Fernando Nogueira da Costa | Na Carta Maior
Paradoxalmente, Marx e a literatura de esquerda destacam a revolução industrial, talvez por causa do surgimento de operários capazes de se organizarem em sindicatos e partidos, e não a prévia revolução financeira, ocorrida originalmente na Holanda do século XVII. Até hoje parte da esquerda se comporta como os cristãos medievais antissemitas e contra os usurários (e/ou rentistas) na hora de pagar juros de dívida.
Os holandeses não tinham uma Monarquia Absolutista. Os governos do Estado e das cidades eram administrados por mercadores e outros burgueses – moradores das cidades – voltados para os negócios, então, cidadãos de classe de renda média. As leis locais favoreciam a iniciativa privada. Os impostos eram diminutos. As receitas arrecadadas eram gastas em investimentos ligados aos negócios, como melhorias no porto, em vez de ir para os cofres privados de nobres dinastias.
Havia poucas barreiras de classe ou religiosas impeditivas de um homem comum para abrir um negócio. Qualquer filho de agricultor imigrante, qualquer judeu fugindo da Espanha, Quaker da Inglaterra ou luterano da Alemanha era bem-vindo para aplicar seu dinheiro em um empreendimento comercial na economia local.
A arte de vender é um sentimento de empatia — uma abordagem, uma atitude, um sentimento a respeito de um comprador para se colocar no lugar dele e fazer uma proposta adequada. Alguns homens têm, outros não, independentemente de seu nível de ensino. O capitalismo comercial “pacificou” o mundo, relativamente ao passado medieval, em lugar da conquista de territórios alheios pela morte dos proprietários. Quando surgiu a divisão de trabalho perdeu o sentido matar os fornecedores!
No entanto, a Companhia das Índias Orientais, fundada em 1602 por holandeses, assim como a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, fundada em 1621, tinha navios com capacidade bélica contra os piratas. Ambas estabeleceram colônias em busca do comércio de especiarias das Américas do Sul e do Norte, África, Índia e outros lugares distantes. Invadiram a colônia portuguesa nas Américas quando Portugal estava sob o reino espanhol, inimigo do holandês. Foram as primeiras corporações constituídas por ações. Para financiar os navios, os holandeses começaram a desenvolver uma bolsa de valores rudimentar em Amsterdam. Mais adiante, criaram o primeiro Banco Central.
A maior descoberta holandesa foi verdadeira revolução financeira: para se conseguir dinheiro a melhor maneira é lidar diretamente com o próprio dinheiro, em vez de acumulá-lo, indiretamente, através da negociação de bens e serviços. Os holandeses do século XVII exploraram o percurso direto para a riqueza através do manuseio do dinheiro, de modo a controlar seu fluxo e direcionar parte dele diretamente para sua própria conta bancária.
Com a revolução industrial, a partir da segunda metade do século seguinte, as massas de cidadãos comuns na maioria das nações seguiram exploradas praticamente sem dinheiro. A baixa esperança de ganhá-lo era combatida pelos mitos de homens capazes de ficar ricos com o próprio esforço. A ética protestante divulgava o espírito do capitalismo da parcimônia, vendida como panaceia até hoje por economistas ortodoxos quando pregam a poupança ser a condição do investimento para enriquecimento.
A “regra de ouro” do comércio de qualquer coisa é comprar barato e vender caro. Se você acredita a ter ou poder adquirir essa capacidade de vendas, então, não precisa de mais nada para se tornar rico. Enquanto isso, quem não a tem acredita a aversão ao consumismo ser o sacrifício exigido para o enriquecimento progressivo, lento e gradual.
O otimismo é a atitude mais valiosa pregada pelos professores da fortuna – e pelos autores de autoajuda financeira. Eles não oferecem garantias de seu dinheiro de volta. Afinal, se não deu certo, a culpa é sua por não se esforçar suficientemente no ensinado.
Através da prece, da parcimônia, do esforço, da honestidade, da coragem, da perseverança e de outros atributos admirados da ética protestante, ascenderiam à riqueza material. Por essas falsas promessas, as igrejas evangélicas neopentecostais têm multiplicado o número de fiéis e aumentado sua representação no Congresso Nacional, encarnando uma das mais importantes mudanças culturais – e políticas – do Brasil.
Essencialmente, a pregação segue sempre a mesma fórmula: um infeliz triunfa sobre a adversidade aplicando as regras da Bíblia. Um acaso o ajuda em sua ascensão, mas a inferência divina é porque ele a merece, afinal, trabalha duro, reza muito, tem pensamentos puros e uma atitude mental positiva. É o modelo perfeito de gente de bem, honrada, corajosa, forte e capaz de enfrentar “os petistas”. Estes são de gente do mal, ardilosa e desprezível, pregadora da ideologia do “marxismo cultural globalista” (sic). O passatempo dessa gente encapetada é fechar templos e distribuir kits-gay.
As principais religiões cristãs tentam convencer as pessoas de a virtude ser a própria recompensa. Na realidade, a pobreza seria preferível à riqueza, porque dinheiro demais inevitavelmente levaria à dissolução e à danação. O dinheiro seria concebido para ser a raiz do mal. Um homem sábio não trabalha pelo dinheiro, mas pelo trabalho em si. O trabalho é purificador. O suor é sagrado aos olhos do Senhor. Viva a exploração!
Pela Teologia da Prosperidade, existem milhares de empreendimentos capazes de oferecer aos pobres cidadãos oprimidos por impostos, pela inflação e apenas com renda média, uma chance de ficarem ricos. Basta seguir a regra de ouro do comércio: comprar barato e vender caro. Você pode até usar O Mercado divino: criando empresas fantasmas ou templos imaginários, conseguindo pessoas para comprarem ações dessas empresas ou pagarem dízimos, e manipulando o fluxo de dinheiro resultante de maneira a parte dele terminar em seu bolso.
Mas a técnica de usar o dinheiro dos outros – alavancagem financeira – é mais comum. Na verdade, é o segredo do negócio capitalista: usar recursos de terceiros. É inspirado na junção da revolução financeira com a revolução industrial de elevação da produtividade na produção de mercadorias em escala massiva para compra-e-venda.
É possível apresentar um exemplo simples. Caso você tenha 100 mil reais para investir em imóveis, você encontra um terreno em algum lugar, por exemplo, no limite de uma cidade do interior em expansão, uma área onde os valores dos imóveis estão subindo, por exemplo, 25% a cada dois anos. Aí você aplica o seu dinheiro para acumular mais.
Com recursos próprios, você encontra um terreno à venda por 100 mil reais e investe todo o seu dinheiro nele. Dois anos depois, você o vende por R$ 125.000. Você ganha 25% do seu capital inicial.
Com recursos de terceiros, isto é, dos outros depositados em bancos, em vez de um terreno de 100 mil reais, você pode comprar uma casa de 400 mil reais. Você coloca os seus R$ 100 mil de entrada na casa e toma emprestados os 300 mil reais restantes de um banco. Após dois anos, a casa teve também uma valorização de 25%, tal como o terreno. Ela passa a valer 500 mil reais. Você a vende, amortiza o empréstimo (e paga os baixos juros) ao banco e sai do negócio com aproximadamente 200 mil reais, descontados esses juros. Em vez de realizar meros 25%, você dobrou o seu dinheiro, ganhando 100% ao usando o dinheiro dos outros.
Alavancagem financeira diz respeito a obter a mesma valorização do ativo com a tomada de um empréstimo de capital de terceiros, dando muito maior escala na compra desse ativo. No exemplo, até dobra o capital próprio, ou seja, obtém uma rentabilidade de 100% sobre o próprio capital em caso de juro zero. O limite do juro a ser pago tem de ser inferior à rentabilidade patrimonial apenas com capital próprio para valer a pena.
Os juros, impostos e taxas de corretagem podem ser cobertas por valorização superior. A desvantagem desse investimento com uso de recursos de terceiros é envolver um grau maior de risco. Se o mercado imobiliário local se desvalorizar, enquanto você estiver no meio do investimento, ele deixa você endividado. Ou você suporta esta dívida até o mercado melhorar a cotação do imóvel ou vende seu investimento, realizando um prejuízo.
Ao contrário da pregação da parcimônia virtuosa, ficar muito rico sem correr riscos é virtualmente impossível. Todos os muito ricos, se não tiveram a fortuna herdada, tiveram de abrir mão de absoluta prudência e segurança. Ficar muito rico (com fortuna acima de 100 milhões de dólares) sem abrir mão do emprego assalariado no setor público com estabilidade garantida é impossível sem um comportamento corrupto ou aético.
Você pode esperar por um pouco mais de riqueza se vender uma habilidade profissional como freelance, ou tornando-se um cirurgião (ou uma “celebridade”) com fama na mídia. Mesmo assim, suas chances de chegar aos 100 milhões de dólares é muito baixa se pertencer à casta dos militares da caserna, à casta dos sábios-intelectuais ou à casta dos trabalhadores, isso sem falar nos párias. Tem de pertencer à casta dos mercadores ou à casta dos sabidos-pregadores de virtudes para os outros – e de desvio de dinheiro dos outros para si. Por exemplo, com uma “rachadinha” para se apropriar de parte dos salários de funcionários “fantasmas” nomeados para seus gabinetes.
*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..