MÍDIA

Marcelo Weishaupt Proni e Dinael Corrêa de Campos | Na Carta Maior

Falando abertamente, não há como negar que no Brasil, hoje, convivemos com múltiplas crises: sanitária, econômica, social, política, diplomática, institucional, moral, na segurança pública, ambiental. Como a maioria das pessoas que deveriam explicar as causas e encontrar respostas para essas questões não se entende, as soluções propostas para esses problemas complexos são divergentes ou contraditórias, dando a sensação predominante de que estamos vivendo em um... caos.

Não parece ser exagerado afirmar que a sociedade brasileira está vivendo uma situação caótica. Completamente caótica. A percepção generalizada é de descontrole, desgoverno.

A pandemia da Covid-19 colocou em evidência os pontos fortes e as fragilidades do nosso sistema de saúde pública. O número crescente de pessoas contaminadas e a estatística de mortes causadas pelo coronavírus são indicadores que confirmam a gravidade e a extensão do problema, mas não expressam o desespero das famílias atingidas e o sofrimento cotidiano dos profissionais de saúde, nem o sentimento de vulnerabilidade diante de uma calamidade pública silenciosa. E é esse silêncio que não podemos deixar que ocupe um espaço cada vez maior em nossa sociedade.

A economia está em depressão. Ou seja, não se trata de uma recessão grave, como ocorreu em 2015-2016. É bem mais grave em vários aspectos. Estima-se que, em 2020, haverá retração do PIB superior a 6% e queda de mais de 5% no consumo das famílias. Já foi constatado o fechamento de mais de 700 mil pequenos negócios (dados de julho de 2020), alguns ramos de atividade entraram em colapso (por exemplo, hospedagem, lazer, academias de ginástica), aumentou a inadimplência e muitos investimentos do setor privado estão sendo adiados.

O desemprego altíssimo (mais 13 milhões de desempregados), o desalento recorde (mais de 5 milhões de pessoas que gostariam de trabalhar, mas sequer procuraram trabalho por saberem ser inútil), o subemprego elevado (12 milhões de pessoas trabalhando menos horas do que gostariam) e a redução drástica da renda mensal de amplos setores da população produziram uma crise social sem precedentes. A situação só não se tornou explosiva porque o governo federal criou um auxílio emergencial (não tão emergencial assim), para socorrer os trabalhadores atingidos pela crise econômica, com potencial de abranger mais de 65 milhões de pessoas. Dificuldades de cadastramento no programa causaram muitas reclamações (e ainda causam, mesmo depois de 3 meses de ser lançado). E há o receio de que o programa seja encerrado antes que a crise seja superada.

A democracia está em perigo. A maioria dos eleitores não se sente representada pelos partidos políticos existentes, principalmente por causa do fisiologismo (um velho problema no Brasil é a atuação de representantes eleitos visando à satisfação de interesses pessoais ou partidários, em detrimento do bem comum). O presidente da República (sem partido) pensa ter legitimidade para fazer e desfazer, sem prestar contas à sociedade, numa clara demonstração narcísica e falta de empatia. O debate público foi distorcido e invalidado pela divulgação sistemática de fake news. O Congresso Nacional age como um mercado de negócios nos remetendo à máxima dos vendilhões no templo... A violação corriqueira de direitos civis e de direitos sociais enfraquece o exercício da cidadania. O autoritarismo prevalece, inclusive, na discussão do enfrentamento da pandemia.

No âmbito das relações exteriores, uma série de atritos diplomáticos foram se acumulando. Nunca o Brasil teve uma imagem internacional tão desgastada. Diante da subordinação completa aos ditames do governo Trump e da incapacidade de defender interesses nacionais, as críticas à política externa se avolumaram. A omissão no combate ao desmatamento na Amazônia resultou em reações da opinião pública internacional, prejudicando a exportação de produtos agropecuários. Declarações pejorativas de ministros e de um deputado federal contra o governo chinês colocaram em risco a relação com o principal parceiro comercial do País.

As instituições públicas estão desacreditadas. O sistema de justiça é visto como seletivo, ineficiente e injusto. A polícia parece perseguir apenas uma parcela “perigosa” de jovens das periferias. As políticas públicas estão sendo desmontadas ou se tornam inoperantes. Os funcionários públicos são tidos como privilegiados e são acusados de incompetência e corporativismo. As universidades federais e estaduais estão sendo financeiramente estranguladas. A exceção é o SUS, que vinha sendo depreciado até o início da pandemia, mas agora voltou a ser valorizado pela população e pelos meios de comunicação.

A educação atravessa uma crise de identidade. Não se trata apenas do problema crucial relativo ao financiamento do sistema público de ensino, recentemente assegurado com a aprovação do novo Fundeb. É a própria função da escola que está sendo questionada. Educar para quê? Qual o papel dos educadores? Quais valores devem orientar a formação dos cidadãos? Estudar para quê? O ensino à distância é uma tendência inevitável? A escola pública é para todas as classes sociais ou só para os pobres? A universidade pública deve cobrar mensalidades ou deve ser gratuita e ter um sistema de cotas?

Além disso, há o dilema da educação informal. Qual a importância da Ciência para a sociedade brasileira? As crenças religiosas podem ser colocadas acima do conhecimento científico e do pensamento racional? Quais modelos de conduta cívica e comportamento ético devem prevalecer? Quais ídolos nacionais podem ser considerados como modelos para os jovens? O que os líderes políticos, empresariais e religiosos ensinam com suas palavras e atos? Aliás, qual o conceito de líder que tais personagens propagam? São tantas as indagações e ambiguidades, que alguns comentaristas afirmam haver indícios de uma crise de ordem moral.

No âmbito da (in)segurança pública a sensação que predomina é a de desproteção e impotência diante dos altos níveis de violência urbana e de violência no campo. A incapacidade da polícia civil de investigar e solucionar a maioria dos crimes contra a população mais carente soma-se à impunidade de parcela dos policiais militares que excedem no uso da força e transgridem as leis. As milícias concorrem com o crime organizado pelo controle de comunidades pobres nas grandes cidades. Aldeias indígenas e acampamentos de trabalhadores sem terra são atacados frequentemente por posseiros e jagunços, em pleno século XXI. Ao mesmo tempo que muitos precisam enfrentar o desrespeito cotidiano aos direitos humanos mais básicos ou precisam encarar o medo de balas perdidas, aumenta a demanda pela proteção fornecida por empresas de segurança privada. E o que dizer dos feminicídios e das mortes de pessoas LGBT , cujos registros se multiplicam em meio à indiferença? A intolerância está cada vez mais forte e é inadmissível dizer que “vivemos em sociedade” se não toleramos as diferenças, se excluímos os fracassados, se discriminamos pessoas em razão da opção sexual e da visão de mundo.

Finalmente, há sinais inequívocos de agravamento da destruição do meio ambiente no Brasil. Todos os indicadores indicam uma situação catastrófica nos últimos dois anos. A proposital desmobilização dos órgãos de fiscalização sugere haver um incentivo governamental ao desmatamento, à invasão de terras indígenas e à violação de áreas de reserva ambiental, justificados em nome do “progresso a qualquer preço”. Em paralelo, a impunidade dos responsáveis por desastres ambientais, como no caso das barragens de Mariana e Brumadinho, confirma o descaso do Estado com o tema do desenvolvimento sustentável. Os problemas ambientais afetam diretamente as populações mais pobres que vivem nas áreas atingidas, mas ameaçam causar danos irreversíveis para toda a população, inclusive aquela que vive em grandes centros urbanos.

Portanto, não se pode negar que há hoje, no Brasil, múltiplas crises. Mas, elas não atingem de modo uniforme o conjunto da sociedade. Alguns segmentos sociais estão mais vulneráveis à crise econômica, outros se preocupam mais com o avanço da pandemia, uma parcela está mais exposta à violência urbana, outra é vítima de intolerância e discriminação. Certamente, os grupos mais vulneráveis são aqueles atingidos direta e simultaneamente por diferentes dimensões da crise nacional.

As percepções do caos são subjetivas e muito variadas. A própria palavra pode ser usada com diferentes significados.

Na mitologia grega, Caos é o primeiro deus primordial a surgir no universo, um deus andrógino, uma força sem forma ou aparência, que gera movimento e expansão por meio de cisão e separação. Pode ser descrito, também, como uma manifestação da consciência divina, cuja função destrutiva ou desorganizadora se opõe a (e complementa) Eros, a força de junção e união. Portanto, Caos é parte essencial da Criação, uma vez que a Criação pressupõe o equilíbrio entre Caos e Eros, não havendo prevalência de um sobre o outro.

Contudo, com o passar do tempo, o significado mítico e divino de Caos foi esquecido, e a palavra "caos" ganhou novos significados: desordem, confusão, anarquia, transtorno. Assim, muitas pessoas falam em caos quando veem o mundo de cabeça para baixo, o que dificulta o entendimento dos problemas e a solução de conflitos, amplia a insegurança e o medo, impede a conciliação de interesses coletivos.

Em uma sociedade como a nossa, na qual as diversas forças que descrevemos acima se contrapõem aos interesses da coletividade, há a perpetuação do Caos como uma desordem persistente, enquanto Eros fica relegado ao esquecimento. Temos observado que cada vez mais o homem contemporâneo refugia-se em seu caos interior, à medida que se identifica com o caos externo a si. Não estamos presenciando a criação de novas oportunidades para homens e mulheres evoluírem. Ao contrário, estamos afundando gradativamente no que podemos chamar de “narcisismo epidêmico” (ou “epidemia de narcisismo”). E compreender esse fenômeno é importante porque, no longo prazo, nossa sociedade sofrerá com a destruição progressiva de seus valores essenciais.

Por certo, atualmente, nossa sociedade tem privilegiado apenas a vertente destrutiva do caos, relegando ou ignorando as forças de coesão e as possibilidades de transformação. Tal comportamento decorre, em grande medida, da “cultura do narcisismo”. Cremos que esteja na hora de reavaliar nossa necessidade de autoadmiração exacerbada, a busca incessante pela glorificação e o crescente medo da insignificância.

O desconhecimento de nosso destino pode gerar distintas ações e reações. Podemos tentar defender os privilégios existentes e evitar perdas indesejadas. Podemos lutar por uma mudança significativa na distribuição do poder e por justiça social. Podemos acreditar em velhos ensinamentos ou questionar os dogmas dominantes. Por isso, é difícil prever o que acontecerá no período pós-pandemia, quando superarmos a crise sanitária, ainda que não definitivamente. Sabemos que as demais crises já estavam se manifestando antes da Covid-19, e tudo indica que suas causas não estão sendo dissipadas.

Neste momento, parece haver três perigos pela frente. O primeiro é que o caos seja usado para confundir as narrativas, atemorizar as pessoas, desmoralizar instituições. E que, para restaurar a ordem perdida seja instaurado um regime autoritário, o que implicaria em acabar com o que resta da democracia liberal no País e censurar qualquer diagnóstico não oficial sobre os problemas que afetam a população.

O segundo perigo é a continuidade de ações irresponsáveis, causadas não por ignorância e sim por arrogância, que leva muitas pessoas (principalmente entre os líderes) a recusarem qualquer autocrítica e menosprezarem a gravidade da situação caótica, seja por causa da falta de empatia ou preocupação com o sofrimento dos outros, seja por causa da ilusão de que os problemas não são urgentes ou não vão nos alcançar.

O terceiro perigo é que tudo volte a ser como era antes, que tudo volte ao “normal”. Porque a normalidade era a brutal desigualdade de renda, a enorme vulnerabilidade social, a instabilidade econômica crônica, a destruição progressiva do meio ambiente. Uma realidade distorcida pela corrosão dos valores culturais que deveriam ser o alicerce de uma sociedade civilizada.

Precisamos vislumbrar caminhos para a superação dessas múltiplas crises e para curar essa patologia social epidêmica. Talvez seja possível aproveitar o próprio caos para desconstruir a racionalidade neoliberal e ridicularizar o discurso fascista. E para destruir o narcisismo exacerbado. Talvez seja possível iniciarmos a transformação social praticando o altruísmo e fazendo reviver a solidariedade. Embora muitos pessimistas advoguem que seja tarde para a humanidade buscar uma consciência mais elevada (politizada e espiritualizada), acreditamos que não. Afinal, a essência do Caos é romper equilíbrios para provocar movimento e expansão. Então, que seja um movimento rumo à consciência de que podemos ser melhores, resgatando a dignidade humana, a força de Eros, o sentimento de comunidade. E que possamos viver em uma sociedade justa, em vez de sobreviver em uma sociedade caótica.

Certamente, há um longo caminho a percorrer. Precisamos de resiliência e perseverança. Os desafios são inúmeros. Portanto, necessitamos de união para somar esforços e reforçar nossa capacidade de enfrentar as crises e ameaças atuais. Somos todos responsáveis pelo nosso destino em comum.

Marcelo Weishaupt Proni é economista e docente do Instituto de Economia da UNICAMP.

Dinael Corrêa de Campos é psicólogo e docente da Faculdade de Ciências da UNESP-Bauru.