Daniela Prates e Maryse Farhi | No Le Monde Diplomatique
O prognóstico dos organismos internacionais de manutenção ou leve arrefecimento do ritmo de expansão da economia internacional é ainda excessivamente otimista à luz do desempenho recente das economias desenvolvidas e dos seus mercados financeiros. Vislumbra-se um cenário mais sombrio que, caso seja confirmado, cobrará um preço elevado à economia brasileira, orientada pelos cânones ultraliberais do governo Bolsonaro, a depender excessivamente do crescimento, do comércio e das finanças globais.
O primeiro prognóstico a ser destacado é o divulgado pelo FMI em outubro. Seu cenário para o desempenho da economia mundial aponta uma estabilização do crescimento no biênio 2018-2019 no patamar de 2017 (3,7%), enquanto nos dois cenários anteriores (em abril e julho) previa-se uma aceleração para 3,9%.
Três principais hipóteses estão subjacentes a essa revisão. Em primeiro lugar, a guerra comercial desencadeada pelo aumento do protecionismo dos Estados Unidos, que elevou tarifas sobre vários produtos, especialmente da China, o que pode intensificar a desaceleração em curso da economia chinesa associada ao aumento do peso do seu mercado interno como eixo de dinamismo. A previsão do FMI é de uma desaceleração do volume de comércio mundial de 5,2% para 4,2% em 2018 e 4% em 2019. Em segundo lugar, as condições financeiras internacionais menos favoráveis num contexto de normalização da política monetária dos Estados Unidos. Além dos efeitos negativos sobre os fluxos de capitais para as economias emergentes, há riscos de aumento da fragilidade financeira nas economias avançadas por causa dos níveis recordes de dívidas soberanas e corporativas. Em terceiro lugar, a alta do preço do petróleo, cujo efeito positivo sobre o desempenho das economias exportadoras dessa commodity estão se diluindo, enquanto seus impactos negativos sobre a inflação e as contas externas dos países importadores podem se agravar. A combinação desses fatores também resultou na mudança do balanço de riscos no curto prazo de equilibrado (nos cenários de outubro de 2017 e abril de 2018) para negativo.
Quase simultaneamente à divulgação das projeções do FMI, os mercados financeiros passaram a apontar expectativas bem mais pessimistas para 2019. As bolsas de valores dos países desenvolvidos tiveram quedas significativas, reflexo das antecipações de desaceleração da taxa de crescimento nas respectivas economias. Nos Estados Unidos, ao que tudo indica o mercado acionário já entrou na fase baixista que se instala quando as quedas sucessivas de cotações não implicam novas compras. Os preços das principais commodities também declinaram, em particular o petróleo, cujas cotações perderam cerca de 35% em pouco menos de dois meses.
Os motivos apontados pelos analistas de mercado para essa súbita alta da aversão aos riscos são semelhantes aos do FMI, embora aquilatados de forma mais severa. Por um lado, a nova avaliação está relacionada aos impactos da guerra comercial, agora mais evidentes. Além da desaceleração do comércio mundial, dados divulgados em fim de outubro/início de novembro foram piores que o esperado em grandes exportadores: quedas do PIB na Alemanha e no Japão no 3º trimestre do ano, e perda de ritmo na China. Também pesaram resultados decepcionantes de várias empresas norte-americanas de tecnologia como a Apple. Vale notar que tanto no caso das ações de alta tecnologia quanto do preço do petróleo, esses analistas destacam que as quedas de preços estão relacionadas à percepção de níveis insuficientes de demanda. Esses novos indicadores sinalizando uma deterioração do desempenho global maior do que a prevista pelo FMI foram incorporados no prognóstico mais recente divulgado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) em meados de novembro, que prevê uma desaceleração para 3,5% em 2019.
Por outro lado, os mercados têm reagido a questões financeiras mencionadas, embora pouco detalhadas, no relatório do FMI. O cerne da questão está no forte acúmulo de dívidas por parte de empresas e consumidores diretamente relacionado aos juros historicamente baixos (e, em alguns casos, negativos como na área do euro e no Japão) praticados após a crise. Acresce-se a elevação, em particular nos Estados Unidos, da dívida pública, ligada ao corte de impostos efetuado pelo governo Trump. Os últimos dados do FMI mostram que, em 2016, o total das dívidas tinha atingido novo recorde de US$ 164 trilhões, o equivalente a 225% do PIB global. Desse total, 63% correspondia às dívidas privadas e 37% às dívidas públicas. Entretanto, a atenção dos mercados está concentrada, sobretudo, nas dívidas privadas. Nos Estados Unidos, a dívida das famílias, incluindo US$ 9,1 trilhões em hipotecas e US$ 1,5 trilhão de empréstimos estudantis, é agora US$ 837 bilhões maior do que seu pico anterior em 2008, quando ocorreu a crise financeira que provocou uma desalavancagem maciça. Cerca de 4,7% dessas dívidas está em algum estágio de inadimplência, acima dos 4,5% anteriores “principalmente por causa de um grande aumento no fluxo para a inadimplência dos saldos de empréstimos estudantis”, segundo o Fed de Nova York em seu relatório de 16 de novemnro de 2018.
A questão do endividamento das empresas não financeiras é ainda mais grave. Um novo estudo do Bank for International Settlements (BIS) examinou um banco de dados de 32 mil empresas listadas em bolsa de catorze economias avançadas para identificar empresas “zumbis”. Os autores as definem como sendo aquelas incapazes de cobrir os custos do serviço da dívida com os lucros atuais durante um período prolongado. Essa definição corresponde à feita por Hyman Minsky para as empresas em situação Ponzi. Tais empresas são extremamente vulneráveis a elevações das taxas de juros ou a reduções da demanda. Quanto mais elevado for seu número, maior será a instabilidade financeira e o risco de uma crise.
O estudo do BIS aponta que 12% das empresas estudadas pertencem ao universo de empresas zumbis. No caso específico dos Estados Unidos, o percentual alcança 16%. Com o Banco Central norte-americano apontando para mais três ou quatro elevações de juros, “não pode ser descartada a possibilidade da eclosão de uma crise financeira”. Assim, a previsão do FMI de manutenção do crescimento mundial em 3,7% em 2019 parece cada vez menos realista. Mesmo a projeção da OCDE de uma ligeira desaceleração em 2019 pode se revelar otimista. Os mercados financeiros estão antecipando que ocorrerá, nesse período, uma acentuada inflexão econômica. Diversos analistas – incluindo alguns conhecidos “catastrofistas” como Nouriel Roubini, mas também grandes instituições financeiras como o JPMorgan – vão além e preveem uma crise financeira de grandes proporções em 2020.
Esses dois últimos cenários mais prováveis indicam que fatores externos, no âmbito tanto do comércio como das finanças mundiais, atuarão negativamente sobre o desempenho da economia brasileira em 2019. As diretrizes de política econômica já anunciadas pelo futuro governo devem tornar esse desempenho ainda mais vulnerável às vicissitudes do contexto externo. Por um lado, no âmbito da política de comércio exterior, o impacto adverso da guerra comercial deve se intensificar caso se concretizem as sinalizações de aprofundamento da abertura às importações e de alinhamento aos Estados Unidos nas negociações de acordos comerciais, que ameaçará a diversificação regional da nossa pauta exportadora (para maiores detalhes, ver artigo de Marta Castilho e Fernando Sarti). Por outro lado, a intenção de reduzir (ou mesmo extinguir) os mecanismos internos de financiamento de longo prazo ampliará a dependência da economia brasileira dos fluxos de capitais globais, de natureza intrinsicamente volátil.
*Daniela Prates é professora associada do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisadora do CNPq; e Maryse Farhi é professora-convidada deste Instituto