Fernando Nogueira da Costa | No GGN
Brett King, autor do livro Bank 4.0: Banking Everywhere, Never at a Bank (UK; John Wiley & Sons; 2019), apresenta uma linha do tempo na história bancária mundial.
O Banco 1.0 começou na Itália com a família Médici no Século XII. De 1472 a 1980, os bancos tradicionais configuraram um sistema bancário ramificado em rede de agências como pontos de acesso. Com o dinheiro emprestado sendo depositado nessa rede, o sistema possibilitava o multiplicador monetário. Era maior em função de menor saque de papel-moeda. Esta retirada determinava a necessidade apenas de reservas bancárias fracionárias, quando a Autoridade Monetária não exigia recolhimento compulsório.
O Banco 2.0 representou o surgimento do banco de autoatendimento, definido pelas primeiras tentativas de fornecer acesso bancário fora do horário comercial do banco. Iniciado com caixas eletrônicos, se acelerou em 1995 com comercialização da Internet.
O Banco 3.0 representa o sistema bancário quando e onde o cliente precisar, devido ao surgimento do smartphone em 2007. Acelerou a mudança para pagamentos móveis, P2P e bancos inovadores construídos sobre a base de “celulares bancários” [mobile banking]. Esse canal virtual é visto como agnóstico por quem o considera um fenômeno sobrenatural inacessível à compreensão humana. Significa “desconhecido" ou "não cognoscível”. A experiência bancária deixa de ser presencial.
O Banco 4.0 está onipresente desde 2017. Entrega produtos bancários em tempo real através de camadas de tecnologia. Oferece experiências contextuais, engajamento do cliente sem atrito e um aconselhamento inteligente, baseado em IA (inteligência artificial). Omni-channel digital permite a integração das diversas opções de atendimento ao cliente sem requisito de existir uma rede de distribuição física.
A questão-chave para muitos é a do título: bancos digitais e fintechs ameaçam os big five bancos brasileiros? Uma resposta cabal requer o exame de dados e informações.
A crise de 2008 gerou uma onda de desconfiança em relação aos bancos, justamente quebrando um requisito básico para o funcionamento do sistema bancário: a confiança. Os clientes necessitam confiar na garantia de existência de sua “moeda invisível”, isto é, a escritural ou digital, contabilizada a partir de depósitos à vista.
Quando leigos descobrem os bancos só deterem uma fração em papel-moeda do total de seus depósitos, em circunstâncias de crise de confiança, podem provocar uma corrida bancária. Aí o Banco Central tem de conceder empréstimos de liquidez aos bancos, enviando carros-fortes com o papel-moeda para demonstrar a “prova-viva” da solidez ou saúde bancária, chamada por economistas pernósticos de higidez sistêmica.
A descoberta do poder do sistema bancário multiplicar moeda, como um fruto do efeito de rede, inspirou nerds em tecnologia. Os cyberpunk (ou ciberanarquistas) mesclaram ciência avançada, como as tecnologias de informação e a cibernética, com uma tentativa de mudança radical na ordem social. Criaram a criptomoeda ou o bitcoin.
O desejo de afastamento físico em relação a banco também impulsiona a nova geração a usar fintech pela facilidade de acesso a novas tecnologias. Além de jovens estudantes ou profissionais terem smartphones com acesso à internet, os serviços de armazenamento de dados em nuvem baratearam a montagem de uma empresa digital.
Fintechs são distintas de “bancos digitais”. Elas são altamente especializadas: algumas têm dois ou três produtos, mas a grande maioria oferece apenas um. Tentam automatizar algum serviço bancário para serem mais ágeis e terem custos menores. No Brasil, surgiram mais fintechs a partir de 2014. Em junho de 2019, segundo o Radar FintechLab, existiam apenas 12 bancos digitais, mas 529 fintechs. O maior número (151) era de pagamentos, depois, 95 de empréstimos, 90 de gestão financeira, 75 para eficiência financeira, 38 investimentos, 37 seguros, 36 criptocurrency, 25 funding, 19 negociação de dívidas, 12 câmbio e remessas e 12 multiserviços.
Exemplos distinguem uma da outra: a Neon e o Banco Inter. A primeira se apresenta apenas como uma conta 100% digital. Fornece um cartão de crédito sem anuidade pelo qual só paga o que gastar. O cliente pode pedir o seu cartão virtual direto no app Neon.
Apresenta o CDB Neon como uma evolução da poupança por render a partir de 95% do CDI, enquanto a poupança rende só 70% do CDI. É possível investir a partir de R$ 10. Caso decida manter o valor investido pelo período de 3 anos, o rendimento vai crescendo até chegar a 101% do CDI. Mas pode ser resgatado a qualquer momento. São CDBs (Certificados de Depósito Bancário) de seu parceiro, o Banco Votorantim, garantidos pelo Fundo Garantidor de Crédito em até R$ 250.000,00.
O cliente pode depositar na sua conta Neon, seja por transferência via TED ou DOC de outros bancos, seja por boleto bancário, emitido no app na aba depósitos e pago em qualquer banco ou casa lotérica. Não tem tarifa para transferências ou pagamento do boleto. O cliente pode sacar em qualquer caixa eletrônico da rede Bancos24Horas no Brasil e no exterior da Rede Plus. O primeiro saque mensal é grátis e os demais custam R$ 6,90 se não tiver a Neon+ com 3 saques grátis a mais por 30 dias corridos. Em menos de dois anos, a Neon saltou de 40 mil para 2 milhões de clientes ativos.
Apesar de conceder também empréstimo pessoal, a Neon se apresenta só como uma fintech. Afinal, o que é um banco?
Assim como dinheiro se define por uma moeda capaz de cumprir suas três funções clássicas – meio de pagamento, unidade de conta e reserva de valor – um banco adquire uma concessão da Autoridade Monetária para cumprir também três funções clássicas:
• prover um sistema de pagamentos com papel-moeda ou moeda eletrônica;
• captar depósitos de terceiros, oferecendo aplicações financeiras seguras, líquidas e rentáveis para seus rendimentos financeiros substituírem renda do trabalho na fase inativa dos trabalhadores;
• oferecer financiamentos para alavancagem financeira da escala do negócio e, em consequência, da rentabilidade dos capitalistas, além de conceder crédito ao consumidor para aquisição de bens com compras a prazo.
Banco digital provoca uma destruição criadora à la Schumpeter? Mistura inovação disruptivas, empreendedorismo, capital e crédito. Usa dinheiro de outros em benefício da própria expansão ao conseguir associados confiantes em seu projeto. O ganho do fundador é a manutenção de sua gestão e a participação acionária no grupo majoritário com divisão de lucros e/ou eventuais prejuízos. Com o sucesso do empreendimento, faz uma abertura de capital: IPO de parte minoritária com cotação atribuída por mercado de ações. Depois, toma dinheiro emprestado para fusões e aquisições de concorrentes, para elevação do valor de mercado e enriquecimento dos sócios.
Para conseguir escalar o negócio, a Neon recebeu uma nova rodada de captação (série B), de R$ 400 milhões. O capital, levantado para dar escala ao negócio da startup, foi liderada pelo fundo americano General Atlantic e pelo Banco Votorantim, além dos fundos já investidores na primeira rodada: Monashees, Omidyar Network, do fundador do eBay Pierre Omidyar, Propel, Quona e Mabi. Em maio de 2018, captou R$ 72 milhões.
O SoftBank é um conglomerado multinacional de origem japonesa com foco em tecnologia, com valor investido acima de US$ 400 bilhões. Quase metade dos US$ 97 bilhões do Vision Fund, criado pelo SoftBank para investir no setor de tecnologia, veio do Fundo Soberano da realeza saudita. Entre os maiores investimentos globais do SoftBank estão empresas como Uber, Alibaba, ARM e mais de 90 outras empresas de internet e tecnologias disruptivas. Possui 15% do capital de R$ 2 bilhões do Banco Inter.
Este é o primeiro banco brasileiro 100% digital com uma completa plataforma de serviços financeiros. Ao longo de 23 anos, com o nome Intermedium mudou de financeira para banco, de regional para nacional, de crédito para serviços múltiplos. A partir de 2017, adotou a nova marca: Banco Inter.
Atingiu a marca de 3,3 milhões de contas digitais no 3T19, número 3,1 vezes maior em relação ao mesmo período do ano anterior. Abre em média mais de 12 mil contas por dia útil. O número de clientes ativos atingiu 1,9 milhão, com crescimento de 192% frente ao 3T18. O Cross-Selling Index (CSI) atingiu 2,55 produtos por cliente. Alcançou 338 mil investidores ativos na Plataforma Aberta Inter (PAI), já representando 10% da base de clientes, crescimento anual de 3 vezes. O volume transacionado de R$ 2,2 bilhões em cartões foi 2,5 vezes maior no último ano.
Ele se distingue de bancos tradicionais por quase ¾ dos clientes da conta digital estarem abaixo de 36 anos de idade. A renda mensal média dos clientes é R$ 3.000: 43% até R$ 2 mil e 31% entre esse valor e R$ 4 mil. Por ser digital, tem clientes em 5.511 cidades brasileiras. Se apostar em mobilidade social, poderá crescer junto com seus clientes.
Obviamente, em números absolutos, os bancos digitais e as fintechs, em fase inicial de uma transição histórica no sistema bancário, não ameaçam os big five bancos brasileiros. Eles exemplificam o potencial da inovação disruptiva: a substituição de agências (e bancários) por aplicativos em celulares inteligentes. Os big five passam a copiá-los, associar-se ou a fazer parcerias com eles.
Para encerrar, apresento alguns números importantes e desconhecidos por não especialistas. Existem 330 milhões de cartões de débito emitidos, mas bem menos (115 milhões) estão ativos. Somando a parcela (70%) da população em Idade Ativa (15-64 anos) e a da idosa (acima de 65 anos), 10%, obtém-se 80% de 211 milhões ou 130 milhões pessoas. Descontando 15 milhões ocupados em zona rural, resulta em a população urbana, público-alvo dos bancos, estar praticamente toda “bancarizada” ao contrário do dito por muitos analistas levianos, inclusive estrangeiros.
No fim do ano passado, existiam 70 milhões de contas mobile banking e 53 milhões com uso de internet banking em amostra de 20 bancos do painel da pesquisa contratada pela FEBRABAN. Entre 2009 e 2018, o percentual de transações em agências, PAB, ATM, central de atendimento e correspondentes caiu de 70% para 31%. A parcela de Internet, Home e Office Banking permaneceu praticamente a mesma: 30%. Portanto, celular bancário (Mobile Banking) ocupou-se daquela parcela de transações antes realizadas por atendimento presencial: era zero em 2009 e cresceu para 39% em 2018.
Considerando também POS (ponto-de-venda de cartões) estável no período em 16%, 60% das transações se davam em canais digitais (Internet e Mobile Banking) – eram 40% em 2012. Outros canais “físicos” caiu de 44% para 24% no período.
Desconsiderado os POS, os clientes passaram a priorizar os canais digitais para fazer operações sem movimentação financeira: de 62% em 2012 para 84% em 2018. Com movimentação financeira, no período, POS cresceu de 32% para 41%, canais digitais de 18% para 23%, enquanto outros canais (agências, ATMs, etc.) caíram de 50% para 36%.
Vale lembrar, há muitos anos, desde os anos 90s, os investimentos e as despesas em tecnologia bancária giram em torno de R$ 20 bilhões por ano. Desse modo, os gastos anuais com tecnologia realizados pelos bancos são similares aos do governo no Brasil, cada qual equivalendo a 14% do total. No mundo, o setor público faz 16% e o setor bancário, também em segundo lugar, faz 13%. A diferença é o montante: US$ 41,3 bilhões no Brasil e US$ 2,8 trilhões no mundo.
Por fim, ressalto: com o acesso à cidadania financeira, alcançado durante o governo popular-democrático (2003-2016), todos nós participamos do sistema bancário. É um direito do cidadão – e devemos ser proativos em sua defesa!
As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.
* Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.