Fernando Nogueira da Costa | Fórum 21
Como a professora e eu nos tornamos amigos? Discutíamos muito em público, em várias situações. Nas eleições para o IERJ – Instituto de Economistas do Rio de Janeiro, reduto dos economistas de oposição ao regime militar, organizado em 1977, Conceição era a candidata à presidência da chapa A na sucessão do Pedro Malan.
Acompanhado de parte da militância dos economistas e de todos os colegas do Mestrado da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, moradores no Rio de Janeiro, rompemos com a situação e partimos para organizar a chapa B. Rebeldia sem causa?
Primeiro, devo confessar hoje, foi sim um grito de independência política, mas com ainda baixa autonomia intelectual. Na verdade, eu era – e continuarei eternamente a ser – “fã de carteirinha” da Maria da Conceição Tavares!
Seu artigo “Natureza e Contradições do Desenvolvimento Financeiro Recente”, apresentado em 1971, durante os “anos de chumbo” e de euforia do “Milagre Econômico Brasileiro”, dominou minha “mente e coração”. Ele inclusive me levou a escolher a especialização profissional.
Revelava, destemidamente, o que a propaganda oficial do regime militar desejava ocultar: seus “pés-de-barro”. Contrariava a opinião midiática ao demonstrar o boom da Bolsa de Valores, em 1971, ser uma bolha preste a estourar.
Ela remetia o leitor à teorização sobre capital financeiro feita por Rudolf Hilferding. Era um autor marxista do qual eu nunca tinha escutado falar, em meu curso de Economia, iniciado naquele ano na FACE-UFMG.
Tinha a coragem de denunciar a estratégia do todo-poderoso ministro da Fazenda, Delfim Netto: “este processo de centralização do capital financeiro estaria confirmando o alto grau de concentração da atividade econômico urbana nos principais centros industriais e financeiros do país e conduzindo a uma mudança acentuada na estrutura oligopólica da economia, mediante associação e fusão de grupos empresariais e financeiros, nacionais e estrangeiros. As novas formas de associação do capital tendem a conduzir a um tipo de estrutura oligopólica que supõe um grau muito maior de abertura externa das empresas e uma internacionalização progressiva dos principais setores da economia” (1971: 217).
No entanto, ela cobrava muito dos seus alunos. Desse seu vislumbre do futuro restavam vários problemas para esclarecer. O mais importante deles se referia a “qual seria a base real de sustentação dessa rearticulação empresarial”.
Quando li isso, quis logo saber com meus colegas do ME quem era aquela autora tão corajosa. Contaram-me: “É uma portuguesa que fala com sotaque super enrolado e xinga muitos palavrões! Ela, quando chegou atrasada em debate com Mario Henrique Simonsen, foi chamada a atenção por este, dizendo que teria de repetir o que já tinha dito. Ela respondeu: – Não é necessário, pois eu sei o que você sempre diz: é ‘isto, isso e aquilo’, repetindo exatamente o que Simonsen tinha dito, para perplexidade (e risada) da plateia”. Estava criada a lenda para mim!
Para saber se não era um mito, quando soube ela seria professora em Campinas, junto com colegas da Comissão Econômica para a América Latina – Cepal, exilados do golpe militar no Chile do Allende, em 1973, não hesitei. Eu me joguei naquela aventura, em cidade no interior de São Paulo, onde nunca tinha estado.
Com isto, recusei tanto o convite pessoal da Eliana Cardoso, na ocasião mulher do Edmar Bacha da Universidade de Brasília, quanto o de fazer o Mestrado do CEDEPLAR na minha cidade natal, Belo Horizonte. Fundação Getúlio Vargas do Simonsen e Universidade de São Paulo do Delfim, nem pensar! Não havia hipótese de eu estudar com professores atuantes como suporte à ditadura militar!
Por qual razão eu tinha essa “postura radical”? Eu não era “organizado”, isto é, não pertencia a nenhuma organização política clandestina.
Na verdade, eu tinha abominado, quando ainda no Colégio Estadual de Minas Gerais (o mesmo da presidenta Dilma Roussef, minha ex-aluna), ver estudantes serem espancados pela polícia. Não tinha gostado nada de também ver a vitória da seleção brasileira de futebol, tão amada, ser apresentada como símbolo do regime militar e de seu “milagre econômico”. Depois, quando comecei a namorar, e soube a irmã de minha namorada estar isolada como presa-política. Foi a gota d’água!
Embora fosse ganhando consciência política daquilo, de fato, ocorrendo no país, não tinha ainda consciência intelectual. Fui realizando, então, dois cursos: um oficial, do qual era aluno bolsista, e outro paralelo, onde lia literatura “clandestina” marxista e imprensa alternativa, tipo “Opinião”, “Argumento”, “Movimento”, “Pasquim” etc.
Foi quando comprei a segunda edição Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro, a de 1973, pois a primeira tinha sido lançada no segundo semestre de 1972 e, logo, se esgotado. Tudo aquilo era muito difícil de ser lido com instrumentos ortodoxos ensinados pelo meu curso de graduação. Aproveitei a oportunidade de aprender diretamente com ela quando tive a notícia de ter se tornado professora no mestrado da Unicamp. Fui da segunda turma em 1975.
A Professora abriu o horizonte para mim! Eu tinha começado meu curso de graduação em Economia sob a euforia do “Milagre Econômico”. Tinha entrado em pânico com o conhecimento das prisões políticas e torturas sob o regime ditatorial-militar.
Em 1974, quando me graduei, o ME (Movimento Estudantil) resolveu abandonar a pregação do voto nulo e descarregar sua força na propaganda do voto na oposição, no caso, o MDB. A vitória na eleição parlamentar obrigou ao regime militar iniciar “abertura lenta, gradual e segura”.
Mas outros fatos atropelaram esse ritmo e levou-nos à manifestação de rua em São Paulo no ano de 1977. Minha turma de Mestrado, todos alunos da Conceição, lá estava. Dois anos depois, já no Rio de Janeiro, trabalhando no IBGE, criamos o Núcleo de Economistas do PT.
Meu entrevero com minha Mentora, em 1980, durante as eleições no IERJ, não teria despertado em mim sentimento similar ao tido por ela em relação ao seu mestre Celso Furtado, quando ela escreveu Além da Estagnação?
Seria muita pretensão minha a comparação. Mas nossa interpretação daquele momento histórico, em encruzilhada política, era distinta em relação a qual caminho trilhar: mais à esquerda ou, moderadamente, de centro.
Minha geração e eu enxergávamos o longo prazo: apoiar o nascimento do Partido dos Trabalhadores, para nós, era mais importante em vez de se aliar com o MDB autêntico de Ulysses Guimarães para pactuar socialmente a transição para a democracia. Desconfiávamos de tudo aquilo desembocar em “transição por cima”, onde, mais uma vez, os trabalhadores da base estariam alijados da conciliação de elites e contra elites.
Curiosamente, essa discussão histórica estava escondida por trás de motivo aparentemente prosaico. Eu me reuni com ex-colegas do Mestrado da Unicamp, para oferecer, no final dos anos 70, os primeiros cursos de leitura de O Capital de Karl Marx, no Rio de Janeiro, desde o endurecimento do regime militar nos anos 60. Era a maneira encontrada para arrecadar fundos para sustentar o IERJ.
O problema foi “organizar a fila” de alunos com pretensão de fazer a leitura. Foram várias turmas. Trabalhamos duro, porém, na hora de montar a chapa de sucessão do Pedro Malan, encabeçada pela Conceição, sequer fomos consultados!
Provavelmente, acharam todos nós sermos discípulos obedientes e não rebeldes de maneira a, automaticamente, seguir a líder. Chamaram o velho “pessoal do Partidão”, ausente do dia-a-dia do IERJ, e deram um “passa-fora, moleque” na nova geração da esquerda, a qual, de fato, ajudava a sustentar a instituição.
Porém, não éramos “rebeldes sem causa”. As greves sindicalistas no ABC, em 1979, já tinham recebido nosso apoio e militávamos para retomar o Sindicato e o CORECON das mãos da direita. Quase todos passamos a nos organizar no Núcleo de Base dos Economistas do PT no Rio de Janeiro.
De fato, a categoria profissional carioca se empolgou com a eleição. Até mesmo algumas pessoas da Fundação Getúlio Vargas entraram para o lado de lá.
A disputa era apresentada por colunistas dos grandes jornais, O Globo e Jornal do Brasil, como fosse apenas “conflito de gerações”. Nós da Chapa B, surpreendentemente, perdermos por muito pouco!
Lembro-me de muito inexperiente e ainda nervoso para falar em público, eu tentava esconder a insegurança provocando e agredindo ideologicamente os adversários. Tomava coragem para dizer tudo o que me vinha à cabeça, inclusive para meus ex-professores da Unicamp, em altos brados.
Passaram-se alguns poucos anos, afastamo-nos do IERJ para ganhar o Sindicato e o CORECON. Na verdade, o IERJ submergiu um pouco sem a movimentação feita por nós jovens. Até quando houve algo de grande significado pessoal para mim.
Convidado para o coquetel de inauguração da nova sede do IERJ, em frente ao lugar onde trabalhava, no IBGE, fui lá. No fim do evento, esperando sozinho para tomar o elevador e ir embora, Conceição Tavares se aproximou e disse-me: – “Fernando Mineiro, agressivo feito a porra, mas você pelo menos é humilde, gosto disso”!
Respondi-lhe na lata: – “Professora, se a senhora está dizendo isso, deve ter razão, porque é a pessoa mais agressiva conhecida por mim”!
Daí dei-lhe carona até seu apartamento e ficamos amigos para sempre. Creio eu ter deixado de ser agressivo pessoalmente…
Depois de sua eleição para o Congresso Nacional, como deputada do PT, em almoço em sua casa, em Laranjeiras, estavam todos seus ex-alunos e novos companheiros.
Todos nós éramos da Chapa B, ríamos muito e a provocávamos: – “Nós, Conceição, estamos onde sempre estivemos. Você, na chapa A, estava junto com Pedro Malan, Marcílio Marques Moreira e César Maia! Agora, você se chegou a nós! Parabéns, avançou para a posição consequente!” Ela só piscava e ria solta…
Como eu posso descrevê-la, para meus alunos sem a sorte de a conhecer pessoalmente? Sem dúvida, está entre uma das (poucas) pessoas cuja presença me deixa, inteiramente, fascinado. Outro é o Lula. A Dilma também é figura impressionante. João Manuel Cardoso de Mello é outro dominante do ambiente.
Mas com ela tenho história pessoal, a qual não tenho com os outros. Conversar com ela é muito excitante. É desafio intelectual acompanhar a rapidez de seu pensamento, tipo brainstorming.
Culta, não é verdade ela falar apenas sobre Economia. Conversávamos mais até sobre política, costumes do povo brasileiro, cinema, histórias pessoais, tudo enfim conversado naturalmente por dois amigos quando se encontram.
Lembro-me do interesse com o qual ela acompanhou minha trajetória no primeiro governo Lula. Sentia, no início, “eu estava mais feliz que pinto no lixo”!
Seus olhos brilhavam quando eu lhe contava sobre a concessão do acesso popular a banco e crédito feito por nós lá. Imagino: a Conceição estava vendo meu sonho (real), expresso na minha defesa de tese de doutorado com ela na banca julgadora, se realizar ao fazer a alternativa (possível), mantendo a utopia (necessária).