MÍDIA

Fernando Nogueira da Costa | No GGN

No último capítulo do livro Fernando Nogueira da Costa. O Trabalho: Capital Acumulado (Blog Cidadania & Cultura; julho 2020), constatei o arranjo socialdemocrata do pós-guerra ter funcionado relativamente bem, enquanto a casta dos sábios-universitários se aliou apenas com a casta dos trabalhadores organizados. Intelectualmente, deveria ser chamada de a Era de Keynes.

Mas essa etapa do sistema capitalista findou com a aliança dos sábios-tecnocratas com a casta dos militares, seja na Guerra do Vietnam, seja nas ditaduras militares latino-americanas. Com a estagflação, por conta de um ciclo esgotado com choque de preços do petróleo, a desaceleração econômica precipitou o desemprego e a agitação trabalhista dos anos 70. No fim dessa década, emergiu o sindicalismo do ABC no Brasil.

A Era Keynesiana foi seguida pela Era Monetarista de Milton Friedman. Esta foi caracterizada pelas elevadas taxas de juros por conta do foco no controle da inflação. Com a crise da dívida externa do Terceiro Mundo, sobreveio a globalização, dada a liberalização dos mercados imposta pelas instituições financeiras multilaterais.

Nessa Era Neoliberal da Globalização, emergiu o capitalismo de Estado chinês (ou socialismo de mercado), a partir das reformas de 1979. No novo milênio, aqui no Brasil, quatros sucessivas vitórias eleitorais propiciaram o capitalismo de Estado neocorporativista, com a aliança da casta dos sábios-universitários atuantes como tecnocratas com a casta dos trabalhadores organizados. Esta aliança, ameaçada de deposição, aliou-se com as castas dos mercadores e oligarcas-dinásticos governantes.

Notadamente, houve redução da desigualdade mundial e da pobreza em massa, seja pelo barateamento de bens de consumo durável, propiciada pelas exportações chinesas para todo o mundo, seja por suas importações de bens básicos de países periféricos. Por exemplo, a importação chinesa representa 34% da exportação brasileira, em destaque, soja, carne, minério de ferro, agora também petróleo.
Aqui, o social-desenvolvimentismo, uma mistura de socialdemocracia com o histórico desenvolvimentismo e ênfase em política social ativa, melhorou a distribuição de renda. Mas não teve fôlego para fazer nem uma reforma tributária progressiva, para minorar a desigualdade social, nem uma reforma política, para superar a fragmentação partidária e a reeleição, germes da corrupção.

No capítulo final deste meu último livro, contrapus dois projetos nacionais, apresentados em debate jornalístico, para reerguer a economia brasileira e abrir caminhos para o bem-estar da sociedade: o neoliberal e o desenvolvimentista. Para isso, tomei como amostra uma série de artigos do editor-executivo do principal jornal econômico do país. Apresentei como alternativa à sua visão “liberista” (em defesa sobretudo da liberdade de mercado), a desenvolvimentista apresentada por professores da FEA/ USP também em uma série de artigos no mesmo jornal. Comentei seus argumentos.
Os desenvolvimentistas não se diferenciam dos neoliberais na denúncia da história do Brasil. Há consenso quanto à origem histórica de problemas persistentes por mais de 130 anos.

A crítica à elite inominável é comum entre o jornalista neoliberal e os professores desenvolvimentistas. Para uma análise sistêmica mais detalhada, tento discriminar dentro dessa “elite”, dividindo-a em castas por distintos Ethos culturais e políticos, rendas e riquezas. Têm valores morais e posicionamentos políticos diferentes entre si.

A diferença do desenvolvimentismo para o neoliberalismo se inicia com a defesa feita pelo primeiro da industrialização brasileira. O segundo, no fundo, defende a vocação agrícola do país até hoje, pregando plena abertura externa, para a importação dos produtos industriais, em lugar de dar incentivos fiscais e creditícios à instalação de multinacionais para produzirem e gerarem emprego no país.

Os desenvolvimentistas reconhecem a política social ativa ser necessária, mas é insuficiente. É necessária também a retomada do crescimento econômico, isto é, da renda nacional e do emprego massivo.

Uma nação não se libera facilmente das mazelas herdadas de seu passado. Ao contrário dos cúmplices da volta da Velha Matriz Neoliberal e, em seguida, do golpe de 2016, os representantes da casta dos sábios-universitários são mais democratas.
Uma grande diferença entre desenvolvimentistas e neoliberais é os primeiros, ao contrário dos últimos, não priorizarem a política fiscal face à política cambial e de crédito para retomada do crescimento.

Em relação ao longo prazo, e para o futuro não ser uma repetição das últimas décadas perdidas, o país precisa de dois projetos:
projeto social, para atacar as desigualdades através de uma ampliação dos gastos sociais, fortalecimento e expansão das políticas sociais criadas no período 1994-2015, e criação de um novo programa de Renda Básica Universal (RBU);
projeto econômico, para restabelecer o crescimento sustentado do qual o país foi capaz nas décadas pré-1980.

Reformas sociais sem crescimento econômico, para as sustentar, têm fôlego curto. Variáveis instrumentais fiscais estão articuladas pelos neoliberais com a variável-meta “solvência do Estado”. Esta seria a maior prioridade, para os carregadores da dívida pública, em lugar do efeito do crescimento do PIB sobre sua relação com a DBGG.
A pandemia não interrompeu o que teria sido uma retomada. Na verdade, ela enterra de vez o tratamento neoliberal de uma economia estagnada. Depois de despencar, mal conseguia um crescimento de 1% ao ano.

A estagnação não é igual para todos os setores de atividade. O setor exportador é o único capaz de escapar à crise de demanda interna atual. Assim, é estratégica sua proteção. A agricultura, graças aos investimentos governamentais do passado, continuou prosperando. Além de a preservar, é fundamental incentivar a indústria e modernizar a infraestrutura brasileira.

No meu livro Mercados e Planejadores Imperfeitos. Blog Cidadania e Cultura; maio de 2020, defendi, por já ter ultrapassado a fase da industrialização nascente, a economia brasileira é diversificada. Então, o melhor a ser feito pelo Estado é investir em bem-estar da população pobre. Visando a mobilidade social e a melhor distribuição de renda, o prioritário seria um plano habitacional decenal para acabar com o déficit (7,8 milhões de Unidades Habitacionais - UH) e atender a nova demanda anual de cerca de 400 mil domicílios familiares.

Em três mandatos consecutivos (12 anos) com contratação média de um milhão de UH/ano se alcançaria a meta de doze milhões UH. A conquista da própria moradia livrará 30% do orçamento doméstico de despesa com aluguel e representará o enriquecimento direto da família.

Não seria só o investimento em construção civil empregadora de mão-de-obra de baixa renda. Além da Caixa, o BNDES poderá priorizar o financiamento de um programa massivo, com planejamento conveniado entre os entes governamentais dos distintos níveis (municipais, estaduais e a União), para o saneamento urbano, a maior carência de toda a população pobre brasileira, principalmente no Norte e Nordeste. Teria impacto direto em saúde pública.

Cabe também ao BNDES o financiamento da mobilidade nas cidades (metrôs e trens urbanos) e à Caixa o financiamento da urbanização das favelas. Dotadas de todas as necessidades básicas – abertura e asfaltamento de ruas e avenidas, teleféricos, redes elétricas e de esgoto, abastecimento de água e coleta de lixo – elas se transformariam em bairros populares inclusive com segurança pública sem milicianos.

Junto com a construção de UH, exigir-se-ia dotar suas vizinhanças de postos de saúde, escolas públicas, delegacias policiais. Naturalmente, o comércio privado seria atraído para se instalar e explorar esse potencial de vendas.

A iniciativa privada interessará pela maior demanda popular só depois desses grandes investimentos sociais, para pobres (¼ da população brasileira), terem sido planejados, coordenados e apoiados por um Estado social-desenvolvimentista. Seus planejadores deverão priorizar essa série de setores ligados à cadeia da construção civil e projetos de infraestrutura social – e não mais conceder incentivos fiscais ou creditícios para industriais ricos... e golpistas.

Desde quando o Brasil parou de crescer, em 1980, outros países mostraram as políticas econômicas, inclusive as de curto prazo, fazerem a diferença entre crescimento acelerado e estagnação. Com políticas corretas, é possível alcançar os países avançados em uma geração ou duas. Poderá a pandemia nos fazer tomar consciência da necessidade de mudar nossas políticas econômicas e reorientá-las ao crescimento?

Essa é a questão-chave do desenvolvimentismo contra o neoliberalismo anacrônico.

Na atual pandemia, as castas brasileiras de natureza ocupacional se sentiram ameaçadas por contaminação do vírus no contato com “os párias”: seus servidores de trabalho manual. Aí perceberam, de fato, sem cooperação mútua não haver futuro saudável.

Para finalizar, uma nota de esperança. Lideres populistas de direita, como Trump e Bolsonaro, reagiram pior à epidemia de covid-19. Os eleitores, segundo pesquisas, não os perdoarão por essa atitude.

Em contraponto, ngela Merkel – detestada por Trump e outros líderes populistas – teve atitude adequada. O contraste entre o desempenho de Merkel e o dos populistas demonstra a capacidade de entender as evidências científicas ser um requisito para um líder respeitável.

A premiê alemã tem doutorado em Química. Trump é um incorporador imobiliário e Bolsonaro é um ex-capitão do Exército. Merkel conseguiu agir de acordo com a formação científica de sua casta dos sábios. Os representantes da casta dos mercadores e da casta dos militares adotaram o negacionismo científico. Está explicado...

As opiniões expressas no artigo são de responsabilidade pessoal do autor.

* Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor de “Capital e Dívida: Dinâmica do Sistema” (2020; download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..