Marco Weissheimer | No Sul21
A agenda econômica adotada pelo governo de Jair Bolsonaro está recuperando o velho neoliberalismo de uma maneira tosca, depois de o mundo já ter passado por uma crise desse modelo e ter aprendido com ela. “Nós vivemos a nossa crise do neoliberalismo na década de 90. O México em 95, a Ásia em 97, a Rússia em 98, o Brasil em 99, a Argentina em 2001. Depois disso, de alguma forma, procuramos nos proteger. Agora, estamos retomando uma radicalidade neoliberal, típica do início do processo, como se nós não tivéssemos aprendido nada”, avalia o economista Pedro Rossi, professor do Instituto de Economia da Unicamp. Rossi esteve em Porto Alegre na semana passada participando do Seminário Reformas Desestruturantes do Estado de Bem-Estar Social, promovido pelo Instituo justiça Fiscal (IJF), pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) e pela Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco).
O pesquisador é um crítico do diagnóstico que embala essa restauração neoliberal, a saber, que o Brasil teria um excesso de gastos públicos e um excesso de intervenção do Estado na economia. “Em cima desse diagnóstico errado, tem sido feitas reformas que prometem o crescimento econômico, mas não entregam esse crescimento. O empresário não vai investir porque o governo fez ajuste fiscal ou fez a Reforma da Previdência. O empresário vai investir quando tiver demanda e expectativas de lucro. E isso não acontece porque a população não tem renda, está desempregada”, afirma Pedro Rossi em entrevista ao Sul21. Para ele, o gargalo a ser enfrentado é outro. “O problema fiscal brasileiro decorre do arranjo macroeconômico e do tripé macroeconômico (regime de câmbio flutuante, metas de inflação e meta fiscal)”.
Sul21: Como você definiria a situação atual da economia brasileira?
Pedro Rossi: Nós vivemos uma crise crônica que vem desde 2015, quando a economia sofreu um grande baque com uma forte redução da demanda e uma queda da renda que se repetiu em 2016. Descemos uma ladeira. Em 2016, 2017 e 2018, a economia não reage no sentido de recuperar o que a gente tinha antes como patamar de renda. Ou seja, estamos em plena depressão. Não recuperamos aquilo que tínhamos em 2014. Precisamos de alguns anos de crescimento para retomar aquele patamar. O brasileiro hoje está mais pobre do que era há cinco anos. E nós temos um diagnóstico do problema que, ao meu ver, é um diagnóstico errado, o que faz com que não enfrentemos aquilo que seria a solução do problema.
Sul21: Que erro de diagnóstico é esse?
Pedro Rossi: O diagnóstico errado é afirmar que o Brasil tem um excesso de gastos públicos e que há um excesso de intervenção do Estado na economia. Em cima desse diagnóstico errado, na minha opinião, tem sido feitas reformas que prometem o crescimento econômico, mas não entregam esse crescimento. As reformas todas que foram feitas, assim como a Reforma da Previdência agora, prometiam crescimento, melhora na confiança e na geração de emprego no curto prazo. Em 2016, quando foi aprovada a Emenda Constitucional 95, se dizia também que haveria uma retomada da confiança e do emprego, o que não aconteceu. Com a Reforma Trabalhista aconteceu a mesma coisa. Se dizia que haveria uma retomada da geração de emprego por conta das melhores normas no mercado de trabalho, o que não se tornou realidade.
O motivo é simples. O empresário não vai investir porque o governo fez ajuste fiscal ou fez a Reforma da Previdência. O empresário vai investir quando tiver demanda e expectativas de lucro. E isso não acontece porque a população não tem renda, está desempregada. Qual seria a alternativa a essas reformas? Seria um plano efetivo de geração de emprego e renda no Brasil, que retomasse o investimento do empresário também. Para isso, o que é preciso não é menos gasto público, mas sim mais gasto público focalizado em setores de alta dinâmica, e também gastos sociais. O pobre consome e o investimento público tem muitos multiplicadores. Esse seria o programa alternativo que exige, sim, gasto público. Já são três governos, desde 2015, que recusam esse caminho, apostando no corte de gastos públicos. E a gente sai da crise, desde 2015.
O problema fiscal brasileiro decorre do arranjo macroeconômico e do tripé macroeconômico (regime de câmbio flutuante, metas de inflação e meta fiscal). Esse tripé, que completa 20 anos em 2019, gerou resultados muito ruins. A taxa de juros no Brasil é fora da curva e ela não é explicada pela dívida pública ou pela inflação. O regime de metas resolveu o problema da inflação a um custo muito alto. E a taxa de câmbio é uma das mais voláteis do sistema, por conta da desregulamentação do mercado de câmbio e de uma taxa de juros muito alta que atrai a especulação cambial. E a perna fiscal do tripé não consegue estabilizar a dívida pública por conta das outras pernas do tripé.
O que fez a dívida pública subir recentemente é, principalmente, a queda do crescimento econômico e os pagamentos de juros. O resultado primário começou a contribuir, a partir de 2014 e 2015, negativamente para o aumento da dívida, mas a sua contribuição é pequena perto desses dois outros elementos. Antes disso, a dívida pública se manteve relativamente estável, graças ao crescimento econômico. Não será por meio da Reforma da Previdência ou cortando o gasto social que solucionaremos a questão da dívida pública. O problema é o arranjo macroeconômico, é o que está por trás do tripé macroeconômico. São outras reformas que resolverão o problema fiscal brasileiro. O tripé macroeconômico fracassou em gerar condições para o desenvolvimento brasileiro.
Sul21: Parece um tanto contraditório, da parte dos setores empresariais, apoiar uma política de ajuste fiscal que sufoca a possibilidade de crescimento, não? Eles não têm a percepção de que esse caminho não vem dando certo?
Pedro Rossi: Essa é uma excelente pergunta. Em primeiro lugar, há uma questão política aí a considerar. Há um economista chamado Michal Kalecki que dizia que, quando uma economia se aproxima do pleno emprego, os trabalhadores conseguem aumento de salário e os sindicatos vão ganhando força, os empresários já não gostam. Eles preferem parar de lucrar e ter uma situação de desemprego, na qual eles têm maior poder de definir salários de seus funcionários. Numa situação de desemprego, você consegue contratar alguém com um salário menor e ter um custo menor. Isso é um problema de economia política.
Em 2014, era esse o cenário que tínhamos. O desemprego estava baixíssimo e havia uma pressão por redução de salários. Muitos economistas diziam então que era preciso, inclusive, aumentar o desemprego para reduzir os salários e ter uma nova situação de equilíbrio, na qual o empresário voltaria a investir. O empresário carrega um pouco essa ideologia de que o Estado deve intervir menos e ele sempre arbitra em seu favor em caso de conflito distributivo. Há vários encargos que recaem sobre ele que ele não quer ter. Ele quer corte de impostos e, para cortar imposto, tem que reduzir o tamanho do Estado e o gasto social. A Emenda Constitucional 95 serviu para frear o gasto social. Além disso, o empresário também quer uma legislação trabalhista mais frouxa.
Do ponto de vista micro, ele até pode ganhar alguma coisa, mas, do ponto de vista macro, se não há trabalhador consumindo, não temos renda nem lucro. O Brasil está jogando fora uma oportunidade que é crescer com base no seu mercado interno. Ao invés disso, estamos alimentando a crise, cortando mais gastos e fazendo com que a economia continue em um estado de letargia.
Sul21: Apesar de o governo Bolsonaro ter acenado com algumas medidas pontuais para injetar recursos no mercado interno, como a liberação de parte do FGTS, parece pouco provável, com o Paulo Guedes no Ministério da Economia, que vá ocorrer alguma mudança de rota mais significativa na condução da economia. Na sua avaliação, eles vão dobrar a aposta e seguir nesta direção? Qual o cenário que isso traz para a economia brasileira no curto prazo?
Pedro Rossi: O cenário é muito ruim e, como você falou, há uma certa contradição no que o governo faz. Quer dar um pequeno estímulo de demanda, com o FGTS, em um governo cuja medida principal é contrair a demanda pública. São medidas contraditórias que não funcionam porque se trata de uma medida muito pequena frente uma orientação geral de redução da demanda pública e de aprovação de reformas que não levam ao crescimento. A Reforma da Previdência contrai a demanda porque ela tira benefícios e aumenta impostos sobre os trabalhadores e a população já no curto prazo. O efeito disso é o que acontece com qualquer medida fiscal contracionista. Se eu aumentar imposto e reduzir gasto público, isso faz cair o crescimento, não aumentar. As reformas e o arrocho fiscal estão atuando nesta direção.
O que acontece é que o mercado vem revisando para baixo a projeção do PIB e aí o governo solta uma medida minúscula perto da orientação geral da política, como ocorreu no caso do FGTS. No geral, o governo está atuando no sentido de não melhorar as condições econômicas. O que está acontecendo, a partir deste governo e do governo Temer, é uma mudança estrutural que retira instrumentos do Estado para atuação na economia e transferência de renda e retira direitos trabalhistas e sociais dos trabalhadores no conflito distributivo. Essas reformas, mais do que conservadoras, são desestruturantes do Estado, são reacionárias, elas voltam no tempo para trás da Constituição de 1988, que estabelece direitos. Neste sentido, o governo está cumprindo um papel histórico para a direita e as elites, que é transformar o Estado brasileiro, mas não está cumprindo o papel – e talvez nem tenha preocupação de fazer isso – de gerar crescimento e emprego no curto prazo.
Sul21: O cenário externo, especialmente a guerra comercial entre China e Estados Unidos, pode agravar ainda mais essa situação interna da economia brasileira?
Pedro Rossi: Isso reforça a necessidade de políticas voltadas para dentro. Uma riqueza que o Brasil tem é o seu mercado interno que tem algumas dezenas de milhões de consumidores. O Brasil não é um país com tantos vizinhos em relação aos quais o comércio é fácil, diferentemente do que ocorre com países europeus. O comércio internacional ainda tem um peso pequeno no Brasil e um cenário onde a demanda internacional é fraca, por que é que a gente vai enfraquecer o mercado de consumo doméstico? É o contrário disso que deveríamos estar fazendo, fortalecendo esse mercado doméstico. Para isso, é preciso garantir renda para a população, inclusive a população mais pobre, e garantir emprego.
Para os empresários, salário é considerado custo, mas também significa demanda. O mesmo salário que é custo para uma empresa vai comprar os produtos, não da mesma empresa, mas de outras empresas. Então, ao cortar salários e reduzir custos, as empresas também estão enfraquecendo o mercado doméstico e isso tem conseqüências macroeconômicas. Se a gente gera uma crise, como a de 2015-2016, gera desemprego, reduz salário e renda, aumenta a inflação, tirando ganho real dos salários. Tudo isso reduz a demanda agregada, joga o crescimento e o investimento das empresas para baixo. Assim, com um cenário internacional desfavorável, que não vai puxar o crescimento brasileiro, seria muito importante pensar estratégias pelo lado da demanda, fortalecendo a renda dos brasileiros, e, pelo lado da oferta, protegendo a produção nacional. O que estamos vendo sendo feito é o contrário. Pelo lado da demanda, você reforça o desemprego e a queda de salários, e, pelo lado da oferta, você abre para a concorrência externa.
Sul21: Um setor que parece nunca perder é o sistema financeiro. Recentemente foi divulgado um novo recorde nos lucros dos bancos no Brasil. Para esse setor, essa política que você está criticando não é ruim, para dizer o mínimo. Em que medida há uma dissociação entre o setor financeiro e o setor produtivo, ou o que restou dele no Brasil?
Pedro Rossi: Essa é uma pergunta interessante porque essa dissociação é muito tênue. O setor financeiro no Brasil tem vantagens do ponto de vista da disputa política e da disputa pelo poder que são muito grandes. Trata-se de um oligopólio financeiro que tem economistas pagos, tem um grande peso no Congresso Nacional, a mídia e outras formas de difundir ideias, promovendo uma guerra ideológica muito forte. Ele consegue aprovar medidas no Congresso, inclusive convencendo uma parte do empresariado muito a contragosto.
Há alguns anos, a gente ainda via posições antagônicas entre Fiesp e Febraban. No segundo governo Dilma, havia uma certa oposição entre essas duas instituições, com posições diferentes em relação aos juros, ao preço da energia e às desonerações. A Fiesp era a favor dessas medidas enquanto a Febraban advogava por outras questões. As agendas das duas entidades se juntam em alguns aspectos, como redução do gasto público e da atuação do Estado em vários setores, inclusive no setor bancário. O setor financeiro tem muito poder e tem imposto uma pauta que não está fazendo bem ao Brasil.
Sul21: O resultado das eleições primárias realizadas recentemente na Argentina representou uma grande derrota para o governo Macri e sua política econômica. Em que medida o desempenho negativo da agenda ultraliberal na Argentina pode influenciar o Brasil?
Pedro Rossi: Brasil e Argentina têm as suas especificidades e os seus momentos históricos, por vezes coincidem e também se alternam. O caso argentino talvez esteja neste momento um pouco a frente do nosso, porque já acumula alguns anos de um governo ultraliberal, que fracassou. A Argentina tem uma situação absolutamente específica no mercado de câmbio, muito diferente da nossa. A economia é muito mais aberta em termos do mercado de câmbio por conta do histórico de dolarização. O que o Macri fez, quando assumiu o poder, foi liberalizar as regulações que ainda existiam no mercado de câmbio argentino, privatizar uma série de setores e desregulamentar a economia. O resultado não foi o esperado. O que aconteceu na Argentina foi uma especulação enorme com o mercado de câmbio, a despeito de um governo que atende o mercado financeiro. Atende no sentido de que pode especular. Às vezes, um governo que não atende às demandas do setor financeiro pode conseguir maior estabilidade financeira do que um governo que atende essas demandas.
As corridas contra o peso provocaram uma espiral inflacionária na Argentina e sistemáticas desvalorizações da moeda, com consequências enormes para toda a economia. A população não consegue garantir a sua renda da inflação, a deterioração da estrutura produtiva e do mercado de trabalho é muito grande. Depois do resultado das eleições, ele deu um passo atrás e anunciou um aumento do salário mínimo. O mercado financeiro quer valorizar patrimônio. A valorização de patrimônio nem sempre coincide com geração de emprego e renda. Se liberalizarmos o mercado de câmbio no Brasil, daremos mais oportunidade para quem tem patrimônio, proteger e valorizar seu patrimônio. Em compensação, poderemos ter ataques especulativos contra a moeda brasileira. Eu posso colocar o meu dinheiro em dólar e proteger meu patrimônio, mas estarei contribuindo para desvalorizar a moeda e gerar inflação para a população. Considerando os efeitos para a sociedade como um todo, teremos mais volatilidade cambial, mais inflação e corrosão do poder de compra da população. Tudo isso gera instabilidade.
Então, nem sempre o que é bom para o mercado financeiro é bom para a sociedade. As regras aplicadas ao mercado financeiro são muito questionadas pelos agentes desse mercado, mas, do ponto de vista social, é muito importante a regulação do mercado financeiro. Essa é uma lição que veio da crise de 2008, a qual muitos países estão atentando. Nós estamos no caminho contrário, recuperando o velho neoliberalismo de uma maneira tosca, depois de o mundo já ter passado por uma crise desse modelo. Nós vivemos a nossa crise do neoliberalismo na década de 90. O México em 95, a Ásia em 97, a Rússia em 98, o Brasil em 99, a Argentina em 2001. Depois disso, de alguma forma, procuramos nos proteger. Agora estamos retomando uma radicalidade neoliberal, típica do início do processo, como se nós não tivéssemos aprendido nada. O próprio centro do sistema aprendeu com o que aconteceu. Não temos mais o Consenso de Washington da década de 90.
Esse radicalismo que estamos vendo no Brasil é muito preocupante. Ele está levando a Argentina para uma crise muito grave. Essa crise em países que têm institucionalidades frágeis como o Brasil e a própria Argentina contamina outras áreas e a própria democracia fica em risco de maneira mais forte do que nos países centrais, que ainda têm democracias um pouco mais consolidadas.
Sul21: E o irônico é que nem os Estados Unidos e o governo Trump, grandes referências de Jair Bolsonaro, estão seguindo esse caminho…
Pedro Rossi: Trump é um fenômeno da crise do neoliberalismo, retomando alguns elementos nacionalistas, embora tenha políticas extremamente contraditórias com um projeto nacionalista. Bolsonaro também é uma expressão da crise do neoliberalismo global, de uma forma mais caricatural. O fato é que estamos vivendo uma mudança de era no plano internacional. Provavelmente estamos no meio de uma crise de um sistema internacional que tinha um certo ordenamento, lógica e instituições. Isso vai gerar algo novo que a gente ainda não sabe o que é. Esse processo tem idas e vindas. O Bolsonaro pode ser só uma ida que vai voltar, assim como o próprio Trump e o Macri, que está prestes a perder uma eleição.
As opiniões expressas na entrevista são de responsabilidade pessoal do autor.
*Pedro Rossi é professor do Instituto de Economia da Unicamp.