprestado for usado produtivamente de modo a gerar renda suficiente para pagar a dívida. Se essa boa alocação ocorrer, tanto o credor quanto o mutuário serão beneficiados. Se isso não ocorrer, talvez por o devedor ter alocado o empréstimo em uma especulação com esperada tendência de alta, mas afinal não confirmada, esse mutuário poderá ficar inadimplente e o credor negativar seu cadastro ou mesmo reclamar sua falência.
No caso de um investimento em infraestrutura, por exemplo, a aquisição de concessão para administração de uma rodovia federal com a condição de sua duplicação para fazer cobrança de pedágios, se a concessionária o financia com dívidas é porque espera receber de volta uma receita para pagá-la. Mas, e se a economia entra em um ciclo recessivo inesperado e apenas a metade das receitas esperadas se confirma? Ela se tornaria incapaz de duplicar a estrada? A dívida teria de ser reduzida em 50%?
Reformulada, a questão é se a duplicação da estrada vale metade a mais em lugar do orçado inicialmente. Grosso modo, vale mais cerca de 2% ao ano, durante uma vida útil de 25 anos, em vez do orçado inicialmente? Em termos anuais, o gestor pode avaliar ter a estrada duplicada a esse custo ser melhor em lugar de não ter essa infraestrutura.
Para se ter uma ideia do significado disso para uma economia como um todo, suponha as perdas com dívidas incobráveis serem cerca de 50% em cada calote. Se esses empréstimos impossibilitados de serem pagos representarem cerca de 20% de todos os empréstimos pendentes, essas perdas equivaleriam a cerca de 10% da dívida total. Se o crédito ampliado ao setor não-financeiro, em dezembro de 2018, equivalia a cerca de 138% da renda (PIB), no exemplo, a diferença seria aproximadamente 14% do PIB.
Se esse custo fosse “socializado”, isto é, suportado pela sociedade como um todo por meio de políticas fiscais e monetárias e distribuído ao longo de quatro mandatos governamentais, isso equivaleria a quase 1% do PIB ao ano, o crescimento médio anual no atual triênio. Se não forem justamente distribuídos, os custos seriam intoleráveis.
Por essa razão, Ray Dalio, no livro “Big Debt Crises” (Bridgewater; sept 2018), afirma os riscos econômicos e políticos dependerem muito de disposição e capacidade dos formuladores de políticas econômicas para disseminar as perdas decorrentes de dívidas incobráveis. Depende de dois fatores eles poderem fazer isso: o percentual da dívida em moeda nacional e a influência deles sobre o refinanciamento das dívidas.
O ciclo afeta a psicologia dos agentes econômicos de modo a resultar em uma economia de mercado com bolhas: série de boom e crashes. Durante uma tendência firme de alta nas cotações dos ativos, os credores ficam pouco exigentes para contratarem crédito junto a devedores. Isto porque as recompensas esperadas em juros com o crescimento mais rápido da renda parecem justificá-lo. No resto do mundo, é politicamente mais fácil oferecer “dinheiro barato” em vez de ter o crédito apertado. Essa é a principal razão pela qual existem grandes ciclos de endividamento na economia mundial.
Cria-se um ciclo sempre quando predominar a concessão de dinheiro emprestado. Comprar algo sem poder pagar de imediato com renda recebida ou capital próprio significa gastar mais além do potencialmente ganho. Nesse caso, não se está apenas pedindo crédito ao emprestador, na verdade, o devedor está tomando emprestado do seu futuro. Por isso, endividamento pode ser encarado como a antecipação de esperados rendimentos futuros. Se forem confirmados, tudo bem; se, pelo contrário, for frustrado um ganho especulativo de capital, haverá necessidade de ajuste, seja fiscal (nas finanças públicas), seja pessoal (nas finanças domésticas).
O tomador de empréstimo estará comprometendo um tempo de sacrifício no futuro, quando precisará gastar menos do potencial ganho, para poder pagá-lo de volta. Logo, configura-se um ciclo de endividamento, quando se gasta no presente mais além do ganho e, depois, gasta-se abaixo do padrão de gastos possível com a renda esperada. Isso é tão verdadeiro para um indivíduo quanto para uma economia nacional.
Emprestar dinheiro coloca em movimento uma série de eventos previsíveis. No início do ciclo de crédito, os agentes têm muito dinheiro face às poucas propriedades existentes. Por isso, vale a pena converter seu dinheiro nesses ativos com cotação em alta. Quando os especuladores adquirirem cada vez mais ativos, seja imobiliário, seja financeiro (como ações), com base em empréstimos, será necessário depois mais dinheiro para pagar os juros e as amortizações. Alguns serão forçados a vender suas propriedades (desmobilizar) a preços com desconto (descapitalização) para levantar esse dinheiro.
No início do jogo especulativo, “a propriedade reina”; mais adiante, “o dinheiro reina”. Quem joga melhor entende a necessidade de balancear periodicamente para manter a seleção de ativos certa de propriedade (ativos imobilizados), fundos e títulos e valores mobiliários (ativos financeiros) e dinheiro (ativos monetários líquidos) ao longo do ciclo.
Enquanto os especuladores pedem dinheiro emprestado para comprar uma propriedade, os protegidos, em vez de ficarem com depósitos à vista, investem para ganhar juros. Esses depósitos a prazo são passivos capazes de permitirem aos bancos lastrearem seus empréstimos. O sistema bancário multiplica o dinheiro existente, mas apenas até o ponto quando os investidores em propriedades ficam imobilizados e com necessidade de capital de giro para pagar seus empregados ou seus credores.
Se mais e mais devedores ficam atrasados em seus pagamentos e nada for feito para o governo intervir no problema sistêmico, tanto os bancos quanto os devedores poderão falir – e a economia se contrair. Se esses ciclos de expansão e contração ocorrerem, repetidamente, são criadas as condições para uma Crise de Grande Dívida. Em geral, tem resolução com um processo lento e gradual de desalavancagem financeira.
Emprestar naturalmente cria movimentos ascendentes auto reforçadores de alta de preços dos ativos. Os empréstimos baseiam-se na expectativa de seguir uma tendência de alta indefinidamente. Mas os desconfiados dessa possibilidade vão se avolumando até predominar uma reversão geral de expectativas. É quando os rendimentos ou os ganhos de capital ficam abaixo do custo dos empréstimos. O ciclo acaba se invertendo em movimentos descendentes com retroalimentação. Passa-se da euforia do ganho fácil para o pânico de todos devedores venderem rapidamente, ao mesmo tempo, para cumprir os compromissos contratuais. A manada estoura – e há apenas uma porteira!
Vale, por fim, o contraste entre a China com a relação dívida/PIB de 244% e o crédito ampliado ao setor não financeiro no Brasil correspondente a 138% do PIB ou R$ 9,4 trilhões em dezembro de 2018. O PIB chinês era US$ 14,941 trilhões. Em dólares, o PIB brasileiro atingia US$ 1,8 trilhão. Verifica-se, então, como o capitalismo de Estado chinês soube usar bem o instrumento da alavancagem financeira para criar sua infraestrutura. O capitalismo de compadrio brasileiro não aprendeu a superar o samba de uma nota só: austeridade... Quando varia o tom, é a ladainha do mito: reforma da Previdência. Já deu!
As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.
* Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..