Fernando Nogueira da Costa[1]

O ministro da Economia, Paulo Guedes, em evento sobre privatizações no BNDES, comparou as empresas estatais brasileiras a “filhos fugidos de casa e hoje drogados”. Em sua visão, todas deveriam ser privatizadas, mas os militares pediram algumas permanecerem estatais, “porque foram eles que as criaram”.

Esta imagem não só é desrespeitosa com todos os servidores públicos empregados em empresas estatais, como também demonstra ignorância da história econômica do Brasil. Caso não fossem elas, criadas na Era Nacional-Desenvolvimentista do getulismo (1930-45 e 1950-54), o BRIC seria apenas RIC, ou seja, o País não pertenceria ao grupo das quatro maiores economias emergentes do mundo. Todas essas economias adotaram o capitalismo de Estado ou o socialismo de mercado para tirar um pouco do atraso histórico em relação às economias de capitalismo avançado.

Aliás, o Estado militar norte-americano foi decisivo não só nas guerras de conquista do Oeste (e massacre dos nativos indígenas), na guerra civil abolicionista do Norte contra o Sul, no século XIX. No último século, as encomendas do Estado foram decisivas para a indústria bélica-militar nas duas guerras mundiais e outras regionais (Coréia, Vietnam, Golfo, Iraque, Afeganistão, Síria, etc.) pelo mundo afora. A National Aeronautics and Space Administration (NASA) é uma agência do Governo Federal dos Estados Unidos responsável por P&D de tecnologias e programas de exploração espacial.

Portanto, seria risível se não fosse triste a doutrina ideológica dos oldies Chicago’s Boys, aprendida na Era Monetarista do Milton Friedman na Escola de Chicago e implantada à força apenas na ditadura chilena do general Pinochet. A tentativa de implantar essas ideias estapafúrdias na Era Reagan e Thatcher, nos anos 80s, significou a derrocada do monetarismo, cuja ascensão tinha sido arquitetada pelo conluio entre a mídia e os intelectuais conservadores nos anos 70s. A política de recuperação econômica se deu através do estímulo à oferta, popularmente conhecida como “Reaganomics”, incluiu medidas de desregulamentação, redução dos gastos governamentais e cortes de impostos. Mas a dívida pública norte-americana quase triplicou.

O problema maior deste programa de desmanche estatal, aqui-e-agora, é ele não ter recebido aval nas urnas por não ter sido submetido ao debate público durante a eleição de 2018. O vencedor não o anunciou detalhadamente para os eleitores. Venceu pela comoção provocada por uma cirurgia arquitetada por uma suposta facada ainda não investigada a fundo por jornalismo sério. Juntou fake News em rede social com discurso de ódio antipetista para satisfazer a raiva dos anteriormente rejeitados direitistas, conservadores, evangélicos e incultos de maneira geral. A burrice venceu a inteligência.

A eleição de um presidente da República não implica em tratar a coisa pública como “cosa nostra” por parte um banqueiro de negócios a criar oportunidades lucrativas para seus ex-parceiros com privatizações a granel e regime de capitalização com uso do FGTS, um fundo social para combate do déficit habitacional. Ao fim e ao cabo, agravará o déficit da Previdência Social com o afastamento das contribuições dos mais ricos para aplicações no raquítico mercado de capitais brasileiro. Gerará uma bolha de ações para enriquecimento maior dos já “comprados” e empobrecimento futuro dos iniciantes.

O Estado republicano, sob soberania popular, é assunto público, exige impessoalidade. Nepotismo é um termo utilizado para designar o favorecimento de parentes ou amigos próximos em detrimento de pessoas mais qualificadas no que diz respeito à nomeação ou concessão de privilégios ou cargos públicos e políticos.

O nepotismo apareceu na interferência dos filhos do eleito na montagem do ministério e nas relações exteriores. O favoritismo não exigiu relações familiares com o favorecido. Bastou ser “amigo” (like) na rede social ou na corporação militar.

Há um desconhecimento do Estado brasileiro por parte da opinião pública. Os servidores públicos estão sofrendo uma campanha midiática difamatória como fossem “privilegiados” e responsáveis pela miséria dos “desprivilegiados”. O ataque dos representantes da casta dos mercadores à casta dos sábios-tecnocratas é motivado por interesses escusos da ressurgência (revival) da privataria à la Era Neoliberal.

O melhor desinfetante é a luz do sol. Trazer à luz o não dito na campanha de demonização do Estado e seus servidores públicos é um dever dos democratas brasileiros. O primeiro passo é revelar a verdade.

Com base no Atlas do Estado Brasileiro, plataforma de dados e análises sobre o setor público desenvolvida pelo Ipea, apresento alguns padrões e tendências essenciais à compreensão da evolução da ocupação no setor público brasileiro de 1995 a 2016.

A primeira tendência observada é a ampliação do número absoluto de servidores até 2014, mas estabilidade em relação ao percentual de ocupados no mercado de trabalho nacional. De 1995 a 2016, o total de vínculos ativos civis e militares aumentou de aproximadamente 7,5 milhões para 12 milhões. O total de ocupados formais reportados no setor privado, pela RAIS, passou de 27,1 milhões para 55,12 milhões no mesmo período. Estão excluídos os trabalhadores informais ou por conta própria. Eles respondem por mais de 40% dos trabalhadores do setor privado e são um contingente em expansão pelo desemprego desde a volta da Velha Matriz Neoliberal.

O percentual de vínculos no setor público em relação ao total de ocupados formalmente no conjunto da economia, incluindo as empresas públicas, se reduziu de 22,3%, em 1995, para 17,4%, em 2016. Considerando apenas os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, e excluindo essas empresas, o percentual baixou de 18% para 17% neste período. Após a “privataria tucana”, nas empresas públicas e de capital misto, houve redução do total de vínculos 1,7 milhão, em 1995, para 493 mil vínculos, em 2016.

O total de servidores civis ativos do Poder Executivo apresentou trajetória de queda entre 1992 e 2001, e crescimento entre 2002 a 2014, último ano da Era Social-desenvolvimentista. Contudo, o total de servidores civis ativos em 2018 é inferior ao observado em 1991. A expansão observada nos anos 2000 conjuga políticas deliberadas de recomposição dos quadros de servidores e imposições do Tribunal de Contas da União (TCU). Em 2002, ele considerou irregulares os expedientes precários de recrutamento utilizados nos anos 1990, como terceirizações e contratações avulsas por meio de organismos internacionais, entidades sem fins lucrativos e similares, para atividades próprias do serviço público, e não de natureza complementar.

A expansão do total de vínculos no setor público nacional, em absoluto e proporcional (de 38% para 57%), se concentrou nos municípios. Este crescimento da ocupação no setor público municipal decorre da contínua municipalização do serviço público brasileiro, vis-à-vis os Estados e a União. Ganhou força já na década de 1970, mas principalmente após a Constituição Federal de 1988, quando os serviços de saúde, educação e assistência social começaram a se ampliar nos governos locais.

Em sentido inverso, o total de vínculos no setor público estadual caiu de 47% para 33%, no mesmo período de 1995 a 2016.  O setor público federal reduziu sua participação de 15% para 10%, nos 22 anos dessa série temporal.

Quando se observam as ocupações dos servidores municipais, 40% integram o núcleo dos serviços de educação ou saúde – são professores, médicos, enfermeiros e agentes de saúde. O cenário é similar nos governos estaduais e, considerando ainda os profissionais de segurança pública, o percentual das três áreas pode alcançar 60% do total de vínculos. Quem deseja cortar esses servidores?!

Uma segunda tendência é a ampliação da escolaridade dos servidores públicos, em todos os níveis da administração. Entre 1995 e 2016, o percentual dos servidores federais com nível superior completo ou diversas modalidades de pós-graduação subiu de 45% para 78%, de 28% para 60%, entre servidores estaduais, e de 19% para 38%, entre servidores municipais.

A terceira tendência é a diferença nas remunerações mensais médias, tanto entre níveis federativos quanto entre poderes. As remunerações do Judiciário são as maiores entre os poderes e as remunerações federais são as maiores da federação. Quando se desagregam poderes e níveis, a remuneração média dos servidores vinculados ao Poder Executivo federal é superior à dos Executivos estaduais, por sua vez, superior aos municipais. De 2007 a 2016, a remuneração média dos servidores federais passou de R$ 6,5 mil para R$ 8,1 mil. A remuneração dos servidores estaduais, de R$ 3,5 mil para R$ 5 mil, e a remuneração dos servidores municipais passou de R$ 2 mil para R$ 3 mil.

Na média da série, os servidores do Executivo federal receberam remunerações equivalentes a 50% das remunerações médias do Judiciário federal. O Legislativo federal tem remuneração equivalente a 90% da remuneração do Judiciário federal. A remuneração média, ao longo dos dez anos da série, foi de R$ 16 mil para o Judiciário federal, R$ 14,3 mil para o Legislativo federal e R$ 8 mil para o Executivo federal.

Portanto, quando se fala em “privilegiados” é necessário pensar antes e distinguir os três poderes. Senão, a opinião pública imputa a quem lhe serve diretamente uma hostilidade prejudicial, em última análise, a si própria. O Poder Judiciário ao se omitir quanto à perseguição política (“despetização”) e o Poder Legislativo, caso aprove o projeto de reforma da Previdência Social favorável aos especuladores e desfavorável aos trabalhadores, ambos assim serão vistos como cúmplices de crime de lesa pátria.

[1] Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.