Fernando Nogueira da Costa | No GGN

Uma economia de mercado impõe à sociedade uma disjuntiva. Separa os ofertantes e os demandantes de emprego. Capitalistas empregadores à procura de economia de escala, para obter maior rentabilidade patrimonial, e trabalhadores em busca de serem empregados, para receber uma renda, tomam decisões de maneira independente um dos outros. Uns investem, outros se capacitam profissionalmente.

Existe desemprego quando o impulso para os gastos dos contratantes de mão de obra não é suficiente para justificar a contratação de toda a população economicamente ativa em busca emprego. A desocupação ocorre quando a demanda efetiva é deficiente, ou seja, não é suficientemente grande para convencer os empreendedores a obter lucro através da potencial utilização do trabalho dos desempregados.

Logo, o desemprego não é causado apenas por salários estarem fixados em patamar acima da produtividade. Mas os ideólogos do livre-mercado pregam: se os trabalhadores aceitassem salários inferiores, tornar-se-ia lucrativo oferecer mais emprego. Justificaram assim a reforma para cortar direitos trabalhistas históricos.

Infelizmente, a determinação do nível de emprego não depende de decisões dos trabalhadores por mais capacitados sejam esses – e dispostos a receberem menos para se empregar. A economia capitalista não consegue empregar, continuamente, todos aqueles com desejo de trabalhar para receber uma renda e manter a si e sua família.

É muito simplório descrever essa sociedade de maneira binária através de uma fenda fundamental entre a classe rica e as pessoas comuns: um “nós” contra “eles”. É um falso dilema ou uma falsa dicotomia resumir tudo ao “pensamento preto ou branco” com uma terceira opção – ou outras – excluída(s). É um mau argumento, embora seja muito utilizado no debate público, reduzir tudo a duas categorias opostas:
ao rejeitar uma dessas opções, o interlocutor não teria alternativa
a não ser aceitar a outra.

O modelo dicotômico dividiu a sociedade, desde a revolução industrial no século XVIII, entre, de um lado, os ilustres, os distintos ou os grã-finos, e, de outro, os pobres, a turba ou as pessoas comuns. No século seguinte, Marx e Engels tentaram universalizar a luta entre a burguesia e o proletariado, reduzindo-os a capital e trabalho. Agora, no início do novo milênio, a própria esquerda reconhece o insucesso dessa tentativa reducionista.

O modelo de três categorias estanques (classes alta, média e baixa) também não corresponde à toda diversidade social. A Economia Política dividiu a sociedade em três ordens: os improdutivos dependentes de rendas, os produtores ganhadores de lucros, e os trabalhadores recebedores de salários em troca de sua força de trabalho. Infelizmente, os adeptos da ideia de “financeirização” usam (e abusam) do mau emprego do conceito de capital improdutivo, denunciando o capital financeiro como endemoninhado. Gostem ou não, os trabalhadores de renda mais elevada dependem dele para manter seu padrão de vida durante a fase inativa.

Embora eu não considere a profissão como a única e exclusiva chave para identidades sociais, resgato a estratificação social em castas de natureza ocupacional como mais expressiva da diversidade existente em termos de Éthos cultural, moral e político. Ela se desenvolveu desde os agrupamentos antigos de religiosos, guerreiros e lavradores. Evoluiu para as castas básicas de guerreiros-militares, oligarcas governantes, mercadores, sábios e trabalhadores organizados, todos distintos dos segregados párias.

A ideia de a sociedade ser separada por uma ampla linha divisória maniqueísta ignora o fato de tantas pessoas diversas não permitir traçar essa linha sem ambiguidade. O conflito de interesses não é biunívoco, senão essa estrutura social já estaria destruída há muito tempo sem ter nenhuma mediação ou conciliação.

Para a pacificação social, processualmente, foi necessária a empatia entre os negociadores, seja entre os próprios comerciantes, seja entre os membros de castas antagônicas. Deixa de se matar o oponente, como antigamente, porque com a divisão de trabalho capaz de elevação da produtividade cada mercador passa a ser dependente do fornecedor, do credor, do empregado. E este do empregador.

A maioria dos trabalhadores despossuídos (descendentes de escravos ou servos) necessita, para sua sobrevivência, se colocar no lugar dos empregadores – e vice-versa. Estes necessitam ter consciência de sua missão social: gerar atividade econômica capaz de empregar a todos os desocupados. Se eles, como um todo, não conseguem, cabe o Estado ocupar o vácuo deixado pelas iniciativas particulares incapazes de iniciar algum empreendimento, dadas as expectativas pessimistas ou a carência do capital necessário.

Os trabalhadores livres reconhecem algumas características distintas entre os empresários bem-sucedidos e a maioria dos pequenos empreendedores malsucedidos. Muitos experimentaram essa tentativa-e-erro. Faltaram, entre outros atributos, visão de oportunidade e escolha do momento certo para inovação, convicção e ação, convivência com o risco e a incerteza, vício do trabalho de administração. Assumir o risco do devedor para fazer alavancagem financeira com capital de terceiros é também fundamental para ganhar economia de escala em uma economia capitalista.

Se obter uma valorização dos ativos com a tomada de um empréstimo de capital de terceiros, dando muito maior escala na compra de novas formas de obtenção de riqueza, pode-se multiplicar o capital próprio com uma rentabilidade superior sobre o próprio capital somado ao tomado emprestado, em vez de operar apenas com o seu capital. O limite do juro a ser pago tem de ser inferior à rentabilidade patrimonial inicial para valer a pena do endividamento.

Na economia brasileira, os concessionários de serviços de utilidade pública obtinham, na Era Social-Desenvolvimentista (2003-2014), empréstimos de bancos públicos com recursos direcionados a juros abaixo do cobrado por recursos livres. Tinham longos prazos de carência do pagamento para obter uma taxa de retorno alavancada.

Tem de se manter isso, viu? A única prioridade capaz de contemplar a todos os interesses dispersos pela sociedade, conciliando o conflito movido por intolerância ou discursos de ódios mútuos, é o crescimento econômico gerador de empregos e renda. Sem ele o mercado interno definha e todos, inclusive os empresários, perdem.

Então, a questão-chave passa a ser: como induzir a retomada do crescimento? Apenas via instrumentos de política econômica — monetário-creditícia, fiscal-tarifária, cambial e de controle de capital, salarial — em curto prazo? Ou também através de planejamento indicativo em médio e longo prazo?

É necessário dar um basta no “discurso de sacrifício” da casta dos mercadores-rentistas. Foi predominante desde o golpe de 2016. Este deu espaço prioritário para uma agenda de reformas neoliberais (trabalhista, previdenciária, encarecimento do crédito direcionado, etc.) e imposição de sacrifícios à população com corte de direitos sociais conquistados anteriormente. Basta de “austeridade”!

Copiemos o exemplo recente de Portugal. Conforme a miséria se aprofundava esse país assumiu uma posição ousada. Em 2015, descartou as medidas de austeridade impostas por seus credores europeus e iniciou um ciclo virtuoso, colocando sua economia de volta no rumo do crescimento. O governo de centro-esquerda reverteu os cortes em salários, pensões e na seguridade social e ofereceu incentivos às empresas.

Os eleitores colocaram no poder Costa, um líder de centro-esquerda, no final de 2015, depois dele prometer a reversão dos cortes em suas rendas pessoais. Ele formou uma aliança incomum com o Partido Comunista e partidos de esquerda radical.

O novo governo português aumentou os salários no setor público, o salário mínimo e as pensões. Até restaurou o número de dias de férias aos níveis anteriores ao socorro financeiro. Incentivos para estimular as empresas incluíram subsídios creditícios, créditos fiscais e financiamento para pequenas e médias empresas (startups).

Costa compensou essas medidas com cortes seletivos em gastos, reduzindo o déficit orçamentário anual e menor percentual do PIB crescente. Este propiciou maior arrecadação fiscal.

Ousou contrariar o discurso neoliberal dominante. Em um momento de crescente incerteza, desafiou os críticos pró-credores. Estes sempre insistem na austeridade como resposta para a crise econômica e financeira. Enquanto países seguem essa linha, os conflitos sociais se agravam. A conciliação ajuda a levar ao crescimento econômico benéfico a todos.

Conciliação é a única ideologia capaz de levar à coesão nacional em torno desse pacto de crescimento. Fora dela, a casta dos mercadores é corruptora de todas as demais para impor seus interesses privados. Sua aliança com a casta dos governantes se dá com base no fisiologismo ou presidencialismo de cooptação. O elitismo é próprio da casta dos oligarcas governantes em aliança com a casta dos sábios esnobes, adeptos do neoliberalismo. O social-desenvolvimentismo, em oposição, é fruto da aliança entre sábios intelectuais ou criativos e a casta dos trabalhadores organizados.

Aqueles esnobes criticam o “populismo”, isto é, quando o povo (composto por “párias”) estabelece uma conexão direta com uma liderança trabalhista. A casta dos justiceiros faz perseguição política a esta, chegando a lhe aprisionar para não participar como favorito da eleição presidencial. Com isso, abre espaço para o culto à personalidade correspondente à tradição populista autoritária de direita. Arriscamo-nos a voltar ao autoritarismo, a coerção imposta pela casta dos guerreiros, defensores do golpismo militar. É a hora e a vez de nós, brasileiros democratas, pactuarmos uma conciliação social em torno da retomada do crescimento da renda e emprego.

*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor de “Brasil dos Bancos” (2012) e “Bancos Públicos no Brasil” (2016). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

O artigo representa a opinião pessoal do autor do texto.