Autor: João Manuel Cardoso de Mello
Este é um livro que ganhou fama, antes mesmo de ser publicado. Desde 1975 quando João Manuel apresentou O capitalismo tardio como tese de doutoramento, as cópias xerografadas circulam pelo Brasil inteiro, cada vez menos legíveis pela incessante reprodução. O autor, como de hábito, ignorou sistematicamente o sucesso de seu trabalho clandestino e desdenhou os elogios. Absorveu as objeções com o mesmo rigor com que costuma avaliar os méritos de sua própria obra. Por isso desapontou os críticos com o silêncio e suportou os apelos para publicar o livro, com o desapego dos que já estão pensando novas questões. A distância que João Manuel guarda em relação a seus trabalhos terminados é proporcional à intimidade que mantém com o pensamento vivo e questionador.
Liana Aureliano e eu conspiramos contra essa excessiva grandeza de espírito e decidimos praticar uma traição amiga, publicando o livro. O leitor ficará privado – temporariamente, esperamos – dos avanços, esclarecimentos e novas idéias que o autor vem desenvolvendo nos últimos anos. Nada, porém, que prejudique ou infirme as teses centrais aqui expostas.
O Capitalismo Tardio é uma tese e uma história. Suas páginas desfiam uma hipótese sobre a constituição do capitalismo brasileiro e, ao mesmo tempo, contam a história intelectual do núcleo fundador do Departamento de Economia da Universidade de Campinas. Éramos todos cepalinos e, portanto, réprobos, num momento da vida brasileira e latino-americana, em que a vitória do pensamento conservador e tecnocrático parecia definitiva. Éramos todos deserdados do debate político e social do pós-guerra que cessou, de repente, numa manhã de abril de 1964.
Foi neste grande silêncio que pudemos escutar com maior clareza as vozes dos que tiveram a ousadia de pensar e dos que ainda teimavam em fazê-lo, no exílio ou desterrados no meio de seu povo. Neste sentido, O capitalismo tardio só é uma crítica legítima das reflexões de Raul Prebisch, Anibal Pinto, Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso, Maria da Conceição Tavares, Carlos Lessa, enquanto reconhece a legitimidade das questões levantadas por estes autores. Todos eles, como João Manual admite, estiveram sempre envolvidos com o problema da especificidade do capitalismo periférico, mais precisamente, com as peculiaridades da industrialização capitalista, no contexto latino-americano. A crítica não consiste, portanto, em “reinterpretar” a história econômica do Brasil, como caso paradigmático das “experiências” de industrialização latino-americanas, senão em perguntar às perguntas dos predecessores: o que procuram?
A resposta de João Manuel é que a Economia Política da CEPAL investiga a problemática da industrialização nacional a partir de uma situação periférica e que para ela “o núcleo do problema da industrialização reside na antinomia entre a plena constituição da Nação e uma certa divisão internacional do trabalho que a havia convertido em Periferia, quer dizer, numa economia que era comandada por decisões tomadas no Centro, porque sua dinâmica estava presa, em última instância, à demanda externa”. Nesta perspectiva, “as economias periféricas, enquanto dependentes, são meros prolongamentos do espaço econômico das economias centrais e não se poderiam considerar como economias nacionais. Mais ainda, na medida em que continuassem a crescer para fora, as economias latino-americanas continuariam condenadas à miséria, pois qualquer esforço que fizessem para superá-la seria frustrado: não é este o significado profundo da tendência à deterioração dos termos de troca? Dependência e pobreza eram, pois, duas faces de uma mesma moeda, a situação periférica.”
O autor reconhece a grande contribuição de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Falleto no aprofundamento crítico do conceito de dependência, na medida em que avançam as perguntas para o terreno da formação e do desenvolvimento do modo de produção capitalista na América Latina e, mais que isto, trazem a idéia “de que a dinâmica social latino-americana é determinada, em primeira instância por fatores internos e, em última instância, por fatores externos, a partir do momento em que se estabelece o Estado Nacional”.
João Manuel insiste em que o esforço de Cardoso e Falletto, no sentido de superar as limitações das hipóteses cepalinas, não pode se completar porque permanece prisioneiro do critério cepalino de periodização histórica (economia colonial/economia nacional, crescimento para fora/industrialização por substituição de importações, industrialização extensiva/industrialização intensiva). Para que essa superação seja efetivada no plano teórico, “teria sido preciso que não se localizasse o equívoco do pensamento da CEPAL na abstração dos condicionantes sociais e políticos, internos e externos, do processo econômico, mas que se pensasse, até as últimas conseqüências, a História latino-americana como a formação e o desenvolvimento de um certo capitalismo.”
E para se pensar a História latino-americana como a formação e o desenvolvimento de um certo capitalismo é preciso começar recusando na raiz o formalismo contido no paradigma cepalino. Na verdade, argumenta o autor, há duas e não apenas uma economia primário-exportadora: a apoiada no trabalho escravo e a organizada com trabalho assalariado. “Formalismo”, acrescenta, “que é mera decorrência do conceito de capital de que se parte: não há capital, isto é, instrumentos de trabalho e mão-de-obra, tanto numa quanto na outra?” Para evitá-lo é necessário reconhecer que a diferença fundamental entre a economia colonial e a economia primário-exportadora encontra-se, exatamente, nas distintas relações sociais básicas que lhe estão subjacentes: trabalho compulsório, servil ou escravo, de um lado, e trabalho assalariado, de outro.
Desvencilhar-se do formalismo é, assim, começar a entender o nascimento do capitalismo latino-americano pela forma peculiar de constituição de suas relações sociais básicas. Não basta reafirmá-las, como uma petição de princípios, mas é necessário perquirir seu processo de constituição a partir da crise do Sistema Colonial. A partir da Revolução Industrial, as relações entre Economia Colonial e Capitalismo passam de complementares a contraditórias: a generalização das relações mercantis impulsionada pelo capitalismo industrial começa a exigir a liquidação do exclusivo metropolitano e termina por impor o assalariamento da força de trabalho.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo