Fernando Nogueira da Costa* | No GGN

Li uma “frase esperta” não me lembro onde: “Tentar analisar o capitalismo e
deixar de lado bancos, dívidas e dinheiro é como tentar analisar voos de pássaros e ignorar eles terem asas. Boa sorte!

Alguns autores da literatura de “financeirização” consideram o capital financeiro como improdutivo. Por definição, se restringe à circulação e à troca de propriedades privadas. Por isso, desejam cindi-lo do capitalismo! Ora, o capital-dinheiro é acumulado previamente e daí contrata a força do trabalho despossuída e/ou livre para se vender, criando a relação de produção capitalista. O capitalismo é um sistema financeiro complexo com múltiplos componentes interagindo, entre outros, capital e dívida.

Joseph Schumpeter destaca, no capitalismo, seus componentes inovação (“destruição criadora”), empreendedorismo e crédito. O inovador, muitas vezes, necessita usar dinheiro de outras pessoas em benefício próprio. Ao conseguir associados (e capital), para executar seu projeto, seu ganho de fundador é obter uma participação acionária com divisão de lucros ou prejuízos – e comandar a gestão. Sendo bem-sucedido, além de receber dividendos, devido aos direitos de propriedade, os sócios podem fazer a abertura de capital: uma oferta pública inicial (IPO) de parte minoritária do capital social com cotação atribuída por mercado de ações. O próximo passo é tomar dinheiro emprestado para fusões e aquisições de concorrentes. Com a elevação do valor de mercado da empresa-holding, há enriquecimento de todos os sócios.

Crédito é acreditar. Conceder confiança quanto a uma antecipação do poder de compra a ser recebido no futuro. Quando é usado para gerar renda, o retorno alavancado do projeto terá de superar os juros para compensar o risco do contrato mútuo estabelecido entre mutuante e mutuário. Se for usado para ganho de capital, a aposta é na manutenção de tendência firme de alta de preço. Aí funciona a “regra de ouro” do comércio: comprar mais barato com a expectativa de revender mais caro.

Quando o cenário futuro consensual é de haver uma tendência firme de alta nas cotações dos ativos, os credores ficam menos exigentes de garantias na concessão de crédito, porque a circunstância é de valorização do colateral no mercado. A recompensa esperada pelo credor é o recebimento dos juros. Estaria supostamente garantido, devido ao crescimento maior da renda do devedor.  A conjuntura, então, é de “dinheiro farto e barato” em vez de “crédito apertado”. Dessa forma há a geração de grandes ciclos de endividamento na economia de mercado capitalista.

O ciclo se inicia com a concessão de crédito para o devedor comprar algo por conta de o credor antecipar seu possível ganho. O devedor toma emprestado do futuro. Tudo bem, se os rendimentos esperados se confirmarem. Se forem frustrados, no caso do setor público, haverá provavelmente um ajuste fiscal, e no caso do setor privado, espera-se uma desalavancagem empresarial e pessoal, isto é, um esforço profundo para diminuir o grau de endividamento em certo prazo.

O tomador de empréstimo se compromete com um tempo de sacrifício futuro. O devedor deverá gastar menos do seu potencial poder de compra, para pagar o crédito. Em um ciclo de endividamento se gasta no presente mais além do recebido em renda, mas depois se gasta abaixo do possível se a renda esperada for confirmada. Isto é verdade para indivíduos ou empresas, mas um Estado soberano não pode ser confundido com essa postura protegida ou prudencial. Em geral, ele faz a rolagem (ou refinanciamento) da dívida pública, afinal, títulos de dívida pública oferecem risco soberano. Um Estado com poder de emissão de moeda de curso forçado não quebra.

No início do ciclo de crédito, agentes obtém mais dinheiro face às propriedades existentes. Se o preço de oferta, isto é, o custo de produzir ativos novos, é superado pelo preço de demanda, ou seja, o valor de mercado dos ativos usados, há incentivo para produzir, empregando gente e gerando renda. Porém, poderá haver preferência por obter dinheiro de maneira mais fácil com a conversão do dinheiro em ativos já existentes com cotação em alta firme. Os especuladores adquirem esses ativos imobiliários e acionários com empréstimos. Depois, será necessário mais dinheiro para pagar juros e amortizações. Se não o tiver, terá de vender propriedades por preço com desconto para levantar o dinheiro.

No início da especulação, “a propriedade reina”; no fim, “o dinheiro reina”. Há necessidade de o investidor balancear, ao longo do ciclo, sua carteira de ativos entre imobilizados, financeiros e líquidos. Os agentes econômicos especuladores solicitam crédito para comprar ativos; os protegidos investem para ganhar juros. Seus depósitos a prazo constituem passivos para lastro do crédito. Os investidores com dinheiro imobilizado em propriedades ou construções têm necessidade de empréstimos bancários de capital de giro para pagar seus funcionários e fornecedores.

Empréstimos criam movimento ascendente e auto reforçador de alta de preços dos ativos existentes. Os devedores se baseiam na expectativa de seguir uma tendência firme de alta. Se houver uma reversão geral de expectativas, quando rendimentos ou ganhos de capital ficarem abaixo do custo dos empréstimos, o ciclo se inverte em movimento descendente com retroalimentação mais rápida. Passa-se, rapidamente, da euforia para o pânico, se todos os devedores venderem ao mesmo tempo para pagar contratos, ou seja, o compromisso contratual é certo por conta de penalidades, inclusive falência, enquanto a receita é incerta.

Se mais e mais devedores atrasam seus pagamentos se gera um risco sistêmico. Nessa conjuntura, os próprios empresários neoliberais solicitam ao governo intervir no “livre-mercado”, quando devedores e credores podem falir e a economia entrar em colapso.

Se esses ciclos de expansão e contração ocorrerem, repetidamente, em sequência contínua, são criadas as condições para a detonação da Crise de Grande Dívida. Sua resolução se dá com um processo lento e gradual de Desalavancagem Financeira.

O desempenho médio anual da economia brasileiro nos séculos XX e XXI, isto é, de 1901 a 2018, foi de 4,4% ao ano. Nas quatro primeiras décadas, o PIB real ficou em torno dessa taxa. A partir da II Guerra Mundial, nas quatro décadas seguintes, essa média passou para 7,1% aa. Então, em 1980, findou a Era Desenvolvimentista e se iniciou a Era Neoliberal, a taxa média anual de crescimento do PIB real baixou para 2,1% aa. Pior, nas década dos 80’s houve queda absoluta da renda per capita (-0,5% aa), assim como na atual década (-0,3% aa). Nos anos 90, seu crescimento foi de apenas 0,9% aa. Na primeira década do século XXI, a renda per capita cresceu 2,5% aa.

Em sua defesa, os neoliberais alegam 1.525% ter sido a média da inflação em três anos até 1990, a maior alta da série temporal desde o início do século XX. A menor da série iniciada em 1912 foi a deflação de -4,5% em três anos até 1931, ou seja, durante a Grande Depressão após 1929. A seguir esse argumento, a média trienal de 3,5% aa até 2019 seria fruto da Grande Depressão de 2015 e 2016. Os neoliberais priorizam a todo custo (social) o combate ao risco da “eutanásia dos rentistas”, isto é, a taxa de inflação superar a taxa de juro prefixada dos investimentos financeiros.

Eles criticam o “dinheiro de helicóptero”, lançado por desembolsos do BNDES: R$ 1,450 trilhão (em reais constantes de 2018) de 2009 a 2014. Sua atuação anticíclica, nesse período, irrigou com crédito direcionado para infraestrutura em torno de R$ 88 bilhões ao ano, enquanto no ano corrente até setembro se restringiu a apenas R$ 17 bilhões.

Cerca de R$ 105 bilhões foram disponibilizados para o programa habitacional MCMV entre 2009 e 2018, cerca de 16 milhões de pessoas foram beneficiadas com as 4 milhões unidades habitacionais entregues. Foram gerados 1,2 milhão de empregos, sendo 775 mil postos diretos nas obras. E o subsídio do Tesouro Nacional foi pago com R$ 163 bilhões arrecadados por toda a cadeia produtiva no período.

Apesar desse bom resultado em termos de emprego e renda per capita, os neoliberais criticam o denominado por eles de “Capitalismo de Compadrio”: a atuação anticíclica de bancos públicos com crédito direcionado mais barato em longo prazo para os investidores obterem uma taxa de retorno alavancada nos empreendimentos. Colocam a idealizada “competição pura” acima de tudo.

O bloco de investimentos em infraestrutura foi interrompido em 2015, de modo inesperado pela maioria dos eleitores, por um ciclo recessivo causado pela nomeação de um economista neoliberal como ministro da Fazenda. Provocou sucessivos choques: fiscal-tarifário, inflacionário, cambial e de juros. Caso tivesse havido queda de metade das receitas esperadas, a administração pública pragmática teria de refletir. Uma obra pública prioritária não vale ½ a mais, 2% aa durante uma concessão de 25 anos? É importante o gestor considerar o custo de oportunidade de não ter infraestrutura.

Na hipótese de 20% dos empréstimos terem ficado inadimplentes em 50%, as perdas seriam 10% da dívida com crédito direcionado. Este representava cerca de 1/2 do total de 54% do PIB no auge (2015). Isso levaria à uma socialização da perda de 2,7% do PIB ou um custo socializado de 0,7% do PIB ao ano durante um mandato de 4 anos. Seria um custo intolerável para uma concessionária, mas suportável pela sociedade.

Ciclos de booms e crashes é próprio da economia de mercado capitalista. Cabe ao gestor público disseminar com justiça social as perdas com dívidas. Uma desalavancagem financeira com o maior percentual da dívida em moeda nacional é deflacionária à brasileira, enquanto em moeda estrangeira provoca uma desalavancagem inflacionária com risco de hiperinflação, devido à fuga para a dolarização à argentina. O bom gestor, se for desenvolvimentista, saberá avaliar melhor os riscos socioeconômicos e políticos com refinanciamentos ao longo do tempo, enquanto providencia a prioritária retomada do crescimento da renda e do emprego, inclusive para diminuir a relação dívida / PIB.

Uma evidência do planejamento indicativo ser melhor é a seguinte: em dezembro de 2018, a relação Crédito Amplo / PIB na China foi 244%, enquanto no Brasil atingiu 138%: R$ 9,4 trilhões, considerando dívidas pública, privada, externa e com mercado de capitais. Mas o PIB chinês atingiu US$ 14,9 trilhões, enquanto o PIB brasileiro caiu para US$ 1,8 trilhão.

O Capitalismo de Estado chinês soube usar bem o instrumento de alavancagem financeira para expandir sua infraestrutura. O Capitalismo de Compadrio brasileiro, administrado por adeptos da competição pura, livre-mercado ou “laissez-faire”, não sabe superar “o samba de uma nota só”: a austeridade fiscal recessiva.

As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.

 

* Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.