Fernando Nogueira da Costa | No GGN

Ontem, inaugurando a Semana da Economia, organizada anualmente pelos estudantes do IE-UNICAMP, tive a oportunidade de assistir o debate de André Lara Resende (ex-PUC-Rio) com minhas ex-alunas e atuais colegas Simone Deos e Daniela Prates a respeito da Teoria Monetária Moderna (Modern Monetary Theory – MMT). Aliás, um consenso foi esse rótulo, embora chamativo, ser falso pelo adjetivo “moderna”. Essa corrente de pensamento monetário prossegue dentro de uma longa tradição antiquantitativista, ou seja, crítica à Teoria Quantitativa da Moeda.

Nas controvérsias doutrinárias ocorridas na primeira metade do século XIX, na Inglaterra destacaram-se as contribuições analíticas de autores expoentes do anti-bulhionismo e da Banking School. Eles não muito conhecidos entre economistas com formação ortodoxa por conta de ter predominado o discurso conservador de controle monetário geral. Destacaram-se Henry Thornton (1760-1815), visto como um bulhionista (ou metalista) moderado; Thomas Tooke (1774-1858), um defensor radical da Escola Bancária; e John Stuart Mill (1806-1873), elaborador da síntese desse debate. Mais adiante foi publicado o revolucionário Interest and Prices (1898) do sueco Knut Wicksell.

Praticamente sem divergências conceituais entre os debatedores, Lara Resende sintetizou suas ideias recém-publicadas em diversos artigo no jornal Valor. Elas serão compiladas em livro a ser publicado pela Companhia das Letra até o fim deste ano. A maior novidade talvez tenha sido o destaque dado por ele à história da moeda na Inglaterra após o fim do Império Romano. Ausente um Estado imperial, não brotou espontaneamente do mercado, por cerca de dois séculos, uma substituta para a moeda oficial antes predominante e depois extinta. Era economia cooperativa de escambo.

Essa descoberta antropológica de historiadores da moeda falseia a hipótese ainda em vigor. De acordo com a visão liberal dessa história, a moeda sempre foi vista como apenas como uma mercadoria a mais, escolhida segundo critério de comodidade e/ou segurança por economia de mercado autorregulável sem a arbitrária intervenção estatal. Essa imagem idílica escamoteia a violência da moeda. A soberania do Estado nacional tem dois pilares básicos: o poder militar, dado pelo monopólio oficial da violência, e o poder de gasto, dado pelo monopólio da emissão da moeda.

Na realidade, o dinheiro é uma convenção adotada pela sociedade como um todo (civil e política), dependendo tanto de definição institucional – a lei não é a do mercado, mas a do mais forte –, quanto de aceitação mercantil – se a moeda perde valor aquisitivo com a disparada dos preços há fuga para uma moeda estrangeira. A moeda nacional ou oficial é criação do Estado, mas necessita da aceitação da comunidade para tornar-se plenamente dinheiro atuando em três funções clássicas:

reserva de valor (riqueza líquida), unidade de conta e meio de pagamento. Todo dinheiro é moeda, mas nem toda moeda é plenamente dinheiro. Há distintas formas de moeda, inclusive a criptomoeda.

O confronto entre o Estado e o Mercado a respeito daquilo a se constituir em dinheiro, principalmente em circunstâncias de ameaças de hiperinflação, quando há fuga de capital (“apátrida”) para a moeda estrangeira, é o mais eletrizante na história monetária. A MMT assume, assim como Lara Resende, a definição de “moeda é aquilo aceito como pagamento de imposto pelo Estado nacional”. Nesse sentido, moeda é a unidade de conta e o meio de pagamento oficial.

Um ponto para debate, dada sua carência na MMT, bem explorado pela Daniela Prates, é a hierarquia de moedas em uma economia globalizada com padrão-dólar. Na periferia, dada a perda de poder aquisitivo da moeda local, quando há um regime de alta inflação, surge o risco de fuga social para uma moeda estrangeira como reserva de valor.

Lara Resende, nos anos 80s, elaborou a fundamentação teórica para o Plano Real de 1994 a partir da ideia da moeda indexada. Era uma quase-moeda, baseada no overnight, e evitou a dolarização no Brasil. Isso não ocorreu na Argentina. Por isso, até hoje lá predomina um padrão comportamental de guardar dólares como reserva de valor. Um sistema bi monetário com cotação disparatada do dólar, no mercado paralelo, leva à hiperinflação por acabar se constituindo também em unidade de conta. Por razões legais, os contratos, inclusive os impostos, são pagos em moeda oficial. Os preços em moeda local disparam de acordo com a unidade de conta indexada ao dólar.

Meu colega Guilherme Melo criticou a ausência de uma teoria de inflação não-monetária na MMT. Seus autores contemporâneos são norte-americanos. Talvez por isso só destacam a chamada “inflação verdadeira”, quando há excesso de demanda agregada sobre uma capacidade produtiva plenamente ocupada. Os autores brasileiros destacam outros tipos de inflação: de custos, inercial, acelerada ou dolarizada.

Em todos eles, as expectativas a respeito da inflação futura assumem papel crucial. Por isso, em fase de “desalavancagem financeira desinflacionaria” se fala tanto de “expectativas ancoradas” no combate à inflação.

Lara Resende lembrou bem da ideia de reflexividade, resgatada por George Soros da Filosofia idealista, para se referir aos comportamentos dos agentes econômicos resultantes em novos fundamentos. Ele usa o termo “reflexivo” para descrever situações quando um mecanismo bilateral leva à mudança do curso dos eventos e à percepção dos participantes do mercado da mudança de cenário. Em processo de retroalimentação, a percepção coletiva influencia o mercado, assim como a ação do mercado também influencia a percepção de cada um dos participantes.

 

Simone Deos, cuja tese de doutoramento sobre Hyman Minsky orientei, cobrou “mais Minsky na MMT”, embora os autores pós-keynesianos, em especial Randall Wray, sejam assumidamente “minskyanos”. Segundo Minsky, depois do boom, provocado por excesso de crédito, surgiriam razões para não mais atender à demanda de crédito.

O público não-bancário poderia não mais querer adquirir ativos financeiros (e “liberar” moeda para propiciar finance ou funding) ao preferir a especulação em mercado de risco como ações (ou dólar na periferia) ou em mercado imobiliário. Os próprios bancos poderiam fazer restrição ao refinanciamento, dado o aumento do risco do credor, isto é, o exposure do banco. Este faz análise do credit score do devedor e verifica o comprometimento do faturamento mensal, acompanhado pela cobrança de títulos,

com dívidas.

Daí a receita de política monetária avaliada por MInsky: ter uma atitude acomodatícia quanto à oferta monetária endógena, originada das forças de mercado em processo de multiplicação de moeda. Mas exercer um rígido controle institucional e/ou fiscalização administrativa sobre a atuação dos bancos. Isso veio a ser chamado de “macroeconomia prudencial”, exigindo maior capitalização dos bancos para a alavancagem financeira.

O papel do “Big Bank” adequado seria, no auge do ciclo econômico-financeiro, o Banco Central acomodar a necessidade de liquidez real para abortar a crise provocada pelo esperado crash. Durante a bolha, provocada pela alavancagem financeira, é necessário dar continuidade aos processos de expansão de capacidade produtiva com lucros validados até maturação dos investimentos. Depois, haverá o pagamento dos compromissos e uma “bonita desalavancagem financeira desinflacionaria”.

O papel do “Big Government”, durante a crise econômico-financeira, na visão pós-keynesiana, sugere a intervenção governamental via política fiscal ativa. Um aumento do gasto público autônomo, isto é, independentemente das expectativas pessimistas reinantes no setor privado, garante o nível da demanda efetiva, compensando eventual queda do gasto privado, e mantém os lucros. As receitas tornam-se assim superiores aos pagamentos de juros previstos no balanço de cada agente. A própria arrecadação fiscal deverá superar o pagamento de juros por conta da dívida pública acumulada.

Quando tive oportunidade de participar do debate, simplesmente perguntei: a Teoria Monetária Moderna (MMT) é geral? Uma teoria científica pura necessita ser generalizável no tempo e no espaço. Em menor nível de abstração, a Teoria Moderna da Moeda padece de se aplicar, praticamente, a uma economia sem impacto da taxa de câmbio sobre taxa de inflação – e só a uma fase do ciclo econômico-financeiro nos Estados Unidos, quando há um crescimento rastejante com armadilha de liquidez.

Nessa fase de “desalavancagem financeira desinflacionaria”, só em economia com moeda conversível, como o dólar ou como o euro sem taxa de câmbio dentro do bloco regional de comércio, a política de “afrouxamento monetário” sem limite não provoca depreciação cambial e choque inflacionário?

A MMT seria aplicável à economia brasileira? Por exemplo, a Dívida Bruta do Governo Geral está em R$ 5,5 trilhões com um PIB de R$ 7 trilhões, ou seja, 78,7% do PIB em junho de 2019. Depois da dívida mobiliária com 47,7% do PIB, as operações compromissadas no valor de R$ 1,247 trilhão (17,8% do PIB) constituem o segundo maior componente da DBGG. Equivale a quatro vezes o Crédito aos Bancos Oficiais: 4,4% do PIB – BNDES com R$ 268 bi (3,8%) e IHCD com R$ 40 bi (0,6%). Este não é o problema.

Logo, como em outros países, o pseudo problema de risco soberano (solvência do Tesouro Nacional) seria resolvido com a troca das operações compromissadas por depósitos remunerados dos bancos no Banco Central. Perguntei: por que a Autoridade Monetária brasileira não toma essa iniciativa? Por receio do excesso de liquidez derrubar a Selic-mercado? Lara Resende me respondeu: por lobbies dos bancos. Então, seria um receio conservador de perder receita bancária com a tesouraria.

As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.

* Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.