Autor: Paulo Eduardo de Andrade Baltar
O assunto deste trabalho é o comportamento dos salários e suas interações com o ritmo da atividade econômica. No projeto inicial pretendíamos realizar uma pesquisa que permitisse ilustrar a evolução dos salários industriais no período 1970/75 com ênfase na mudança da dispersão dessas remunerações diante de um intenso auge da economia brasileira e de um estreito controle governamental sobre a fixação do salário mínimo legal e sobre os reajustes salariais das diversas categorias profissionais.
O projeto inicial foi desalentado pela precariedade e imprecisão das informações disponíveis que carecem de um detalhamento suficiente das distintas atividades, tipos de empresas e postos de trabalho. Porém na frustração dos objetivos do projeto inicial pesou tanto a ausência de dados adequados quanto nossa percepção da necessidade de um esforço prévio no sentido de explicitar corretamente as perguntas relevantes. Sentimos a falta de um esquema teórico mínimo capaz de orientar a pesquisa empírica, indicando o que exatamente procurar e facilitando a interpretação de seus possíveis resultados.
Por este motivo, fomos levados a modificar a finalidade do trabalho que, a contragosto, passou a ser uma tentativa de esboçar um esquema teórico para a análise do comportamento dos salários. Porém, desde logo, estava longe de nossos propósitos qualquer pretensão de desenvolver, de modo sistemático, algo que estivesse próximo de uma teoria completa e consistente sobre a formação de salários, capaz de levar em conta todas as complexidades do comportamento dos salários nos processos envolvidos pela dinâmica da atividade econômica. Apenas pretendíamos pensar um pouco sobre as peculiaridades do comportamento dos salários em economias subdesenvolvidas como o Brasil, que passaram recentemente por intenso processo de industrialização, a partir do trabalho de uma série de autores que nos pareciam ter fornecido importantes contribuições para o estudo deste tema.
No Brasil, como em muitos outros países, as instituições que atuam na fixação dos salários têm atraído a atenção especialmente dos que têm uma posição política mais à esquerda nos diversos debates e polêmicas sobre salários. A ênfase nas instituições no estudo do comportamento dos salários parece correta. Porém não se pode prescindir de um quadro mais geral da determinação dos salários que, entre outras coisas ajude a situar os próprios efeitos daquelas instituições que intervêm na fixação dos salários, integrando-os aos diversos aspectos envolvidos na dinâmica da atividade econômica, inclusive aqueles vinculados ao funcionamento do mercado de trabalho.
Quando se fala em salários e mercado de trabalho costuma-se pensar imediatamente em oferta e demanda de trabalho em torno de algo tido como ocupações diversas e isoladas umas das outras. Porém, como destacou John Dunlop, a história do pensamento econômico registra diferentes conceituações de oferta e demanda de trabalho. As diferenças entre essas conceituações de fato expressam distintos objetos colocados à teoria dos salários que, por sua vez, estão associados às peculiaridades econômicas e políticas de cada época, às características das teorias dominantes sobre a economia e até mesmo ao próprio comportamento observado dos salários.
Existe, entretanto, uma questão mais geral que deve ser enfrentada previamente a qualquer tentativa de esclarecimento da determinação dos salários e seus vínculos com o funcionamento do mercado de trabalho. Trata-se da maneira de encarar as relações entre produção, emprego, salários e preços no sistema econômico. Distintas posições a respeito têm implicações muito importantes, sobre o modo de tratar o comportamento dos salários e suas interações com o ritmo da atividade econômica.
Por este motivo, o primeiro capítulo deste trabalho refere-se ao tema emprego, salário e preços. Como a questão aflorou mais nitidamente na teoria econômica durante a crise dos anos 30, começamos o capítulo com uma breve referência à polêmica entre Keynes e Pigou sobre o modo de encarar a determinação do ritmo da atividade econômica. Trata-se de um debate especificamente cambridgiano entre dois discípulos de Marshall sobre como estender as considerações deste último, referidas às indústrias isoladas, para o conjunto do sistema econômico. De modo que, a posição de Pigou, criticada por Keynes, não deve ser confundida com outras que decorrem da aplicação de uma versão diferente da de Marshall, da teoria da produtividade marginal, que foi desenvolvida a partir do que, depois, se chamou de função de produção, incorporando uma visão walrasiana do equilíbrio geral do sistema econômico.
Em seguida, apresentamos sinteticamente uma interpretação da teoria do emprego de Keynes no entendimento de que ela coloca claramente o significado da determinação do ritmo da atividade econômica no capitalismo. Porém, segundo nossa interpretação, a questão da determinação do ritmo da atividade econômica é colocada por Keynes num nível muito alto de abstração, a partir do isolamento do instante lógico da tomada das decisões de produção, encaradas como expressão da lógica geral de avaliação e valorização do capital aplicado na esfera produtiva. Nossa opinião é que se trataria de uma primeira aproximação muito geral à produção e aos preços visando estabelecer um marco teórico da lógica das decisões envolvidas na produção que, uma vez estabelecido, impõe a necessidade de um esforço no sentido de introduzir outras considerações teóricas menos abstratas que, sendo compatíveis com o referencial mais geral, permitam identificar e analisar as interações das decisões de produção através do tempo.
Por este motivo, a apresentação da teoria do emprego de Keynes é seguida de um conjunto de considerações sobre a dinâmica da produção e dos preços a partir do princípio do custo total. Trata-se de uma breve reflexão sobre mercado e concorrência e de uma sumária discussão de suas implicações sobre a dinâmica da produção e dos preços e sobre a distribuição funcional da renda, tendo por referência principalmente as estruturas oligopolísticas de mercado.
A teoria do emprego de Keynes oferece uma alternativa à determinação do ritmo da atividade econômica como um ajustamento do mercado de trabalho. Fica, entretanto, em aberto a questão da influência do ritmo da atividade econômica sobre a formação dos salários através do funcionamento do mercado de trabalho. Enfrentamos esta questão a partir da análise de Hicks dos efeitos da escassez ou abundância de força de trabalho sobre os salários. Sua análise das razões pelas quais os salários nem sempre diminuem quando é grande o desemprego ou aumentam diante de escassez de mão-de-obra, fornece uma série de elementos importantes para uma conceituação de organização do mercado de trabalho que nos parece particularmente útil para o estudo do comportamento dos salários numa economia industrial moderna.
Qualquer tentativa de explicar por que no pós-guerra foi possível aumentar o emprego e o salário real, sem provocar maior inflação, enquanto atualmente caem o emprego e o salário real ao mesmo tempo em que as economias passam por um intenso processo inflacionário, envolve uma série de dificuldades. Essas dificuldades ilustram a complexidade do estudo do comportamento dos salários e sugerem a necessidade de se estabelecerem cortes analíticos que sejam capazes de ir introduzindo passo a passo os distintos problemas envolvidos de modo a esclarecer suas diversas naturezas.
A apresentação desses cortes analíticos será o objetivo do terceiro capítulo e eles derivam de sugestões contidas na interpretação da teoria do emprego de Keynes, nas divagações sobre o mercado e concorrência a partir do princípio do custo total e na conceituação de mercado de trabalho e formação de salários em Hicks. Antes, porém, discutiremos, no segundo capítulo, uma série de questões referentes à estrutura dos salários nominais num sistema industrial, visando precisar um conceito de mercado de trabalho que seja útil para a análise da interação do comportamento dos salários com o ritmo da atividade econômica.
O segundo capítulo começa com uma discussão sobre como encarar a barganha de contratos coletivos de trabalho que, ao menos nos países capitalistas desenvolvidos, responde pela fixação de algumas das principais taxas salariais. Trata-se de problematizar a interpretação convencional da ação sindical como simples imperfeição no funcionamento do mercado de trabalho, visto como um ajustamento entre ofertas e demandas de trabalho para ocupações relativamente bem definidas e isoladas umas das outras.
A partir da idéia de liderança salarial destacamos, como alternativa à visão convencional de mercado de trabalho e determinação de salários, uma noção de estrutura salarial que decorre das comparações realizadas entre os diversos contratos coletivos de trabalho. A observação de que não existe um único padrão de ajustamento salarial que abarque a totalidade da economia e uma breve discussão sobre os fatores que fazem com que certas comparações e não outras tenham efeitos determinantes nas negociações coletivas de salário, de modo a integrar um conjunto de taxas de salário, a ponto de que formem determinada estrutura, nos levam à conclusão de que embora existam fortes condicionantes ao nível das peculiaridades da produção e dos mercados na configuração e no funcionamento do que Arthur Ross denominou de órbitas de comparações coercitivas, esta é uma matéria de história social e política dos diversos países.
Não obstante, acreditamos que seria preciso recuperar a noção de mercado de trabalho para analisar a formação dos salários num plano mais geral, encarando-o de um modo que facilite a incorporação dos determinantes históricos, políticos e institucionais num nível mais concreto da análise do comportamento dos salários. Uma alternativa que procuramos examinar tem origem na noção de segmentação que destaca a existência de um trabalho heterogêneo, privilegiando suas implicações em termos de discriminação no emprego e escassa mobilidade do trabalho.
Uma discussão sobre este modo de encarar o funcionamento do mercado de trabalho nos leva à conclusão de que a ênfase excessiva na questão das condições de acesso dos indivíduos aos diversos postos de trabalho, destacando as considerações sobre aprendizado e ajustamentos dos empregados às funções no trabalho, é uma decorrência de sua preocupação centrar-se fundamentalmente nos problemas de mobilidade ocupacional e discriminação no emprego. Esta ênfase prejudica sua aplicação na análise do comportamento dos salários que, para os propósitos daquelas investigações podem ser assumidos como dados.
Consideramos, então, uma alternativa de interpretação da segmentação do mercado de trabalho menos preocupada com o problema da mobilidade ocupacional entendida como progresso individual dos trabalhadores. Interessamo-nos sobretudo na explicação da persistência de importantes divisões no seio da classe assalariada, num contexto em que a produção mecanizada em grande escala tem implicações no sentido de provocar uma relativa uniformização dos procedimentos e condições de trabalho. Esta vertente da teoria da segmentação do mercado de trabalho oferece uma recolocação interessante da discussão das relações entre qualificação, experiência de trabalho, produtividade e remuneração que é importante para a análise do funcionamento do mercado de trabalho e da determinação dos salários. Ela fundamenta uma reinterpretação da noção de mercado interno de trabalho a partir das mudanças ocorridas nas relações de autoridade dentro das empresas que acompanham as transformações nos processos de trabalho. Estas, por sua vez, ocorreram simultaneamente ao aumento das escalas de produção, ao progresso técnico e ao estabelecimento de estruturas oligopolísticas de mercado com suas implicações em termos da situação econômico-financeira das grandes empresas.
Entretanto, apesar da importância que possa ter a questão da hierarquia do trabalho nas grandes empresas para a determinação dos salários, ela não deve impedir ou obscurecer uma visão mais ampla do funcionamento do mercado de trabalho e sua relação com o comportamento dos salários. Tentamos recuperar esta visão mais ampla, desdobrando-a em dois níveis de análise. De um lado, o que privilegia a questão da estrutura salarial dentro de cada empresa e, de outro, o que destaca o problema da estrutura salarial no nível do sistema industrial.
Partimos da afirmação da existência de estruturas de taxas de salário dentro das empresas que decorrem do modo como se organizam os processos de trabalho, impondo vínculos de conteúdo ocupacional entre os postos de trabalho com implicações sobre as remunerações. A seguir, discutimos a maneira convencional de ver os salários como simples resultado de ajustamento entre oferta e demanda de trabalho nos vários postos de trabalho. Continuamos com uma análise das implicações sobre os salários de alterações no ritmo da atividade econômica. Esta análise não pode desconhecer a priori a possibilidade de que ocorram mudanças entre as taxas de salários correspondentes aos diversos postos de trabalho, devendo contemplar como e porque ocorrem essas modificações na estrutura salarial. Assim, devem ser distinguidas e identificadas com relativa precisão as seguintes questões: o âmbito de determinação das diversas taxas de salário, as forças que incidem na sua determinação e o modo como são afetadas pela mudança no ritmo da atividade econômica.
Uma discussão em torno desses assuntos permite-nos pôr em evidência a presença de fatores de variada natureza que influem na configuração e na transformação das estruturas de taxas de salário. Através dos conceitos de grupo ocupacional e contorno salarial de Robert Livernash e John Dunlop destacamos basicamente, além das implicações da organização dos processos de trabalho no interior das empresas, o tipo de estrutura competitiva nos mercados em que elas se inserem, as características do mercado de trabalho onde recrutam a mão-de-obra e as peculiaridades dos mecanismos institucionais através dos quais são negociados os contratos coletivos de trabalho.
Embora o conceito de contorno salarial seja apenas uma precisão da noção de liderança salarial, padecendo de seus defeitos e insuficiências básicas, ao colocar de modo mais claro os fatores de variada natureza que influem nos perfis das estruturas de taxas de salário, permite realizar uma distinção importante para a análise das implicações da dinâmica da atividade econômica sobre o comportamento dos salários. Trata-se da distinção entre as situações de estabilidade e transformação nas diferentes dimensões que definem o perfil dos diversos contornos salariais.
Numa situação de estabilidade dos contornos salariais, em que a dinâmica da atividade econômica não acarreta modificações substanciais na organização dos processos de trabalho, na posição competitiva das empresas nos diversos mercados, nas suas fontes habituais de recrutamento de mão-de-obra e nos mecanismos institucionais que regem a barganha coletiva de salários, tendem a ser preservadas as diversas estruturas de taxas salariais. Os salários nominais poderiam modificar-se com o ritmo da atividade econômica, basicamente em resposta às mudanças nos níveis de emprego e preços, mas seu comportamento tem de ser examinado também em termos relativos. Para isso temos de supô-lo fundado em comparações, visando preservar determinado sistema de proporções entre as taxas de salário ao nível de cada um dos contornos.
A dinâmica da atividade econômica pode envolver profundas transformações nas várias dimensões do perfil dos contornos salariais particularmente quando surgem novas indústrias e mercados e se modificam em profundidade os existentes. Neste caso, seria insuficiente tentar retratar o comportamento dos salários como simples decorrência de comparações no âmbito dos diversos contornos, pois teriam ocorrido transformações nas estruturas de taxas salariais.
Finalizamos o segundo capítulo concluindo que o estudo dessas mudanças nas estruturas salariais não pode ser empreendido num alto nível de abstração, requerendo a consideração de elementos históricos e sociopolíticos que ajudem a analisar as formas concretas como as empresas e os trabalhadores conseguem se adaptar às transformações ocorridas na estrutura da economia.
Nos dois capítulos finais apresentamos a proposta que consubstancia o núcleo desta tese. No capítulo terceiro, procuramos esboçar uma proposta de decomposição analítica do comportamento dos salários que incorpora uma série de sugestões teóricas contidas nos dois capítulos anteriores. No quarto capítulo tratamos basicamente de duas questões presentes no debate contemporâneo sobre salários. A primeira diz respeito ao problema dos salários nos países subdesenvolvidos enquanto a segunda refere-se à hipótese de normalidade dos preços nos modelos teóricos de inflação.
De modo que o terceiro capítulo retoma as considerações sobre determinação dos salários empreendidas no primeiro e usa a noção de contorno salarial apresentada no segundo. Começamos com uma síntese da visão do funcionamento do mercado de trabalho e sua influência sobre a determinação dos salários que, sendo compatível com os resultados das discussões empreendidas no segundo capítulo, está implícita na nossa proposta de abordagem ao comportamento dos salários. Segue-se uma discussão da questão fundamental de como encarar os salários no âmbito das decisões de produção e de formação dos preços industriais. Neste contexto, a discussão ainda se restringe à questão dos efeitos das decisões de produção sobre a distribuição dos salários através de sua incidência sobre o nível e composição do emprego. Para colocar em discussão a questão do nível dos salários é preciso considerar os efeitos do comportamento da produção, emprego e preços sobre as condições de negociação dos contratos salariais.
A análise do comportamento do nível dos salários é feita em seguida sob hipóteses bastante restritivas que abstraem as transformações que porventura podem ocorrer na estrutura da economia por falta de uma base teórica para um tratamento com pretensões de um mínimo de generalidade daquelas transformações estruturais. A discussão do comportamento dos salários nesta situação hipotética, excessivamente simplificada, nos leva a concluir que, apesar da não-consideração de mudanças nas estruturas competitivas dos mercados, nas escalas de produção e na técnica e organização das unidades produtivas, o ciclo da atividade econômica, particularmente quando envolve movimentos muito diferenciados por indústria e modificações no custo de vida, pode provocar alterações também diferenciadas no nível dos salários. Não obstante, as principais razões para que ocorram mudanças no nível e na distribuição dos salários deveriam ser procuradas no estudo das transformações na estrutura da economia.
Tendo reconhecido a incapacidade de dar um tratamento geral a este problema, procuramos apenas reconsiderar, desde a ótica da perspectiva de abordagem proposta para o estudo do comportamento dos salários, pontos centrais dos problemas de formação de salários em países subdesenvolvidos que mais avançaram no pós-guerra em termos de industrialização. Este é o objetivo do primeiro item do quarto capítulo. Tentamos dar conta das razões básicas do contraste no comportamento do nível e distribuição dos salários nestas economias vis-à-vis o observado nos países desenvolvidos.
A questão é colocada a partir de uma interpretação das teses da CEPAL sobre excedente de mão-de-obra e formação dos salários em países subdesenvolvidos. Ao contrário do sugerido inicialmente pela CEPAL, a intensificação do processo de industrialização não superou o caráter excludente do desenvolvimento periférico nem proporcionou as condições estruturais para a elevação do nível dos salários, agravando sua dispersão. Esta constatação nos levou a rediscutir a relação entre excedente de mão-de-obra e nível dos salários, questionando em particular a perspectiva de abordagem desse problema popularizada a partir do trabalho de Arthur Lewis.
Nesta discussão, enfatizamos a necessidade de se considerarem os efeitos da dinâmica industrial sobre a organização do mercado de trabalho, o que nos permite qualificar os efeitos da simples existência de um excedente de mão-de-obra sobre a formação dos salários. Concluímos que o sentido da influência do excedente de mão-de-obra sobre os salários depende da complexa interação das mudanças na estrutura da economia com a forma de organização do mercado de trabalho assalariado. Neste aspecto, a especificidade dos países subdesenvolvidos que mais avançaram na industrialização não reside na simples existência de um excedente estrutural de mão-de-obra. A rapidez e descontinuidade de seu processo de industrialização, ao lado do intenso processo de urbanização porque passaram aqueles países, conduziram a uma organização do mercado de trabalho com uma base muito ampla e poucos segmentos específicos que não proporciona, para uma grande parcela de assalariados, as condições estruturais necessárias para barganhar salários compatíveis com o nível de produtividade que vai assumindo o sistema industrial daqueles países à medida que avança o processo de industrialização.
O problema dos salários em países subdesenvolvidos não reside apenas nos efeitos das rápidas e descontínuas mudanças na estrutura produtiva sobre a organização dos mercados de trabalho e, através dela, sobre o nível e estrutura salarial. Também pode ser importante a tendência ao aumento dos preços relativos dos bens elaborados e dos serviços prestados fora do sistema industrial, particularmente quando pesam muito na estrutura de consumo dos assalariados. É o que tratamos de mostrar no segundo item do quarto capítulo.
Os aumentos relativos de preços externos à indústria atuariam na mesma direção do funcionamento de um mercado de trabalho com base ampla e pequenos segmentos específicos. Eles ajudam a complementar a explicação de porque o nível da base salarial permaneceu tão baixo enquanto aumentou a dispersão das remunerações dos assalariados no processo de industrialização dos países subdesenvolvidos.
Na verdade, esses dois fatores são estreitamente inter-relacionados em países subdesenvolvidos: os aumentos de preços externos à indústria dificultam o aumento do poder de compra dos salários na base do mercado de trabalho; isto, por sua vez, coloca dificuldades adicionais à segmentação do mercado de trabalho contribuindo para consolidar uma base muito ampla de mão-de-obra barata em busca de qualquer emprego, ao estimular, pelo lado do trabalhador, a rotatividade no emprego e a ausência de especialização.
A tal ponto se identificam irregularidade no emprego e baixos salários que se pode considerar que a necessidade de buscar outro emprego melhor remunerado e/ou uma fonte complementar de renda, termina por tornar grande parte dos empregos em fonte de complementação de renda, opções complementares inespecíficas de outras atividades, assalariadas ou não. E com isto, os assalariados perdem a principal oportunidade para valorizar os empregos nas formas modernas de produção. Nestas, é a especialização que qualifica a mão-de-obra para poder barganhar coletivamente melhores condições de emprego e remuneração.
De fato, podemos dizer que os dois fatores mencionados (mercado de trabalho com base ampla e aumentos relativos de preços externos à indústria) refletem duas perspectivas diferentes porém complementares, no exame das razões pelas quais os salários não acompanharam a elevação da produtividade, tendo simultaneamente aumentado sua dispersão, no transcurso do processo de industrialização dos países subdesenvolvidos.
Uma privilegia os efeitos do capital industrial sobre a organização do mercado de trabalho assalariado. A outra põe ênfase nas peculiaridades da configuração da vida urbano-metropolitana em países subdesenvolvidos. Neste particular destacam-se os efeitos do capital mercantil, diretamente e através de sua influência sobre a ação do Estado.
Há, então, um simples deslocamento do foco da análise. Ele significa tomar o trabalhador desde outra perspectiva: já não como um operário, senão como um consumidor e um cidadão, tentando verificar não tanto o baixo nível de seus salários sob o aspecto de custo industrial, mas sua situação de pobreza, miséria e degradação social.
No tratamento dos efeitos dos aumentos relativos de preços externos ao sistema industrial que operam no sentido de dificultar a ampliação e diversificação do consumo dos assalariados de base, é útil a hipótese de normalidade dos preços industriais, segundo a qual eles apenas repassam custos a preços, conforme o princípio do custo total.
Como esta hipótese é também usada indiscriminadamente em modelos teóricos que procuram evidenciar a natureza do processo inflacionário contemporâneo, nos vimos obrigados a discutir as condições necessárias para a aplicação da hipótese de normalidade dos preços. Embora o propósito desta tese não inclua o exame da natureza do processo inflacionário contemporâneo, a discussão da hipótese de normalidade dos preços nos levou a uma qualificação da interpretação keynesiana da inflação como resultado de um conflito distributivo.
Finalmente, o quinto capítulo sintetiza algumas das conclusões do trabalho em torno de duas questões centrais do debate contemporâneo sobre mercado de trabalho e salários. A primeira diz respeito à natureza essencial específica do subdesenvolvimento e a segunda refere-se ao modo de encarar os salários em contextos inflacionários.