Fernando Nogueira da Costa*
Minha mentora – pessoa sábia, capaz de guiar pelos exemplos de postura ética e política, sem a necessidade de dar diretamente conselhos pessoais –, a Professora Maria da Conceição Tavares, foi a presença no DEPE-IFCH-UNICAMP capaz de me atrair para Campinas, cidade no interior de São Paulo, onde nunca eu tinha estado. Tive a oportunidade de não só ser seu aluno, na segunda turma do mestrado aqui criado, mas ter me tornado seu amigo, quando eu morava no Rio de Janeiro.
Em certa ocasião, conversando com ela, chamou-me a atenção para o pioneirismo tanto de Ignácio Rangel, quanto dela, na esquerda brasileira. Foram eles os primeiros autores, no Brasil, a atentar para o “lado financeiro” do capitalismo.
Até então, quer nacional-desenvolvimentistas, quer marxistas, todos os militantes destacavam apenas a exploração dos trabalhadores na “órbita produtiva”. Achavam falar de moeda era coisa de monetarista...
Em sua premonição, em 1963, Rangel afirmava, para o nosso desenvolvimento independente, o centro da luta, antes visto como “a estruturação do parque industrial”, se deslocava, naquela conjuntura, para “a estruturação do mercado interno de valores”. Dizia: “o Brasil entra em novo estágio, no qual o desenvolvimento não será mais comandado pelo capital industrial, mas pelo capital financeiro. Ele está surgindo com extraordinário vigor, sob o impulso da oferta de capitais a taxas negativas de juros reais” (p. XVI).
Conceição, em um ensaio escrito quatro anos após, chegou à mesma conclusão. Se a esquerda quisesse entender o que se passava com o capitalismo brasileiro, teria de estudar o capital financeiro!
Quando fiz a leitura do seu livro clássico – Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro (1972) –, durante a minha graduação na FACE-UFMG, vislumbrei a ficção do mercado de capitais brasileiro, apresentada então para iludir a opinião pública. Era apenas uma “bolha” sem fundamentos sólidos e explodiria logo. De fato, isso aconteceu logo em 1973, quando a inflação reprimida não conseguiu ser mascarada, nem no índice oficioso, nem na vida real.
Na Unicamp, aprendi muitas lições com A Professora. Entre outras, destaco as seguintes.
Para ser bom analista do todo é necessário ler todos os especialistas das partes. Para se tornar bom economista não se pode ser apenas economista. Para ser heterodoxo tem de se saber tudo da ortodoxia. A melhor formação intelectual e profissional é a pluralista. De economista inculto o mundo não precisa mais.
Outra – penosa, mas agora engraçada – lição aprendi no primeiro seminário com a Professora no mestrado. O grupo com o dever de apresentá-lo lhe entregou um calhamaço de papel mimeografado sob o mesmo título de sua tese de livre-docência defendida em 1974: “Acumulação de Capital e Industrialização no Brasil”. Ela deu brevíssima folheada, rasgou-o e jogou-o no lixo!
Passou as quatro horas programadas para o seminário dando bronca em toda a turma. Em resumo, dizia não querer saber daquele “marxismo de merda” – e queria sim, na manhã seguinte, aquela lousa (“quadro-negro”) toda preenchida com números!
Passamos toda a noite em mutirão para preparar toda a estatística disponível. Desde então, antes de qualquer aula ou palestra, sempre me lembro dela gritando: “nunca diga nada sem evidência empírica senão vão dizer ser ideologia”!
E eu gostava de saltar as páginas com estatísticas porque assim apressava a leitura... Nunca mais! Acho minha penitência ter incluído trabalhar sete anos no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, logo no meu primeiro emprego, após o Mestrado.
Tive a sorte de ser aluno da Conceição em Economia Brasileira no Mestrado. Foi o primeiro curso quando ela e o Professor Carlos Lessa compartilharam, depois da experiência no Chile.
Ela era responsável pela análise dos ciclos; ele, pela política econômica. Cada qual, na presença do outro, demonstrava mais brilhantismo.
No Doutorado, fui também seu aluno, mas em Economia Internacional. No fim do seu curso, fui lhe entregar o trabalho para avaliação em seu apartamento no Rio. Estava lá o Fernando Fanzylber, ótimo economista e excelente orador chileno.
Ela me perguntou: – Está feliz com a mudança de vida por ter sido convidado para ser professor em Campinas? Respondi-lhe: – Estou um pouco assustado, pois irei receber a metade do meu salário no IBGE... Meu xará comentou: – Mas terá o dobro de felicidade!
Dito e feito. Não posso me queixar, pois tive momentos muito prazerosos com o ofício de professor, tentando seguir sempre o exemplo da Professora em termos de dedicação e combatividade.
Lembro-me de quando, ansioso, antes da defesa de minha tese de doutorado, em 1989, com ela na banca, eu me aproximei e Conceição me mostrou minha tese (609 páginas) toda marcadinha e disse: – Puro realismo fantástico! Isto é puro Gabriel Garcia Marquez! A história bancária brasileira contada por você é fantástica!
Pronto, acalmei-me, pois tomei aquilo como elogio. Eu tinha lido tudo do Gabriel Garcia e ela tinha lido tudo de minha tese!
Também ela fez questão de ser a primeira arguidora. Eu me senti tão à vontade, na defesa, a ponto de acabar falando dos meus sonhos (reais), alternativas (possíveis) e utopia (necessária).
Disse-lhe defender a autogestão para os bancos públicos subordinada ao planejamento estatal, para evitar o corporativismo – coisa realizada no primeiro governo Lula anos depois. Concedemos acesso popular a banco e crédito.
À noite, com muita gente, houve festa boa em minha casa. Conceição dançou à vontade. Estava aqui também a Laurinha, sua filha, minha ex-aluna, posteriormente. Lembro-me também, entre outras, da presença do falecido Paulo Renato de Souza, então reitor da Unicamp. Alunos e professores formavam uma comunidade acadêmica de convívio fora das salas-de-aula.
Talvez a maior homenagem possível de ser prestada foi inversa: a Mestra ofereceu ao seu discípulo quando ela aceitou meu convite para vir à banca julgadora da minha defesa de tese para Professor Titular. Já não estava disposta a sair para a vida pública, mas disse abrir a exceção devida à nossa amizade. Foi em 2015 sua última viagem à Campinas.
Veio, na véspera, acompanhada de uma grande amiga nossa. Almoçamos com a minha família no restaurante Casa di Maria (nome próprio dela). Minha filha então com 19 anos ficou admirada por sua atenção em conversa privada com ela.
À noite ela veio lanchar aqui em casa e confidenciou-me em conversa privada: – Fernando, eu não entendo de Economia Comportamental e da Complexidade exposta em sua tese. – Professora, não se importe, é um vanguardismo e pouca gente conhece isso...
Diante de sua humildade intelectual, aprendi mais uma lição. ”Mestra verdadeira não é quem sempre ensina, mas quem é capaz de aprender com os discípulos”.
Depois do concurso, o diretor do IE-UNICAMP organizou um jantar-homenagem com entrega de uma placa comemorativa (e de agradecimento institucional) à Professora na CPV (Casa do Professor Visitante). Todos os professores foram convidados. Foi uma noite inesquecível diante dos depoimentos voluntários expressos por todos com uma experiência pessoal com ela. Ríamos à solta!
Em 29 de outubro de 2019, pediram-me para eu fazer uma palestra sobre sua obra no lançamento do livro com ensaios selecionados “Maria da Conceição Tavares: Vida, Ideias, Teorias e Políticas” no IE-UFRJ. Eu escrevi a Introdução do livro.
Lembrei-me de seus ensinamentos e ilustrei com exemplos da aprendizagem. Tentei resumir alguns destaques de sua obra. Depois da palestra, eu a amparei até a saída e a levei ao seu apartamento.
Foi meu último encontro pessoal com ela. Depois veio a pandemia… e só ficou a memória de seu carinho comigo e imensa saudade de nossos papos quando eu a visitava no Rio. Ela e toda nossa vivência conjunta são inesquecíveis.
* - Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor de “Brasil dos Bancos”, premiado pelo Cofecon como o Melhor Livro de Economia no ano de seu lançamento (2012). E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..